Correio da Cidadania

Política econômica: opções e alternativas

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As forças sociais e de esquerda são as únicas capazes de construir as bases de um novo projeto nacional e democrático, abrindo canais de diálogo inter-sociais e inter-setoriais.

 

O único plano B possível seria uma variante do plano A, dizem. Questão de timing, ajuste fino, adequação. O objetivo é a qualidade da reforma, não a reforma da qualidade. Quanto aos "instrumentos de estabilização", há "consenso". Os juros sacrificiais em que a nação é imolada. Um superávit primário no máximo requerido para o "bem do país". Um câmbio que faz flutuar as apostas de milhões de brasileiros, na forma de esforço criativo-produtivo, apenas para dar certeza às apostas e aos ataques rentistas-especulativos.

 

As metas de inflação são incompatíveis com as metas de qualquer Brasil que justifique o nome, de qualquer Brasil imaginado e/ou vivido pela grande maioria de sua população. São franquias administrativas da banca internacional que procuram tomar o lugar do Estado brasileiro como mediador de interesses das classes, setores e segmentos fundamentais. Essas metas, entre outros requisitos, constituem uma institucionalidade ad hoc transnacional que se acopla à oficial para alinhavá-la. Em face disso, propor uma joint venture política, com o compartilhamento de soberania, setor público e setor privado, através de PPPs, financiamentos condicionais e conversões de dívida, pode ser considerado opção "melhor" ?

 

Advogar a racionalidade universal de uma política econômica formulada a partir de interesses cristalizados e intransponíveis significa enterrar a possibilidade de alguma racionalidade ou de um verdadeiro universalismo. A democracia não pode ser uma mera reprocessadora de custos para investimentos, sob pena de perder até mesmo seu efeito simbólico. Banqueiros e lacaios fazem cara de preocupação com a inflação "extremamente perversa com os pobres". A inflação baixa e sob controle, eis a última generosidade. Quanto a empregos adequadamente remunerados, formação profissional e serviços públicos qualificados, não é bem assim. Mas a inflação é baixa, vejam...

 

O controle da inflação é a grande garantia dos negócios oligopolistas: os mecanismos de estabilização da moeda são os mesmos que lhes proporcionam rendimentos seguros. É uma espécie de alarme contra a intervenção estatal e pública. O contrário do alarme, a confiança dos mercados, se adquire, portanto, no curso de uma auto-mutilação contínua. O nível máximo de confiança alcança-se com a anulação dos mecanismos de intervenção estatal e dos espaços de articulação econômica e política, capazes de estruturar um projeto de nação justa e democrática.

 

A política macroeconômica restritiva é a garantia da asfixia do setor público e de uma posterior oxigenação seletiva, perversa, privada, transnacional. Se são oligopólios e monopólios "por mérito", então por que interferir nas "regras de mercado"? Antonio Palocci e Henrique Meirelles ainda são os gerenciadores dessa automatização. É sintomático que não tenha havido necessidade de aprovar legalmente a autonomia do Banco Central, para que ela pudesse ser plenamente exercida. Meirelles justificou-se frente a seus pares, demais presidentes de BC, dizendo que tínhamos uma autonomia do BC "de fato" e sob "sustentação política", o que seria mais "seguro" do que obter instituições formalizadas sem o "acordo" necessário. Meirelles está dizendo que Lula é o comandante para fazer a travessia, e que o mesmo a vem fazendo a contento.

 

Tentam instrumentalizar Lula como um pára-raios das energias disruptivas do país que desfizeram. As elites hegemônicas no país continuam precisando de Lula e do PT como escudo humano contra as pressões sociais. O problema com tal escudo é que vai querer sê-lo ao seu modo. A orquestração do "maior escândalo de corrupção da história do país" denota uma crise no interior do arranjo de forças que garantiram a eleição e posse de Lula. É uma tentativa de poda preventiva, para que o próximo mandato presidencial seja exercido, com a consolidação das renúncias feitas, em marcos liberalizantes e privatizantes progressivos e estáveis.

 

A durabilidade da popularidade de Lula, a gradual recomposição da base congressual do governo e a relativa tranqüilidade dos grandes investidores, indicam que o projeto de recondução pode ser viabilizado. A manutenção da "normalidade econômica" sob intenso bombardeio político prova a enorme capacidade do governo Lula de amortecer conflitos. Os mercados estão longe de ignorar um desempenho desses. A viabilidade da fórmula neoliberal depende da viabilidade eleitoral dos atores políticos capazes de legitimá-la. O debate no interior do governo e do PT sobre a política econômica explicita um embate sobre quais serão os fatores condicionantes da reeleição.

 

Palocci sugere radicalizar os compromissos de disciplina fiscal e de construção de confiança, apresentando balões de ensaio como o déficit nominal zero, maior abertura para importados manufaturados e um radical ajuste fiscal por 10 anos. O que a ministra Dilma Rousseff expressa é uma variante flexibilizadora da fórmula, para efeito de diferenciação eleitoral e, em última instância, de renovação de legitimidade. Disputa inter-elites: rentistas e transnacionais predominando de um lado e setores com maior encadeamento produtivo e presença nacional de outro. A primeira opção supõe um cerceamento do dinamismo da economia nacional, para que os fluxos externos imponham seu ritmo. A segunda opção pressupõe um "reequilíbrio" na direção inversa sem rupturas.

 

Mas não pode haver nenhuma opção enquanto a nação vai sendo descosturada em múltiplas frentes. O Itamaraty não pode se dispor a sacrificar setores econômicos estratégicos e essenciais em troca da diminuição dos subsídios agrícolas. A ampliação da infra-estrutura do país não pode ser concebida somente para desobstruir os gargalos de escoamento de commodities e semi-manufaturados. Não adianta brecar a ALCA enquanto se dá passe livre a transnacionais na forma de facilidades logísticas e regulatórias. O BNDES não pode continuar financiando, com nosso dinheiro, a multinacionalização das "nossas empresas", agigantadas à custa de baixos custos, de um baixo nível de obrigações sociais, ambientais e fiscais. O Mercosul não pode servir para aprofundar ainda mais a oligopolização da economia regional, pelas grandes empresas, muitas sediadas no Brasil.

 

O Brasil não cabe em Império nem pode se reduzir a um sub-império. Sabemos exatamente o que temos a ganhar somados. Um coletivo, quando se entende, encanta sua trajetória de frente para trás e de trás para frente, e faz-se epopéia. O Brasil em diálogo aberto com seu destino. A inflação controlada através da pactação prévia das expectativas, através do desvencilhamento de extemporâneas obrigações da dívida pública, através de um crescimento estruturado por investimentos públicos, com foco no mercado interno e regional. O replanejamento, ou a supressão, se necessário, dos enclaves da soja, da carne, ferro e aço, madeira e celulose, açúcar e álcool, no interior de cadeias de valor crescente, fundadas em alta tecnologia, inclusão social e sustentabilidade ambiental. Setores estratégicos e essenciais (comunicação, energia, água e transportes) geridos correspondentemente sob controle social. A terra e o território redimidos com sua gente. As riquezas de todos. Todas as aptidões garantidas.

 

Os rebaixados e excluídos pelo modelo econômico neoliberal dos últimos 15 anos são tantos, e tão significativos, que conformam hoje o único conjunto possível. A nação, a despeito da derrota, é ainda nação, ou seja, povo que se vê enquanto tal. As novas elites globalizadas são poderosas, mas são fragmentos soltos, que se impõem, em última medida, pelo poder corruptor do dinheiro e pela repressão policial-militar. As forças sociais e de esquerda são as únicas capazes de construir as bases de um novo projeto nacional e democrático, abrindo canais de diálogo inter-sociais e inter-setoriais. Com a vitalidade dos nossos movimentos sociais, com a renitência do pensamento crítico, com a combatividade a toda prova da esquerda remanescente, e com a livre vazão da nossa esperança desaforada em linguagem e cultura, podemos criar nosso próprio caminho no mundo.

 

Luis Fernando Novoa Garzon é sociólogo e membro da ATTAC Brasil.

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