Correio da Cidadania

A volta da empatia

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Há coisas que quando se vão, por mais que se tente, não podem mais voltar. Não falo da inexorabilidade da vida, mas dos sentimentos. Há quem ame e compartilhe tudo com a pessoa amada, por anos, décadas, num dia qualquer acorda e se dá conta de que não sente mais nada. Aquele laço já não gera nenhum calor no peito e, por mais aterradora que soe essa nova verdade, não há reversão.

 

Pois bem. Era a este eterno desencanto que parecia condenada nossa relação com a seleção brasileira. Estávamos convictos de que aquela camisa amarela nunca mais nos contagiaria e poderia voltar a suprir nosso sagrado direito ao prazer. Antes pelo contrário: passaríamos as próximas eras a projetar num campo do futebol os grandes fracassos da sociedade por nós habitada – e convenhamos que até outro dia tal exercício andava fácil.

 

Eis que de repente, não mais que de repente, um treinador que deve ter um cajado de Moisés invisível a seu lado aparece e imediatamente nos faz voltar a desfrutar do que 11 rapazes de amarelo fazem em campo.

 

Mais que a série implacável de cinco vitórias e 15 pontos que alçou o Brasil à liderança das Eliminatórias e exterminou qualquer temor de cavar mais fundo o poço do 7 a 1, é impressionante como Tite já conseguiu, apesar de todas as mazelas que continuam a cercar o futebol brasileiro, resgatar o contentamento com o escrete – até o termo escrete é capaz de ser reabilitado por esse obcecado pastor gaúcho.

 

Num certo rompante, arrisco dizer que sua estreia contra o Equador foi o melhor jogo da seleção brasileira desde o 4-1 contra a Argentina na final da Copa das Confederações de 2005, em Frankfurt.

 

Não precisamos de 20 minutos para notar vida nova. Neymar não hesitava em emular um Jorge Henrique qualquer e voltar para marcar até as barbas de Marcelo. No mais, a sincronia que aqueles que já tinham presenciado a “doutrina Tite” em tantas jornadas no Pacaembu ou Itaquera têm de memória: compactação total entre as linhas, um tridente para organizar o jogo e liberar um dos armadores, avanços pautados pelas triangulações nos lados do campo, a ganhar o terreno metro por metro etc. etc.

 

Alguns lembrarão dos momentos de glória da primeira passagem de Dunga, como os títulos das Copas América (2007) e das Confederações (2009), além das vitórias fora de casa contra Uruguai (4-0) e Argentina (3-1) pelas Eliminatórias. Mas também podemos mencionar o 0-0 com a Bolívia no Engenhão, a primeira derrota da história para a Venezuela, o massacre equatoriano em Quito, quando um Júlio Cesar no auge da carreira garantiu um empate que merecia derrota por larga margem, para não falar das mesquinhas vitórias à base de bola parada e “faltas táticas”.

 

Enfim, era um time que “brilhava” a partir do sistema defensivo e letalidade no contra-ataque. Quando instado a tirar outra carta na manga, como na famigerada quarta de final contra a Holanda, não havia qualquer repertório extra (mesmo porque aquela convocação de 2010 ficará para os anais do puro e simples mau gosto...). Havia quem gostasse. Este modesto corneteiro sempre achou repugnante (tenho provas guardadas em casa).

 

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As formações de Equador 0-3 Brasil e o novo padrão tático da seleção

 

É certo que o recomeço em Quito escancarou que, dessa vez, os jogadores não compraram o peixe de Dunga. Os arrastadíssimos jogos da Copa América Centenária foram providenciais para por fim ao que o elenco parecia sentir como um martírio.

 

De toda forma, os jogos seguintes vieram para referendar que pelo menos uma coisa mudara para melhor no país. A vitória contra a dura Colômbia viu a mesma coesão e lucidez da equipe, cuja sequência mostrou que vencer Bolívia e Venezuela ainda pode ser mero trâmite burocrático.

 

Refeito, na bola e na tabela, veio o primeiro grande clássico. E que atropelo o Mineirão voltou a ver. Desta vez, para alegria geral do chique público presente (como dito, as mazelas prosseguem fora das quatro linhas).

 

Certamente, foi a vitória mais fácil e evidente contra a Argentina que me consta na memória.

 

Para os iniciados na titebilidade, nem o domínio inicial alviceleste significava muito. Tem-se um time que joga ofensivamente, busca dominar a partida e se impor, mas aceita perfeitamente o momento favorável do adversário, recua e espera a escapada certa.

 

Com organização aliada ao talento individual de seus comandados, o Brasil chegou facilmente ao 2-0, construído em não mais que três chegadas de perigo. Até pela desolação do lado oposto, o jogo já conhecia seu vencedor no intervalo.

 

No segundo tempo, a mesma ocupação perfeita de espaços e leitura impecável da partida. Detectada a destruição moral do rival, o combate se dava logo à frente. E sem nenhuma surpresa veio o terceiro gol, com a chegada ainda menos surpresa de Paulinho, de tantos gols similares em preto e branco.

 

E depois de sabe-se lá quantos anos, seguiram-se gracejos, firulas, olé pra lá, olé pra cá. No final, um preço de “vizinho carinhoso”, como definido na desenganada crônica de Martin Caparrós no Olé.

 

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As formações de Brasil 3-0 Argentina; mudam alguns nomes, segue o padrão

 

É certo que as dores recentes e a perda da identidade cultural com a seleção continuam na ordem do dia, mas para aqueles que já vinham considerando uma inédita exclusão da Copa do Mundo uma “necessidade histórica”, além de merecida por toda uma corja que tomou – e continua a tomar – nosso futebol de assalto, esta breve obra de Tite já merece registro.

 

É surreal dizê-lo com tamanha segurança, mas o teclado praticamente digita sozinho: o Brasil não só está classificado para a Copa da Rússia como já desponta como franco favorito ao título. Tite é o pastor e nada faltará.

 

Argentina em desencanto

 

Se o Brasil achou um guia para tirá-lo da perdição, a Argentina parece jogar-se no divã de bruços e sem tirar o paletó.

 

Afundada na mesma crise institucional do vizinho, com uma AFA em frangalhos, a aguardar novos rumos enquanto conhecidas correntes (ainda) se organizam para assumi-la, a desmoralização é total em campo.

 

As entrevistas dadas logo após o massacre do Mineirão demonstram por si o grau de desânimo dos atletas, simbolizado na declaração de Messi, de cuja verve não se tem memória e, assim, inusitada pelo simples fato de conter a palavra merda.

 

Parece que Bauza não consegue “entrar” no grupo de atletas, que por sua vez parecem, simplesmente, de saco cheio de jogar, jogar, jogar e ser vice no final.

 

Vê-se um tom tão insosso em atletas como o impecável Mascherano que parece começar a ser gestada nas cabeças dos jogadores uma espécie de racionalização da tragédia, a convencer a todos de que, no fim das contas, nem vale a pena ir para a Rússia. “Estamos numa situación de mierda e, se é assim, melhor ficar em casa mesmo”.

 

Enquanto as imagens da televisão nos fazem voltar a miragens de pandeiros fervilhantes, os vizinhos que deixem a playlist tanguera bem longe das mãos.

 

Nota:

 

Os quadros táticos são contribuição do professor Biglia, cujo pizarrón é conhecido nas bandas da Central 3 e na várzea paulistana.

 

Leia também:

 

 

SuperPorre das Américas – o mesmo jogo, um ano atrás

 

 

Gabriel Brito é jornalista do Correio da Cidadania.

 

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