Correio da Cidadania

Pensando a longo prazo – V

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Na discussão crítica de A Tolice da Inteligência Brasileira, vamos deixar momentaneamente de lado a suposição de que o esquema “culturalista”, utilizado para explicar as “sociedades periféricas”, teria se tornado “dominante” no Brasil desde os anos 1930, com Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, reforçada no tempo pelas obras de Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro.

 

Também vamos deixar de lado a suposição de que tal “culturalismo”, cada vez mais conservador, ao articular as noções de personalismo/patrimonialismo e culturalismo, e justificar uma suposta singularidade cultural e social pré-moderna, segundo a qual “mestiço is beautiful”, funcionaria como redutor de todas as diferenças.

 

Consideramos que essas suposições, relacionadas ao papel do “culturalismo” e do “patrimonialismo”, foram introduzidas no texto como o bode colocado no meio da sala já entulhada de gente. De imediato o que nos interessa é discutir se “a reprodução dos privilégios injustos” depende “basicamente do convencimento e não da violência”, como defende Jessé.

 

Ou, melhor dizendo, se tal reprodução depende de uma “violência simbólica”, conceito do sociólogo francês Bourdier que teria superado o conceito marxista de ideologia, ao enfatizar o trabalho de dominação social como tendo seu núcleo na tentativa de “fazer o dominado aceitar por convencimento as razões da própria dominação”.

 

Para início de esclarecimento, o conceito de ideologia não é marxista. É bem mais antigo, utilizado desde a filosofia clássica grega como um conjunto articulado de ideias sobre a realidade. O que pressupunha a existência de ideologias que expressavam a realidade como tal, e ideologias que não conseguiam tal feito, enganando-se sobre a realidade, ou distorcendo-a. No início do século 19, o pensador francês Destrutt de Tracy deu ao termo ideologia o significado de “ciência das ideias”.

 

Marx utilizou o termo em muitas ocasiões, mais no sentido dos gregos antigos. Partindo de seus pressupostos materialistas e dialéticos, sugeria que as ideias, ou as ideologias, podiam expressar visões corretas e incorretas, certas e falsas, reveladoras e falsificadoras, dependendo do resultado da análise das contradições presentes em cada realidade.

 

Tal resultado podia ser um conhecimento incompleto, como o de que o átomo era indivisível. Ou podia ser uma falsificação consciente, tendo por base uma situação real específica, neste caso um pressuposto para a manutenção dessa situação. A discussão entre os atenienses e os mélios, descrita por Tucídides, os primeiros tentando convencer os segundos sobre as vantagens da escravidão, é esclarecedora a respeito.

 

No estudo da realidade do modo de produção, circulação e distribuição capitalista, Marx percebeu as diferentes ideologias, que expressavam as diferentes realidades de trabalho e de vida de cada classe presente no nascedouro dessa formação social. Se tais ideologias diferentes não existissem, não teriam havido os movimentos, as lutas, as revoltas que marcaram a história do desenvolvimento capitalista, sejam para este impor-se ao feudalismo, sejam para os trabalhadores imporem conteúdos democráticos às bandeiras burguesas de “liberdade, igualdade e fraternidade” e ao capitalismo “liberal”.

 

Marx percebeu, também, que entre as ideologias aquela que era dominante, influenciando fortemente todas as classes existentes em cada formação social, e levando os dominados a aceitarem muitas das razões da própria dominação, era a ideologia específica da classe econômica e socialmente dominante.

 

Portanto, ao contrário de Bourdier e de Jessé, Marx não considerava que a reprodução dos “privilégios injustos” das classes dominantes surgidas na história humana (fossem elas patriarcais, escravistas, feudais, mercantilistas, capitalistas ou socialistas) dependesse “basicamente do convencimento e não da violência”. Ou que tal reprodução dependesse de algo tão prosaico como uma “violência simbólica”.

 

Marx tinha razão porque, em toda a história da humanidade, não é possível achar qualquer classe dominante que não haja combinado o “convencimento ideológico” à “violência”, ou vice-versa, através do tipo de trabalho imposto aos “de baixo”, da força organizada do Estado, e/ou de formas não-convencionais, a exemplo do uso de paramilitares. Também não é possível achar qualquer classe dominada que, apesar do convencimento e/ou da violência da “ideologia” e da “força dominante”, não tenha despertado ideologicamente, mesmo por um momento, e se rebelado.

 

Portanto, ao pretender nos convencer da existência apenas da “violência simbólica”, Jessé escorrega no culturalismo de Freyre, para quem a “Casa Grande benfazeja”, criadora da mestiçagem, nada teria a ver com o eito e a senzala. Ou, nada teria a ver, como dizia Antonil, com os três pês do escravismo: pau (pesado), pano (pouco) e pão (pouquíssimo). Em outras palavras, a “violência simbólica” não passa de uma distorção ideológica, no sentido de encobrir, falsificar, distorcer a realidade dos diferentes tipos de violência utilizadas pelas classes dominantes. É um exemplo evidente da ideologia utilizada como falsificação da realidade.

 

Assim, não deixa de ser impressionante que Jessé, tão preocupado com a situação econômica e social (renda, salário, educação, cultura, saúde, saneamento, discriminação, opressão, violência policial etc. etc. etc.) daquilo que chama “ralé”, queira nos impingir a ideia, ou a ideologia, de que a reprodução dos privilégios injustos depende “basicamente do convencimento e não da violência”. Violência que, no Brasil, salta aos olhos, por mais que se queira explicá-la e justificá-la pela existência de traficantes, quadrilhas, corrupção etc.

 

Numa realidade como essa, ganha importância o que se pode chamar de “desvelamento da ideologia dominante”. Isto é, da ideologia que pretende manter intocada a reprodução dos privilégios injustos. Porém, que privilégios são esses? O privilégio da cultura? O privilégio de poder estabelecer relações sociais? O privilégio da riqueza e da renda? Jessé afirma que sim. Isto, embora a própria burguesia reafirme, a todo momento, que tem como pedra de toque a manutenção de sua propriedade privada sobre os meios de produção. Esta é a base de suas relações sociais, cultura, riqueza e renda.

 

Ou seja, sem rebuços, a burguesia “desvela” sua ideologia, ao mesmo tempo que alimenta seus outros aspectos, como o “esforço individual”, a “meritocracia”, o “empreendedorismo”, a “educação para o trabalho”, a “cultura mercantil”, o “relacionamento social apropriado” (este tão bem cunhado pelo famoso colunista social, Ibraim Sued, na frase “em sociedade, tudo se sabe”).

 

Assim, embora a burguesia jamais tenha escondido sua questão ideológica central, parte da “inteligência brasileira” faz ouvidos de mercador a ela, e a encobre com o argumento de que os “privilégios injustos” das classes dominantes podem ser enfrentados desde que os de baixo consigam apropriar-se de “capitais sociais” e “capitais culturais”.

 

O problema não consiste apenas em que o capitalismo, em seu estágio atual, persevera na difusão dos diferentes aspectos de sua matriz ideológica central de defesa da propriedade privada. Ao concentrar e centralizar o capital de forma cada vez mais avassaladora, o capitalismo, ou o modo de produção do capital, torna as promessas ideológicas dos “capitais sociais e culturais” inventados por Bourdier progressivamente inoperantes.

 

 

Leia também:

 

Pensando a longo prazo – IV

 

Pensando a longo prazo – III

 

Pensando a longo prazo – II

 

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Wladimir Pomar é escritor e analista político.

 

 

 

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