Compulsão à citação
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- Gabriel Perissé
- 23/01/2009
Há pessoas que precisam apoiar-se em citações o tempo todo. Alguns trazem esse hábito do berço... O pai citador transmite ao descendente essa mania — filho de peixe, peixinho é. Citações de provérbios, ou citações mais requintadas. Quando não lembra a citação, o citador sofre, sabendo, porém, como dizia Oscar Wilde, que "as nossas tragédias são sempre de uma profunda banalidade para os outros"...
O citador vive entre aspas, coleciona as palavras alheias com reverência. Não teme a recriminação daqueles que, citando algum pensador, repetem: "Quem cita os outros jamais desenvolve suas próprias ideias".
E daí? Mais vale uma citação na mão do que repetir, sem saber, e de modo menos genial, o pensamento que outros já formularam com exatidão. Quem cita pensa também. Citando com a consciência alerta, pensarei ao lado de grandes pensadores. Por exemplo, ao lado de Leonardo da Vinci, que escreveu: "Quem pouco pensa, muito erra." Não seria o caso de admitir que quem cita muito... muito acerta?
E tem mais. O citador compulsivo nunca está sozinho. Dentro dele dialogam centenas de pessoas, com frases redondas, aforismos intrigantes. O citador é um solitário acompanhadíssimo. Dizia isso com outras palavras, sem desconfiar que se referia ao citador, o poeta Carlos Drummond de Andrade: "A solidão gera inúmeros companheiros em nós mesmos."
Solitário, ensimesmado, o citador adora dicionários de citações. Passa horas em convívio intenso com centenas de pessoas que disseram algo relevante, mais ou menos inteiradas do poder de suas palavras. Montaigne mencionava os "doutores pela ciência alheia", mas talvez seja de fato impossível chegar ao "doutorado" de outro modo. Só Deus prescinde de citações, e todas as que Ele faz são citações por Ele mesmo inventadas!
A mania de citar, à medida que aprofunda suas raízes na mente do citador, transforma o citador num pensador original. Seu talento consiste em aplicar em contextos diferentes as frases que nasceram em diferentes lugares e tempos. "Por toda a minha vida eu vou te amar" perderá suas aspas na declaração de amor que o citador fizer com a paixão que o primeiro poeta jamais teve.
Citar é aceitar que alguém foi feliz em dizer algo que eu não disse antes. Mas é também aceitar outro fato. Ao citar tantos outros, poderei talvez, distraidamente, criar minhas próprias frases. Frases que, no futuro, outro citador compulsivo salvará do esquecimento.
Gabriel Perissé é doutor em Educação pela USP e escritor.
Website: http://www.perisse.com.br/
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