O afro-descendente e a construção do Brasil
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- Willian Luiz da Conceição
- 12/11/2009
A África foi a parte essencial da formação cultural, social e econômica de nosso país, cabendo aos negros, como afirmava Darcy Ribeiro, "ser a massa substancial da força de trabalho de construir o Brasil". Foram trazidos, principalmente, da costa ocidental da África. Não podemos analisar este continente como algo homogêneo, mas sim como um território de dimensões astronômicas, verdadeiro berço da humanidade. As especificidades dos diversos grupos humanos que habitam ou habitavam este continente são desconhecidas pelo senso comum que generaliza a África como um único padrão cultural, religioso, econômico e social.
Os grupos que supostamente vieram para alimentar a empresa escravista no Brasil, com o objetivo de desenvolver e explorar a colônia, a partir da produção de açúcar, assim como a mineração de ouro e metais preciosos, tiveram como base os povos Yoruba – denominados como nagô, pelos Dahomey –, chamados como gegê, e os Fanti-Ashanti, designados geralmente como minas. Estes, assim como outros menores grupos, vieram de regiões como Angola, Congo, Moçambique, Nigéria e Benin (antiga região do Daomé). Defende também Arthur Ramos (1940, 1942, 1946).
Todos estes povos possuem uma história extensa e dotada de grande complexidade. Muitos deles, anteriormente à dominação européia, produziam objetos de cerâmica, praticavam agricultura, conheciam a técnica da metalurgia e criavam gado. Organizam-se em estruturas complexas como Estados que possuíam comércio e utilizavam a moeda como expressão monetária.
Os milhões de africanos seqüestrados e trazidos para a América, principalmente para o Brasil, criaram de forma dolorosa tudo o que aqui se consolidou. Capturados e arrastados pelos pombeiros – mercador africano de escravos - utilizados pelos europeus para comercializar estes em troca de tabaco, aguardente e objetos de interesses destes grupos. A primeira leva de escravos transportados por navios continha cerca de 12 milhões de seres humanos. Destes, metade teve o Oceano Atlântico como cemitério. "Avaliado pelos dentes, pela grossura dos tornozelos e dos punhos, era arrematado. Outro comboio, agora de correntes, o levava terra adentro, ao senhor das minas ou açúcares, para viver o destino que lhe havia prescrito a civilização: trabalhar dezoito horas por dia, todos os dias do ano", Darcy Ribeiro (1995).
O escravismo foi estruturado em alicerces constituídos pela violência bárbara e desumana, pela concentração do solo, exploração das riquezas e pela monocultura. Esse sistema tinha também como projeto a desconstrução cultural dos povos africanos, como vinha fazendo com os indígenas – sem sucesso. A lingüística, parte da expressão e identidade fundamental de um povo, assim como outros aspectos culturais (como a religiosidade), foram manipulados para impedir que houvesse tentativas de resistência por parte dos africanos. A diversidade lingüística da África fez com que os portugueses evitassem a concentração de escravos originários das mesmas regiões étnicas em propriedades e navios negreiros. Assim buscavam destruir qualquer laço de identidade e solidariedade que houvesse entre o mesmo grupo.
Surpreendente é, ainda hoje, saber como os diversos povos africanos, assim como os indígenas, sofrem com as tentativas de desconstrução de sua cultura, sendo forçados a deixar suas crenças, sua compreensão de mundo, deixando de ser eles próprios, numa tentativa de transfiguração que não vinga. Estes, juntamente com os indígenas que restaram do grande etnocídio, assim como da miscigenação com o português, impossível de deter, formaram o povo que somos hoje, o brasileiro. Os negros e os indígenas impediram que nos tornássemos uma cópia da Europa. Impuseram, a partir de muita luta e resistência, novos padrões culturais que permanecem em todo o país, como o catolicismo brasileiro, as demais religiões, a culinária, a musicalidade, a força, o conhecimento, nossa beleza com os traços mais fortes, sem esquecer nossa subversão. Isto ainda é negado e marginalizado, o que faz dos afro-descentes vítimas de um processo de invisibilidade de uma sociedade de bases originárias e contemporaneamente marcada pelos preconceitos e pela exploração.
Muitos dos orixás trazidos da áfrica pelos escravos estão muito mais presentes na nossa cultura do que na cultura do continente negro. Os Orixás são as forças vitais que tudo geram e conduzem. É a natureza e toda a sua expressão, como as águas, a terra, as árvores, o mar, o ar, assim como esta força que nos faz levantar todos os dias ou o que nos dá sopro de vida. Os negros brasileiros são sinônimo de fé, de força e de sobrevivência. As religiões de origem africana foram fundidas nas senzalas unindo diversos mitos, costumes. Sincretizadas para deixarem de ser algo próprio e se tornarem algo brasileiro, como o catumbi, o candomblé, a umbanda e a macumba. Portanto, mitos como Iemanjá (a rainha do mar) sobrevivem em todo o território, do nordeste ao sul do Brasil.
Ainda hoje, mesmo com a generalização da pobreza, da violência entre brancos e negros, fruto de um sistema cada vez mais desigual e desumano, o negro é aquele que acarreta as piores condições de vida. São os que possuem o menor acesso à educação, ao emprego, à saúde e à moradia digna. São vítimas constantes do preconceito institucionalizado, sofrendo reflexos históricos nas periferias. Essas se transformaram nas senzalas modernas onde os negros continuam sendo castigados aos montes.
Apesar disto, temos o exemplo de que o negro vem, ao longo do tempo, resistindo a sua condição de exploração e superando-a através das organizações culturais, religiosas e políticas, na tentativa de destruir a falsa democracia racial que se publicizou e garantir um país onde as riquezas não sejam benefícios de poucos. Cabe ainda debatermos amplamente as condições e a dívida histórica que possuímos com o afro-descendente, assim como superarmos tal sistema, onde aqueles que produzem todas as coisas são os mesmos que delas são excluídos.
Willian Luiz da Conceição é acadêmico do Curso de História da Univille. Contato: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.
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Comentários
ações afirmativas nesse país.
Por coincidência meu nome também é Willian. Faço mestrado em teologia na Escola Superior de Teologia, São Leopoldo, RS. Li teu artigo no site correio da cidadania.
Gostei muita da tua reflexão. É muito importante fazermos estes debates e o apresentarmos na internet. Trazer para a discussão a contribuição
dos/as afro-descendentes para a construção cultural, econômica e social do Brasil. Esta é uma forma muito consequente dar voz a história de milhões de negros/as que
deram suas vidas, muitas vezes a contragosto é verdade/não sem lutar, para formar o nosso país. Justamente nesse dia em que vi o teu artigo e o li estava lendo e ouvindo
um tal Demétrio Magnoli falando sobre seu livro: Uma gota de sangue - História do Pensamento Racial. Me indignei e escrevi um pequeno texto de resposta para debatermos
o assunto aqui na faculdade, já que essas figuras estão constantemente nos meios de comunicação dizendo suas "asneiras acadêmicas" como se fossem intelectuais de
grande estirpe. Fazem uma leitura "ideologizada" e forçada de Gilberto Freyre, negam Darcy Ribeiro e Florestan Fernandes e chamam Boaventura de Sousa Santos de
ilusionista e mentiroso; como também faz muito bem Ali Kamel, diretor de jornalismo da Globo: "Não somos Racistas". Gostaria que pudéssemos debater melhor estes assuntos,
pois a grande mídia ocupa este espaço para cooptar a mente dos brasileiros.
Com esse tipo de pensamento é até possível sentir nas entranhas, ser possuído pelas cóleras que os/as negros/as e indios/as escravos/as sentiram. Essa conversa cooptada se presta a um de-serviço a sociedade. Todas as elucubrações de Demetrio Magnoli são baseadas na vida de um branco nascido burguês descaracterizando a escravidão africana. Para esse intelectual todos os problemas do mundo nascem com o iluminismo. A multiculturalidade é obra do nazi-facismo que propagou a diferença das famílias humanas, provocando a separação das etnias. Na cabeça dele a idéia de querer ser diferente é uma decisão política para tomar o poder. Todo mundo deve ser da raça humana global e aceitar esta realidade como o Reino dos Céus. Olha, sinceramente já no título se percebe a intenção de desarticular e descaracterizar a história de opressão dos negros e das negras. Em resposta a este título: “Uma gota de sangue” lembro de um outro título muito bom: “Navio negreiro” de Castro Alves. Vejamos alguns versos:
“Desce do espaço imenso, ó águia do oceano! Desce mais ... inda mais...
não pode olhar humano Como o teu mergulhar no brigue voador! Mas que vejo eu aí...
Que quadro d'amarguras! É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ... Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror!
Era um sonho dantesco... o tombadilho Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar. Tinir de ferros... estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite, Horrendos a dançar...
Negras mulheres, suspendendo às tetas Magras crianças,
cujas bocas pretas Rega o sangue das mães: Outras moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas, Em ânsia e mágoa vãs!
E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente Faz doudas espirais ...
Se o velho arqueja, se no chão resvala, Ouvem-se gritos... o chicote estala. E voam mais e mais...
Presa nos elos de uma só cadeia, A multidão faminta cambaleia, E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece, Outro, que martírios embrutece, Cantando, geme e ri!”
Concordo que só existe a raça humana, mas essa conversa fiada, dita acadêmica e séria, não sabe o que é ser chicoteado por ter trabalhado apenas 16 horas num dia. Esse tipo de livro é tão necessário que se fosse escrito na época da escravidão teria de ser lido por todo dono de engenho. Já nome de Demetrio se percebe a sua tendência a ignorância: "Significa consagrado à deus Demeter e indica uma pessoa que, embora inteligente e esforçada, encontra dificuldades para vencer na vida tão rapidamente quanto gostaria. O sucesso só vem depois que ele aprende que existe um tempo de plantar e um tempo de colher." Chegou a hora de plantar um discurso ótimo e rentável feito de helicóptero por cima da história e da realidade. Pois é, nesse mundo pós-moderno é possível plantar e colher coisas no ar e não mais na terra, mesmo que se diga que a planta é rasteira como o maxixe. Aliás, o que é maxixe mesmo?
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