A arte de ser feliz
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- Frei Betto
- 24/11/2009
Recebi de uma amiga este apelo: "Existe alguma receita capaz de fazer uma pessoa se apaixonar por algo - seja o que for??? Nem precisa ser coisa transcendental. Algo que dê um sentido à vida. Não que a vida seja desprovida de sentido, mas desprovida de sabor.
"É claro que estou me referindo a mim, e posso até estar sendo exigente demais, ou cruel demais com a minha pessoa. Mas é esta a reflexão de hoje, de agora. Me dou conta de que não tenho paixão alguma. Pelo menos é o que a minha mente me fala e o que percebo. Isso me faz sentir falta de algo...
"Tem gente que gosta de corrida de carros, de cavalos, de barcos. Gente que ama fazer tricô, escalar montanhas, meditar hoooooras a fio; gosta de ler, de ser médico, jornalista, político até. Puxa vida... como admiro isso. A vida frenética das cidades pulsa em algumas pessoas, e a vida pacata do campo em outras. Tenho alegrias e uma normalidade ética permeada por um bom senso bem bacana. Mas eu sinto (até irracionalmente), de forma muito forte, a impermanência.
"Um dia você disse que gostaria de ser semente. Refleti sobre e... nada aconteceu. O ritual inevitável da convivência e tudo o que envolve as relações interpessoais, somados a um bom astral, já cuidam disso. Queria me apaixonar. Ter um hobby. Qualquer um.
"Alegrias são muitas. Tenho o sorriso fácil... Mas a felicidade é coisa rara, de frágeis e preciosos momentos. Tenho uma implicância danada com aquela música do Zeca Pagodinho que diz: "...deixa a vida me levar... vida leva eu..." Quero sentir um sentido. A vida, o planeta, a diversidade religiosa etc., são assombrosos de tanto infinito. Mas permaneço no raso. Sem querer explorar o seu tempo e os seus insights... digo: gostaria de saber o que você teria a dizer sobre isso".
Fiquei pensativo. Há pessoas que me julgam portador de respostas para os impasses da vida. Mal sabem elas quantos acumulo em minha trajetória. Contudo, sei o que é felicidade. Difere da alegria. Felicidade é um estado de espírito, é estar bem consigo, com a natureza, com Deus. Com os outros, nem sempre. As relações humanas são amorosamente conflitivas. Invejas, mágoas, disputas, mal-entendidos, são pedras no sapato.
Alegria é algo que se experimenta eventualmente. Uma pessoa pode ser feliz sem parecer alegre. E conheço muitos que esbanjam alegria sem me convencerem de que são felizes.
Após meditar sobre a consulta de minha amiga, respondi: "Querida X: diria que a primeira coisa é sair da toca... Enturmar-se com quem já encontrou algum sentido na vida: a equipe de jogo de xadrez, a turma do cinema, de arte em casa, o grupo político, a ONG da solidariedade etc. É preciso enturmar-se, sentir a emulação que vem da comunidade, dos outros, esse entusiasmo que, se hoje falta em mim, exala do companheiro ao lado...
"Você pode encontrar a paixão de viver em mil atividades: ler histórias num asilo, ajudar voluntariamente num hospital pediátrico, costurar para uma creche ou participar de um partido político, um grupo de apoio a movimentos sociais; alfabetizar domésticas e porteiros de prédios ou se dedicar a pesquisar a história do candomblé ou por que tantos jovens buscam na droga a utopia química que não encontram na vida.
"Mas, sobretudo, sugiro mergulhar numa experiência espiritual. Mergulhar. É o que, agora, nesta manhã luminosa de Cruz das Almas (BA), me vem à cabeça e ao coração".
O sábio professor Milton Santos, que não tinha crença religiosa, frisava que a felicidade se encontra nos bens infinitos. No entanto, a cultura capitalista que respiramos centra a felicidade na posse de bens finitos. Ora, a psicanálise sabe que o nosso desejo é infinito, insaciável. E a teologia identifica Deus como o seu alvo.
Ninguém mais feliz, na minha opinião, do que os místicos. São pessoas que conseguem direcionar o desejo para dentro de si, ao contrário da pulsão consumista que faz buscar a satisfação do desejo naquilo que está fora de nós. O risco, ao não abraçar a via do Absoluto, é enveredar-se pela do absurdo.
Como o Mercado, que tudo oferece em sedutoras embalagens, ainda não foi capaz de ofertar o que todos nós mais buscamos – a felicidade -, então tenta nos incutir a idéia de que a felicidade resulta da soma dos prazeres. Possuir aquele carro, aquela casa, fazer aquela viagem, vestir aquela roupa... nos tornarão tão felizes quanto o visual dos atores e atrizes que aparecem em peças publicitárias.
Tenho certeza de que nada torna uma pessoa mais feliz do que empenhar-se em prol da felicidade alheia: isto vale tanto na relação íntima quanto no compromisso social de lutar pelo "outro mundo possível", sem desigualdades gritantes e onde todos possam viver com dignidade e paz.
O direito à felicidade deveria constar na Declaração Universal dos Direitos Humanos. E os países não deveriam mais almejar o crescimento do PIB, e sim do FIB – a Felicidade Interna Bruta.
Frei Betto é escritor, autor do romance "Um homem chamado Jesus", que a editora Rocco faz chegar às livrarias nesta semana.
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Comentários
É fato, a humanidade busca desenfreadamente por uma felicidade de carácter dúbio, justo que encontram-se imersos na vã filosofia capitalista, onde muitos acreditam que tal plenitude consiste em bens paupáveis e/ou estatísticas rentáveis.Se houvesse veracidade em tal suposição a felicidade por sua vez, assim como a globalização, se tornaria excludente, de sorte que os menos favorecidos seriam omitidos, extinguindo-os de qualquer perspectiva de ascenção.
Tal realidade pode ser confrontada com a tese de que a felicidade é um estado de espírito, de sorte que se a sua mente estiver confusa, agitada os bens materiais adquiridos jamais poderão lhe proporcionar felicidade.
Contudo pode-se concluir que felicidade está em conhecer os nossos limites e em apreciá-los.
Um abraço.
André (Patrocínio/MG)
Sempre me encantou buscar a sabedoria conversando com os mais velhos, os bem simples,os menos simples,lendo os clássicos, os textos de filósofos,olhando o mundo.
Acho meio difícil ser feliz sem refletir, sem um pensar tranquilo e profundo.E pensar sozinho nem sempre resolve. Precisamos do bom diálogo. As pessoas se precisam.
O seu belíssimo texto ajuda muito a um pensar profundo e traz felicidade.
Foi uma festa para a minha alma!
Grata
Maria Lucia
Melhor do que falar sobre a felicidade é sentir-se enraizado(a) nela... Na minha opinião,a felicidade é um sentimento que pode se tornar simples de ser cultivar, principalmente pela simplicidade de sua essência... Se usarmos, de forma correta, os instrumentos que nos são disponibilizados em nossos caminhos.
Gostamos de questionar sobre nossas emoções ou a falta delas. Procuramos achar uma explicação para os nossos sentimentos - comuns a todos... E que, na maioria das vezes, resistimos a aceitar as respostas... Que, na verdade, estão dentro de cada um de nós... Por isso a importância do autoconhecimento, do saber-se no mundo.
Só sei que não tenho vocação para a infelicidade... E descobri que a felicidade é uma escolha, um desejo imenso de fazer de cada momento da vida, algo que venha a se tornar compartilhadamente inesquecível... É acreditar que a convivência com a diversidade contribui para o nosso crescimento e que a descoberta do outro nos faz sentir mais iguais... E isso traz sentido a vida: descobrir-se no outro!... Consequentemente isso nos leva a um melhor empenho em prol da felicidade alheia, pois a felicidade se torna compartilhada... A felicidade não constitui-se isoladamente, apesar de estar tão dentro de nós...
Quando Drumond escreveu Desejos, descobri que a felicidade também pode ser encontrada na simplicidade do cotidiano e de pequenas atitudes – que, de tão simples, facilitam o entendimento de que a felicidade depende do desejo de compartilhar com o outro aquilo que nos emociona... E que a felicidade também pode ter cheiro e sabor... Confira:
Desejo a você... Fruto do mato... Cheiro de jardim... Namoro no portão... Domingo sem chuva... Segunda sem mau humor... Sábado com seu amor... Filme do Carlitos... Chope com amigos... Crônica de Rubem Braga...Viver sem inimigos.. Filme antigo na TV...
Ter uma pessoa especial... E que ela goste de você... Música de Tom com letra de Chico... Frango caipira em pensão do interior... Ouvir uma palavra amável... Ter uma surpresa agradável... Ver a Banda passar... Noite de lua Cheia... Rever uma velha amizade...
Ter fé em Deus... Não Ter que ouvir a palavra não... Nem nunca, nem jamais e adeus.
Rir como criança... Ouvir canto de passarinho... Sarar de resfriado... Escrever um poema de Amor... Que nunca será rasgado... Formar um par ideal... Tomar banho de cachoeira... Pegar um bronzeado legal... Aprender um nova canção... Esperar alguém na estação
Queijo com goiabada... Pôr-do-Sol na roça... Uma festa... Um violão...Uma seresta Recordar um amor antigo... Ter um ombro sempre amigo... Bater palmas de alegria... Uma tarde amena... Calçar um velho chinelo... Sentar numa velha poltrona... Tocar violão para alguém...Ouvir a chuva no telhado...Vinho branco...Bolero de Ravel...E muito carinho meu.
Um grande abraço, Frei Betto!
Sandra – Viçosa (MG).
Sair da toca e semear estrelas, pra mim esse deveria ser o lema universal dos direitos humanos.
Adiós FMI, àDeus FBI. Chega de ismos, istmos, ilhas de calor...
Rumo à FIB!!!
como sempre frei betto nos transmite raios de luz...obrigado
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