Correio da Cidadania

Argentina: um governo arquirreacionário a ser combatido desde o começo

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A vitória eleitoral (ainda que por pouca margem) e a posse de um governo de direita neoliberal encabeçado pelo multimilionário Mauricio Macri, tem óbvia importância continental. E, com mais razão, porque nesses momentos na América Latina os governos e regimes chamados “progressistas” passam por situações difíceis, ainda que em graus muito distintos e características próprias em cada caso.

 

Fazer um quadro completo e orgânico deste importante fato político é impossível. Aqui nos limitaremos a examinar alguns pontos relevantes do fenômeno.

 

Crise dos governos “progressistas” na América Latina; tendências regionais e mundiais

 

Um elemento de importância no triunfo de Macri e sua heterogênea coalizão – “Cambiemos” – é seu impacto regional. Porém, seu triunfo não é um raio em céu azul. A deterioração do progressismo regional não é novidade, senão fruto de um acúmulo de anos. A priori, o governo kirchnerista não se destacava como o mais deteriorado. E no começo de 2015 ninguém poderia prever que o candidato que apoiasse Cristina Kirchner seria derrotado nas eleições por um neoliberal puro e duro como Macri.

 

Isto nos remete não apenas à Argentina, mas também aos panoramas em que estão governos como os da Venezuela, Equador, Brasil e Bolívia.

 

Entre eles e as situações em que se encontram há enormes diferenças. Também é verdade que suas dinâmicas não são idênticas. De todos os modos, o que unifica em primeiro lugar é que todas elas foram, em maior ou menor medida, governos burgueses “anormais”. Apoiaram-se em diversos setores populares, aos quais deram concessões maiores ou menores, mas sem revolucionar minimamente as estruturas econômicas e sociais do capitalismo dependente. Simultaneamente, tiveram oposição das maiorias burguesas de seus países; uma oposição mais ou menos raivosa ou tolerante, segundo os casos e momentos.

 

Suas relações com o imperialismo ianque – senhor absoluto da América Latina nos anos 90 – tiveram traços parecidos. Sem ir realmente a uma ruptura revolucionária (tampouco no caso “extremo” da Venezuela), estabeleceram uma certa autonomia, de amplitude também muito diferente em cada caso.

 

Como assinalamos, este conjunto de regimes e governos vinha arrastando distintos graus de crise.

 

Na Bolívia, país onde foi mais profunda a revolta popular, a destruição do velho sistema de partidos foi completa e a oposição burguesa não conseguiu se recompor até hoje.

 

No Equador, Correa apresenta um grau ainda maior de desgaste, mas não o suficiente, até agora, para derrubá-lo. O destino se joga em torno da possibilidade ou não de sua reeleição na presidência.

 

A Venezuela está vivendo a decadência do chavismo. Se havia resistido até agora, foi pelo repúdio popular ao caráter pró-imperialista e direitista extremo da oposição esquálida. Mas o desastre descomunal do governo de Maduro empurrou milhões de eleitores chavistas a dar um “voto castigo” que deixou o parlamento em mãos da oposição.

 

E no Brasil, ainda com Dilma reeleita, a crise de governo é profundíssima. Dilma fez o mesmo que haveria feito Scioli (candidato kirchnerista na Argentina): aplicar um duríssimo ajuste econômico que finalmente não lhe garantiu o apoio da direita, mas o aborrecimento de amplos setores operários e populares.

 

Na Argentina, a eleição de Macri marca uma guinada para a direita de impacto regional. Isto faz parte, por sua vez, de uma conjuntura mundial completamente adversa, marcada pelos atentados do ISIS em Paris e suas consequências políticas (entre elas o avanço da Frente Nacional na França e a legislação repressiva do “Estado de Urgência”), os bombardeios imperialistas na Síria e a profunda degradação reacionária da Primavera Árabe.

 

É importante sublinhar que falamos de conjunturas, não de algo que haja finalizado intencionalmente o ciclo de rebeliões populares, nem de que se imponham universalmente as alternativas mais reacionárias. Convivem mundialmente tendências reacionárias e progressistas. Nesse momento, a primeira domina a segunda.

 

Guinada conservadora e “voto castigo na Argentina”

 

A materialização destas tendências contraditórias expressou-se na Argentina com o triunfo eleitoral no pleito do domingo 22 de novembro.

 

Vitoria apertada. Um pouco mais de 51% dos votos contra 49%. Uma parte considerável dos votos de Mauricio Macri, mais que seus “próprios votos”, são “votos de protesto” ou mais precisamente “votos de castigo”. Os eleitores mais que votar por ele, votaram contra o candidato oficial da Frente para a Vitória (FpV), Daniel Scioli.

 

Este resultado que se voltou para a direita obedece uma série de fatores. Em primeiro lugar, paradoxalmente, deve-se ao êxito dos três governos sucessivos kirchneristas – o de Nestor Kichner (2003/2007) e os de Cristina Kirchner (2007/2011 e 2011/2015) – na reconstrução da “normalidade” burguesa da Argentina.

 

Esta “normalidade” se havia perdido com a eclosão da imensa rebelião popular de dezembro de 2001 – o conhecido “Argentinazo” -, que fez o presidente Fernando de la Rua fugir de helicóptero do teto da Casa Rosada (sede do poder executivo) quando se viu rodeado por uma multidão enfurecida que havia vencido as forças repressivas.

 

Nestes doze anos, o kirchnerismo se comprometeu com sucesso, em primeiro lugar, em absorver a rebelião popular e reconstruir as "instituições". Para isso, em seus primeiros anos, ele foi favorecido pelo ciclo econômico global de altos preços das commodities (neste caso, a soja).

 

Este tem sido um processo complexo, com contradições e surpresas. Mas hoje devemos ressaltar que desta somatória de tendências de estabilização foi possível reconstruir a legitimidade das instituições de gestão do regime "democrático". Concomitantemente, foram reconstruídos os mecanismos de representação eleitoral.

 

O resultado tem sido uma reformulação no regime presidencial e o fim dos ciclos políticos extraordinariamente "tranquilos" para o habitual na Argentina.

 

Por outro lado, também marca o início de um novo ciclo qualitativamente mais conservador de direita. No entanto, este não prevê automaticamente um período de paz social e política. A perspectiva mais provável é que aconteça o contrário. É que, nas condições atuais, o porvir de Macri, de um governo burguês "normal" (ou seja, voltado para a direita) se depara com o fato de que a relação social de forças impostas pelo "Argentinazo" 2001 não se modificou de forma substancial.

 

Macri e seu governo composto principalmente por executivos das corporações tenta aplicar medidas brutais contra o movimento dos trabalhadores e das massas... Medidas que, naturalmente, não foram anunciadas na campanha eleitoral. Mas para fazer isso pretendem enfrentar uma classe operária e as massas que tenham sido previamente derrotadas. E nos poucos dias de governo Macri, em meio ao clima natalino e de fim de ano, houve várias manifestações e lutas, algumas muito intensas que não resultaram em derrotas. Dentre essas se destacou a luta dos trabalhadores municipais de Córdoba (a segunda cidade do país), onde a votação para Macri foi esmagadora, o que não impediu a eclosão do conflito, cujo levante até agora o governo não conseguiu vencer.

 

Esta situação também tem sua base política. Como dissemos, boa parte do voto por Macri foi mais um “voto castigo” ao kirchnerismo, por diversos motivos. O voto “próprio” do macrismo é essencialmente o da burguesia e das classes médias “acomodadas”. Mas esse voto, nem na Argentina e nem em lugar nenhum do mundo, ganha uma eleição. É necessário enganar a setores mais amplos para que votem contra seu interesse (1).

 

Macri triunfa porque consegue ganhar o voto dos setores médios mais empobrecidos, incluindo parte de uma nova classe operária industrial. Este último é insólito na tradição política argentina, na qual se caracterizava a classe operária e trabalhadora como a coluna vertebral do peronismo. Obviamente, não a cabeça, que sempre foi burguesa.

 

O voto deste setor operário se baseou principalmente na promessa de que Macri terminaria com o chamado “imposto do salário”, somado a outras ilusões (“honestidade” etc.). Porém, mais além de que essas ilusões tenham vida curta, tal voto ilumina um traço radicalmente diferente tanto do kirchnerismo como do resto do movimento social-populista da atualidade, em relação aos do século 20.

 

Na Argentina, o inicial nacional-populismo peronista se assentou essencialmente na classe trabalhadora. Perón se proclamava “o primeiro trabalhador”. Hoje, sua versão do século 21, o kirchnerismo se assenta essencialmente em outros setores – por um lado, setores de classe média “progressista”, com amplo componente juvenil, politizados pelo “argentinazo”; e por outro lado, setores populares mais pobres, beneficiados pelo assistencialismo.

 

Salvando as distâncias, algo parecido sucede com o restante dos nacional-populismos da América Latina. Na Bolívia, Evo se apoia na COB (Central Obrera Boliviana) e sobretudo em organizações indígenas, populares e camponesas. Na Venezuela, Maduro conseguiu perder a sustentação das maiorias trabalhadoras. E ainda que Chávez inicialmente o teve, seu movimento nunca se baseou essencialmente na classe trabalhadora.

 

O “voto castigo” anti-kirchnerista de parte da nova classe trabalhadora tem sua “racionalidade” em que, à diferença do sucedido com Perón (em sua primeira presidência), hoje nas fábricas reina a exploração neoliberal mais selvagem, e não um avanço de “conquistas sociais” como no peronismo das raízes. Isto, lamentavelmente, deu audiência ao venenoso discurso da direita de que, enquanto os trabalhadores se matam trabalhando, o governo kirchnerista rouba, mediante impostos, uma parte do salário para dar de comer aos “vagabundos que não trabalham” e que “vivem dos programas sociais”.

 

Desmascarando um governo autoritário, cujas primeiras medidas implicam uma brutal transferência de recursos em beneficio dos capitalistas

 

As fábulas neoliberais a favor “dos que trabalham” duraram pouco. Ao assumir, Macri começou a mostrar seu verdadeiro rosto, não somente anti-operário e antipopular, senão também autoritário e servente das multinacionais e do imperialismo.

 

Seu gabinete, como já falamos, é um zoológico de gerentes e executivos de grandes empresas, principalmente de multinacionais imperialistas, cujos interesses estão em colisão direta com as empresas do Estado, em particular, e da Nação em geral.

 

Um governo que deve administrar a importante petroleira estatal YPF nomeia executivos da Shell. O mesmo, em outros ramos, como a aviação. O Estado possui as Aerolíneas Argentinas, ressuscitadas depois que as privatizações dos 90 praticamente as destruíram. Macri a designa então a ex-executivos da LAN, sua principal competidora.

 

Por suposto, seu alinhamento internacional é de sentimento subalterno a Washington. Uma de suas primeiras iniciativas foi investida contra a Venezuela, algo que mesmo os governos mais pró-imperialistas da América Latina evitam comprometer-se abertamente.

 

Ao mesmo tempo, a demagogia "democratista" da sua campanha eleitoral se desvanece e deixa o lugar para medidas autoritárias sem precedentes, que se impõem como sistema de governo.

 

Durante vários meses, até o começo do período ordinário de sessões do Congresso, Macri decidiu governar mediante "decretos de necessidade e urgência", equivalentes às leis votadas no Poder Legislativo. O Rei Mauricio I poderia convocar o Congresso a sessões extraordinárias que considerem seus projetos de lei. Mas o "defensor da República" decidiu governar ao estilo das Juntas Militares ou das monarquias absolutas.

 

Isso é válido como um primeiro tropeço. Mediante um desses "decretazos", nomeou dois novos juízes da Suprema Corte. A medida desatou não somente um repúdio generalizado, senão também duras críticas dentro da coalizão que o sustenta e que se dividiu, deixando-o em minoria. Finalmente, Macri teve que dar um passo atrás. É que o partido de Macri tem uma débil estrutura orgânica, que não vai mais além da cidade de Buenos Aires e algumas outras zonas. O resto do país o cobre com a heterogênea e fragmentada coalizão "Cambiemos", útil para ganhar eleições presidenciais, mas que não lhe garante governar e menos ainda transformar-se em uma espécie de imperador.

 

Mas antitrabalhador e antipopular das suas medidas de governo - e o mais importante - são os "decretazos" econômicos. Estes dispõem de uma monumental transferência de recursos em benefício dos capitalistas.

 

Isto se concreta ao ajuste econômico brutal que Macri vem implementando desde o primeiro dia de sua gestão, e que agora se expressa em uma desvalorização do peso argentino em 50%. Automaticamente, quase todos os preços subiram nessa mesma proporção... Ou seja, todos os preços, menos o preço do trabalho; em outras palavras, o salário. E também, logicamente, subiram as pensões de aposentadoria e jubilações.

 

Para dizer a verdade, são as desvalorizações na medida mais rutilante de uma série de anúncios em matéria econômica que descarregaram o custo do ajuste sobre os trabalhadores - em atividade ou aposentados.

 

A isso se anexam outras medidas pró-patronais que agravam a vertiginosa subida dos preços e o congelamento dos salários. Entre elas, a eliminação das retenções (impostos sobre exportação) do trigo, do milho e da carne, e a redução das taxas sobre a soja.

 

Como se por si só as medidas de Macri não bastassem, ainda vão limitar os subsídios ao consumo de água, gás e eletricidade para os setores mais populares. Assim mesmo, estão em curso aumentos igualmente siderais nos transportes que usam os trabalhadores (metrô, trens metropolitanos, ônibus etc.).

 

Em suma, uma brutal transferência de recursos dos de baixo para os de cima: desde os trabalhadores e setores populares em benefício dos capitalistas da cidade e do campo, aos grandes holdings empresariais e as multinacionais.

 

Esse é o verdadeiro conteúdo do governo de Macri: um governo dos poderosos, dos de cima, dos capitalistas, que considera ter a margem de lucro política suficiente (a luta de classes dirá se isto é assim mesmo ou não) para deixar de lado toda concessão aos trabalhadores e também toda a forma democrática.

 

O decisivo: como reagirão os trabalhadores

 

Aqui é onde se coloca, então, a pergunta decisiva: como vão reagir os trabalhadores diante de tão brutal ataque? Agora porão à prova as verdadeiras relações de forças vigentes.

 

O governo tem uma base social de importância entre as classes médias enriquecidas do campo e da cidade, as patronais e os grandes holdings do imperialismo. Todos eles o apoiam raivosamente.

 

São os trabalhadores os que não revestem "suas filas". É que apesar da confusão, da falsa crença de alguns de que com Macri "estaria melhor" e apesar de muitos em fábricas terem nele votado, diante da brutalidade das medidas inevitavelmente começará um despertar.

 

A soma do ajuste, os aumentos de preços, a retirada de subsídios, o desengano com o governo "da mudança" e da "felicidade" pode começar a transformar o cenário em um "caldeirão social", uma "onda de pressão".

 

Macri teve a seu favor o fato de desferir esse ataque em meio às "festas de fim de ano", quando merecidamente os trabalhadores desejam tomar um descanso das angústias cotidianas.

 

Macri também conta com os favores da burocracia sindical. Nenhuma das centrais sindicais parece disposta a mover um dedo, ao menos até agora. As desculpas destes burocratas vendidos são as de sempre: que o novo governo está recém-eleito, que a culpa é do governo que se foi, e que as pessoas votaram por isso... E mais argumentos no mesmo estilo. A realidade é que a burocracia não vai mover um dedo até que aconteça algo por baixo.

 

Organizar-se para derrotar o governo

 

Simultaneamente, é de baixo que começam algumas mobilizações e conflitos.

 

As medidas do Governo vão ajudar a esclarecer seu verdadeiro caráter. É preciso lançar uma ampla campanha de denúncias e esclarecimento do ajuste e demais medidas reacionárias, incentivar os trabalhadores e dar-lhes alento para que comecem a se organizar desde abajo, impulsionar todo tipo de reuniões para esclarecer o verdadeiro caráter de Macri, que se comece a pensar em como sair a lutar, sustentando assembleias nos andares de baixo etc.

 

Para março próximo, está sendo programado um Encontro dos trabalhadores. A reunião deve servir para impulsionar essas tarefas. Em parte será também para elaborar uma agenda de reivindicações ao conjunto dos movimentos da classe trabalhadora, que inclua o adiantamento das paritárias, exigência de um abono de 10.000 pesos que compense o aumento dos preços, declaração de Estado de alerta frente a qualquer retirada ou suspensão, assim como se deve começar a reivindicar junto às centrais sindicais uma greve geral ativa contra o governo ajustador.

 

Essas são as bandeiras que se colocam no centro da atividade dos lutadores da classe trabalhadora, da juventude e da esquerda no ano que se inicia.

Nota:

1) Salvo que, como nos EUA, se obstaculize a participação dos “indesejáveis” (pobres, negros, latinos) ou, como na Europa, se promova tacitamente a abstenção e despolitização de setores que possam “votar mal”, como a juventude.

 

Roberto Ramirez é editor da revista argentina Socialismo o Barbarie (http://www.socialismo-o-barbarie.org/)

Traduzido por Raphael Sanz, do Correio da Cidadania.

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