Correio da Cidadania

Direito Internacional precisa enfrentar extraordinárias violações e injustiças na Palestina

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Somos todos inimigos?

 

Arremeter militarmente contra a população civil – homens, mulheres, crianças, idosos – e atingir propositalmente casas e escolas são uma grave agressão que se dirige não só àquele a quem se considera inimigo, mas a todos os seres humanos, e constitui uma conduta inaceitável nos marcos mais gerais da moral e do Direito que rege as relações internacionais.

 

Por essa via condenável, inimigos somos todos, é dizer, a espécie conformada por indivíduos racionais, livres e iguais, conscientes de uma cultura moral e jurídica que deve primar pelo respeito à paz, à segurança e à manutenção e efetivação de um código ético de respeito pela natureza do ser.

 

Também nessa perspectiva, a sujeição intencional de um grupo social a condições de vida que o privem do acesso a alimentos ou medicamentos, sua perseguição por motivos políticos, étnicos, religiosos ou de qualquer outra ordem, como se expõe no caso palestino, é um crime contra a humanidade nos termos do artigo 7º do Estatuto de Roma.

 

Na agressão de Israel à Palestina, extrapolaram-se há muito os limites de compreensão a que nos desafiam os estudos da geopolítica e do controverso e antigo Direito da guerra. Talvez pareça ingênuo dizer, repetir e voltar a dizer que nenhum Estado pode estar por cima da consciência civilizatória que orienta a solução política dos conflitos, nem por cima da edificação, a muito custo, de um arcabouço valioso de textos normativos destinados a conter a atuação irresponsável e militarista dos Estados, em benefício da vida e dos direitos humanos.

 

As circunstâncias obrigam a elevar essa voz. Como também a dizer com todas as letras que não é mais possível admitir a impunidade, especialmente quando se causa sofrimento com tamanha intensidade e intencionalidade.

 

Guernica e Gaza

 

A Agência da ONU para Assistência aos Refugiados (UNRWA) há muitos anos dá a conhecer o drama dos migrantes forçados palestinos. Calcula-se que hoje são mais de 5 milhões vivendo em 58 campos distribuídos entre a Jordânia e a Faixa de Gaza (na Jordânia, há 10 campos, no Líbano, 12, na Síria 9, na Cisjordânia, 19 e na Faixa de Gaza, 8 campos de refugiados) e o número de pessoas cresce expressiva e justificadamente nas últimas três semanas como resultado da ofensiva. Contudo, os próprios campos sofrem a agressão e o dado inocultável é que mais de um terço das vítimas são civis.

 

A atuação de um Estado com tamanha potencialidade de destruição somente pode ser explicada em sã consciência pelo apoio que direta ou indiretamente recebe dos seus cúmplices, bem como da sensação de impunidade que se gera pela ausência de efetividade dos dispositivos internacionais de proteção dos direitos.

 

Sem dúvida, as Convenções de Genebra, as normas do Direito Internacional Humanitário e do Direito dos Refugiados, de 1951, que proíbem os ataques intencionais a civis e ao pessoal, às instalações, materiais e unidades que participem de atividades humanitárias, constituem um arsenal jurídico considerável, mas que somente tem efetividade na medida em que a comunidade internacional os assuma e os plasme na realidade a partir da responsabilização das autoridades que promovem, organizam e executam tais ações.

 

Até hoje os Estados Unidos se opõem a que a Palestina seja considerada Estado membro pleno da ONU. Um direito pautado nas balizas mais elementares do Direito Público nacional e internacional, ao qual a ONU, pelas suas lideranças gélidas, parece não prestar maior atenção. E a vida cotidiana em Gaza é a de uma população concentrada, ameaçada e agredida.

 

Nada mais próximo aos fatos atuais que a destruição de Guernica, a pequena vila indefesa do norte espanhol, que em 26 de abril de 1937 foi alvo de uma das maiores covardias militares do desgoverno de Franco, que ocasionou comoção internacional e provocou a contestação expressiva de Picasso, em obra de arte impressionante tanto pela sua grandeza quanto pelo retrato fiel da crueldade.

 

História e partilha

 

Lê-se em numerosos documentos históricos que os judeus não foram os primitivos ocupantes da Palestina e que durante quase 19 séculos o povo judeu quase deixou de existir no território palestino. De 587 A.C. até o século 20, o território foi governado primeiro por pagãos, depois por cristãos e finalmente por muçulmanos. Rastrear a história indica que os palestinos resistiram às invasões de muitos outros povos, e que a ocupação judaica foi transitória.

 

Difícil duvidar que os palestinos não sejam, em legítima continuidade histórica, descendentes dos canaanitas, dos filisteus e de outras tribos que habitavam primitivamente o país. É essa linhagem que tem se mantido, apesar da introdução de outras cargas genéticas como a grega, a romana e a dos árabes muçulmanos, até serem desalojados por Israel em 1948.

 

Lê-se, também, nos Anais da Câmara dos Lordes britânica, que em 2 de novembro de 1917 Arthur Balfour, o ministro das Relações Exteriores, conseguiu aquilo que Oliver Cronwell não conseguiria dois séculos atrás: a imigração judaica tornaria a Palestina uma “Bélgica Asiática” e seria uma fundamental vantagem geopolítica para o Império britânico no Oriente Médio.

 

Belfour, em sintonia com as exigências do Congresso Sionista da Basileia de 1897, comunicou que a Grã Bretanha “encara como favor o estabelecimento na Palestina de um Lar Nacional para o povo judeu”.

 

Para quem olha pelo lado do Direito, preocupado com as complexas interações do fenômeno jurídico com a política, a primeira questão que salta à vista é a nulidade do Documento. A Inglaterra realizou ato de disposição sobre um território que não lhe pertencia. Cumpre com justiça dizer que, para além da resistência árabe, os judeus britânicos e os judeus na Palestina rejeitaram tanto o documento quanto a pretensão sionista.

 

Mesmo assim, Balfour declarava, na contramão dos princípios jurídicos que começavam a ser desenhados e exigidos como a autodeterminação dos povos e a não intervenção, que, “na Palestina, não propomos mesmo agir sob a forma de consulta aos desejos dos atuais habitantes do país... As 4 grandes potências estão comprometidas com o sionismo, seja um conceito certo ou errado, apoiado em necessidades presentes e futuras, muito mais importantes que qualquer desejo ou preconceito dos 700 mil árabes que agora vivem na região” (Documents on British Foreign Policy. 1919-1930).

 

Em suma, a Declaração Balfour foi mais um ato de colonialismo, juridicamente a Palestina foi encarada como um território sem população, uma demonstração incisiva do domínio inglês na Liga das Nações e um prenúncio das pretensões dos Estados Unidos no Oriente Médio, que logo tornariam predominantes os interesses geopolíticos por sobre os princípios do Direito Público.

 

Aponte-se que a partilha no final da primeira guerra, como aponta D. Frokmin, reinventou o Oriente Médio em favor das potências europeias, pois Grã-Bretanha e França se fizeram outorgar os territórios árabes com mandato da Liga das Nações, ficando o primeiro com o Iraque e a Palestina e o segundo com o Líbano e a Síria. Tais pretensões de dominação nunca desapareceram da lógica de atuação das potências da nossa época.

 

Anos depois, Shabtai Rosenne, o representante de Israel na ONU, sustentava que o status jurídico da Declaração Balfour (...) pode estar aberto à discussão, mas o problema é secundário, em vista de que a Liga das Nações a incorporou no Preâmbulo do Mandato sobre a Palestina”.

 

A decisão orquestrada da política externa inglesa apareceu sob torpes argumentos como instrumento para ratificar o acordo. Aqui, mais uma vez, detecta-se uma nulidade jurídica, porque incluir um ato nulo num mandato válido, no caso concedido à Grã Bretanha, não torna necessariamente o ato juridicamente nulo como válido. Especialmente se a nulidade é tão notória.

 

E lê-se, ainda, nos documentos da Conferência de Paris, de 1919, que o fundamento da Organização Sionista, em memorando dirigido ao Supremo Conselho das Potências Aliadas, exige o reconhecimento ao título histórico do povo judeu sobre a Palestina e o direito de reconstituírem na Palestina seu Lar Nacional, isto é, o chamado Título Histórico, cujo núcleo é a afirmação de que a violência expulsou os judeus da Palestina.

 

A troca sionista consistente no apoio incondicional às pretensões inglesas foi embasada, como aponta MacMillan, com argumento histórico-jurídico: a memória é o direito, o direito à terra sagrada. Entretanto, essa visão espiritual perde-se no pragmatismo da história do Estado de Israel, que se posicionou político-militarmente como sustentáculo de controle geopolítico na região, favorecendo as potências vinculadas a sua origem em 1948.

 

O propósito era tão inviável que consta que a Comissão criada na época pelo presidente Woodrow Wilson – King Craine Comission – declarou formalmente que aquilo não poderia ser levado a sério.

 

E com certeza, juridicamente, não há como legitimar posse por sobre territórios não marítimos com fundamento em títulos históricos. O’Conell e o próprio H. Cattan advertem que a expressão somente pode ser usada no Direito Internacional no sentido de título sobre território marítimo que se tenha feito sob posse adversa como no caso de ‘águas históricas’. Imaginemos, lembram os autores, se, tendo em vista ocupações temporárias na alvorada da história, os Estados tivessem a possibilidade de pleitear territórios. A insegurança internacional seria muito maior e as bases da soberania como fundamento dos direitos e da nacionalidade seriam corroídas.

 

A história registra que foi por mandato da Liga das Nações que entre 1922 e 1948 a Inglaterra administrou a Palestina. Seu objetivo, cumprindo o compromisso inicial, era a efetivação da Declaração Balfour de 1917 para facilitar a imigração judaica. O sionismo aproveitou a imigração e forçou em 1947, com o próprio apoio britânico e dos Estados Unidos, o estabelecimento do Estado de Israel.

 

H. Temperley, na sua conhecida História da Conferência de Paz de Paris, denunciou como o mandato da Liga das Nações em favor da Inglaterra teve a “consulta aos representantes sionistas na Conferência”. E como era de se esperar e anota o autor: os palestinos não foram consultados.

 

Por isso, a Declaração Balfour não pode ser considerada, nem de longe, uma concessão juridicamente válida ao Sionismo sobre qualquer direito sobre a Palestina. E isso está claro para a comunidade internacional e para os judeus não sionistas que, por sinal, são merecedores de reconhecimento da comunidade internacional por toda a contribuição que a cultura judaica tem entregado para o desenvolvimento da humanidade.

 

Por sinal, há valioso artigo de Beatriz Kushnir nos Cadernos CONIB, a Confederação Israelita do Brasil, do primeiro semestre deste ano, sobre a heroica participação de jovens de ascendência judaica na contestação e luta contra a ditadura militar brasileira.

 

Retomando o percurso e, como aponta H. Cattan, a história do mandato inglês e a história da luta dos palestinos contra a Declaração Balfour, a imigração judia e o estabelecimento do lar nacional judeu: contenda desigual contra o Império britânico e as forças do sionismo, que aliadas governaram como se a Palestina fosse um domínio colonial. Até que incapaz de prosseguir diante da pressão sionista e a resistência palestina, a Inglaterra entregou à ONU a questão do futuro governo do território.

 

A Resolução de partilha territorial por parte da ONU, em 1947, demonstrou a fragilidade da recente organização. A pressão da Doutrina Truman – os Estados Unidos têm que assumir responsabilidades mundiais que a Inglaterra não pode mais assumir – a muitos outros Estados e seu acordo com o sionismo foram denunciados mais de uma vez, especialmente diante do parecer da Comissão nº 2 ad hoc: “(nem a Assembleia Geral, nem qualquer outro órgão das Nações Unidas são competentes para imaginar ou, ainda menos, recomendar ou fazer executar qualquer solução que não seja o reconhecimento da independência da Palestina e de que a solução para seu futuro governo é uma matéria unicamente para o povo da Palestina (...) além do mais, a partilha envolve a alienação de território e a destruição da integridade do Estado da Palestina. A ONU não pode fazer uma disposição ou alienação de território, nem pode privar de seu território a maioria do povo palestino e transferi-lo para o uso exclusivo de uma minoria do seu país” ( Atas oficiais 2 º sessão AG. ONU 14/32 11.11.1947 p.276).

 

Vale a pena dizer que o jurista da talha de Kelsen, em seu The Law of the United Nations, considerava que a Resolução de Partilha ia além da competência da ONU, que consistia em fazer recomendações, bem como que os argumentos dos Estados Árabes em oposição à Resolução eram inteiramente corretos.

 

A ONU, por outro lado, constatava que, nas Estatísticas de Aldeias do Governo da Palestina, de um total de 26.323.023 dununs (um dunun equivale a 1000 metros quadrados), os judeus possuíam, em 1947, 1.491,699 dununs e os árabes palestinos 12.574.774. O plano de partilha, quando executado, outorgou aos judeus 14.500 quilômetros quadrados (57% da área total), um território 10 vezes maior que aquele que ocupava, incluindo as terras férteis da planície costeira. Os palestinos foram despojados literalmente e assumiram as terras montanhosas e de maior dificuldade para a agricultura.

 

O Estado de Israel de hoje não tem nada a ver em extensão com o Estado judeu previsto na partilha. Sua natureza sionista expansiva o fez ignorar as fronteiras inicialmente traçadas, avançando a mais de 80% das terras palestinas, o que ocasionou o deslocamento forçado de mais de um milhão de palestinos. Na guerra israelense-árabe de 1967 terminaram ocupando toda a Palestina e territórios pertencentes a três Estados árabes vizinhos.

 

Uma resposta jurídica e política unificada

 

A continuidade da história é a do exercício do poder, e já diz com toda razão J. L. Fiori que o poder político é mais fluxo do que estoque, pois precisa ser reproduzido, acumulado permanentemente. E o poder militar de Israel é seu instrumento de conquista e acumulação de poder e, para o império que o sustenta, o mecanismo de defesa e preservação do seu poder.

 

Contudo, nenhum Estado desfruta legalmente de “licença para matar”, embora seja reconhecido que a própria ONU foi o resultado de um pacto militar de vitoriosos e não uma necessária superação de ameaça futura da guerra. Corrobore-se que, com a Resolução de Partilha de 1947, o Estado de Israel assumiu o compromisso de respeitar os direitos humanos e as liberdades de todos os habitantes do território que lhe foi designado.

 

Entretanto, na dialética entre os compromissos e a atuação é que irrompe a impunidade. Sabidamente, as violações aos direitos humanos por parte do Estado de Israel contra a população palestina têm sido constantes desde o início, e intensificadas após a ocupação da margem ocidental do Jordão e a Faixa de Gaza. Israel ignorou as Resoluções da ONU que requereram o cessar das agressões e a permissão para que famílias palestinas retornassem a seus lares. Esse espiral de violência estimula as patologias e o revanchismo que abalam as bases do Direito à Paz, reconhecido pelos povos do mundo.

 

A segurança humana, que deve se concentrar na proteção das pessoas, impõe uma reação que inclui a necessidade de efetivar o direito de ser amparado diante do avanço de impérios e agressores. E a ONU é a chamada a realizar os atos que possibilitem essa proteção. É seu dever e seu compromisso. Sua omissão, por sua vez, ratifica que o internacionalismo, como fórmula elevada de solidariedade, continua a ser algo presente, necessário e com evidente potencial transformador da ordem internacional, na qual a perspectiva é a conquista de direitos através da ação coletiva dos povos.

 

A situação da Palestina, como conclui Henry Cattan, é o resultado de uma extraordinária acumulação de injustiças, ilegalidades e violações de toda espécie: violações do Direito Internacional; violações das Resoluções nas Nações Unidas; violações dos direitos humanos e das liberdades fundamentais.

 

Israel já está moralmente condenada. A revelação de condutas que configuram juridicamente genocídio, conforme as convenções internacionais, contra o povo palestino gerou uma reprovação que tomou as ruas. Restam as condenações jurídica e política.

 

No caso há que equilibrar as fórmulas para a paz com a responsabilização e condenação da agressão. As sanções não podem atingir o povo de Israel, muitos judeus são contra a ofensiva e o genocídio. Em tais condições, as sanções econômicas que, no mais das vezes, condenam o povo não são eficazes. Por isso as punições devem ser seletivas e concentradas nas autoridades responsáveis pelas condutas condenadas. Esse leque sancionatório também deve incluir o embargo de armas e o encerramento dos programas de cooperação militar.

 

No primeiro plano, uma resposta unificada da América Latina, encabeçada pelo Brasil, condizente com uma diretriz humanista da política externa, de não indiferença apenas na teoria, mas que na prática redunde em ações positivas em prol da recuperação e reconstrução da Palestina, é fundamental.

 

E, certamente, toda esta situação deve interessar ao Direito e, particularmente, ao Direito Internacional, que deve se mostrar útil como arsenal propositivo para a proteção dos direitos, alicerçado no valor da dignidade humana e na perspectiva de contribuir à superação do abismo entre a realidade e a legalidade no plano das relações entre sociedades e culturas. A autodeterminação, o reconhecimento dos direitos do povo palestino, o desmantelamento dos assentamentos nos territórios ocupados, o cesse da ocupação de Israel e, especialmente hoje, o fim dos ataques ao povo palestino que configuram crimes contra a Humanidade são uma contundente exigência jurídica internacional.

 

 

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Pietro Alarcón é professor das Faculdades de Direito e Relações Internacionais da PUC/SP.


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