Correio da Cidadania

Che: economia e revolução

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Após o triunfo da revolução cubana, em janeiro de 1959, o novo grupo dirigente teria de lidar com diversas questões indispensáveis para garantir o pleno desenvolvimento econômico da ilha, como o avanço das forças produtivas, as relações sociais, a reestruturação do Estado, a nacionalização da terra e das empresas estrangeiras, o papel do banco e do comércio exterior, as principais linhas de investimentos e o incremento do setor industrial.

Em ritmo acelerado, a nação caribenha rapidamente aprofundaria seu processo político, ao radicalizar seu projeto popular e redistributivo. A transição ao socialismo, portanto, seria abordada a partir de um programa que respeitasse as características nacionais, mas que estivesse inserido ao mesmo tempo nos debates mais amplos que eram travados na URSS e nas democracias populares sobre a gestão de empresas, o burocratismo e a eficiência administrativa.

Neste contexto, Che Guevara desempenharia um papel de extrema importância naquele período, tanto como presidente do Banco Nacional como no cargo de ministro de Indústrias do país. A questão da “consciência”, a interação entre a base e a superestrutura, o papel dos sindicatos... Temas que ganhariam nova dimensão no ideário guevariano.

O “guerrilheiro heroico” teria de enfrentar uma série de obstáculos naqueles primeiros anos no poder, entre os quais, o próprio dogmatismo dos “manuais” de economia política soviéticos (que eram lidos pela alta cúpula governamental e pelos especialistas que começavam a ser formados no ambiente pós-revolucionário) e a vulgarização do “determinismo econômico”, uma deformação teórica do marxismo, defendida por alguns intelectuais e acadêmicos de sua época. Guevara, afinal de contas, buscava construir um pensamento crítico, heterodoxo, flexível, dinâmico, a partir de fatores objetivos e subjetivos, para, em última instância, criar o “Homem Novo”, desalienado e forjador de seu destino. Fundamental, neste caso, elaborar, de forma consciente, um sistema diretivo que garantisse, ulteriormente, a soberania política e a independência financeira da ilha.

O revolucionário argentino pode ser considerado um herdeiro político e intelectual tanto de Marx, Engels e Lênin, como de Simón Bolívar, José Martí, Julio Antonio Mella e José Carlos Mariátegui. Em outras palavras, unia o marxismo clássico ao integracionismo latino-americano, ao nacionalismo cubano, ao internacionalismo, ao anti-imperialismo e ao “humanismo proletário”. Nesse sentido, a articulação de conceitos como “partido”, “planificação”, “vanguarda” e “ética” são imprescindíveis para se compreender o projeto econômico propugnado pelo Che. Além dos elementos mais explícitos do debate de então, como a lei do valor, a persistência das relações de mercado e o gerenciamento das fábricas.

Guevara estava ciente dos diferentes modelos implementados no mundo socialista: das experiências de autogestão na Iugoslávia titoísta às reformas libermanistas em andamento na União Soviética. Estimulado pelo clima efervescente da luta revolucionária no Terceiro Mundo e das polêmicas em torno dos caminhos para a construção do socialismo, o autor de Guerra de guerrilhas estudaria detalhadamente a experiência da revolução de Outubro, os desdobramentos da NEP (Novaya Ekonomicheskaya Politika) e a economia dos países do bloco soviético, além de ler obras de Marx, Engels, Lenin, Baran, Pushkov, Rosental, Straks, Djilas e tantos outros. Iria se corresponder com personalidades como Antonio Venturelli, Leo Huberman e Paul Sweezy; dialogaria com economistas da CEPAL e do bloco soviético; e teria aulas com professores renomados, como Salvador Vilaseca e Anastasio Mansilla. Por isso, não é de se estranhar que no famoso “debate econômico” de 1963-1964, fossem discutidos, de maneira sofisticada, assuntos candentes e específicos como custos de produção, preços e manejo das empresas estatais.

O Che tinha várias prioridades em relação às questões supracitadas. Para ele, seria fundamental lidar com o desemprego, diversificar a produção, garantir a qualificação técnica dos trabalhadores e fechar acordos comerciais com diversos governos estrangeiros para ampliar o crédito, desenvolver tecnologia e implantar indústrias na ilha. Também defenderia o “sistema orçamentário de financiamento” (em contraposição ao “cálculo econômico”, que via os empreendimentos como entidades com personalidade jurídica própria), modalidade dinamizada por um fundo bancário centralizado que deveria ser alocado para suprir as necessidades das fábricas como conjunto, as chamadas “empresas consolidadas” (unidades complementares que funcionavam como parte de um grande conglomerado, com base tecnológica similar, destino comum para sua produção ou localização geográfica limitada), controlado pelo Estado. Ou seja, se aproveitaria a experiência e a estrutura dos antigos monopólios privados (principalmente norte-americanos) na ilha, substituindo-os pelo monopólio estatal, com o planejamento e direção administrativa concentrados, além de provimento de capitais unificado. Esse sistema garantiria, segundo o Che, maior eficiência global.

A intenção inicial era realizar um esforço para lograr a substituição de importações, garantir o pleno emprego, aumentar a poupança e as reservas nos cofres públicos, melhorar a qualidade dos produtos locais, superar o atraso tecnológico em diversas áreas, acelerar a conversão dos equipamentos para a maquinaria soviética, resolver problemas relacionados à falta de peças de reposição e utilizar a capacidade ociosa das fábricas, assim como a aumentar a formação e capacitação de técnicos cubanos.

Mas a transição ao socialismo teria suas especificidades. Segundo o Che, os sindicatos representariam um “anacronismo sem sentido” em uma sociedade onde o proletariado tivesse tomado o poder. Seriam “órgãos da luta de classes” que deveriam, em algum momento, desaparecer ou se transformar. Já os impostos (assim como o seguro), em teoria, poderiam deixar de ser cobrados “a qualquer momento”, sendo caracterizados somente como uma medida “técnica”.

Guevara também discutiu o sistema de incentivos. Sua aposta estava centrada nos estímulos morais. Para ele, os materiais seriam um resquício do capitalismo. Ainda que não negasse esse segundo tipo de incentivo, via como alavanca principal que impulsionaria o socialismo às modalidades “morais”, que consolidariam o fator da “consciência” (essa discussão, com opiniões bastante heterogêneas e conflitivas, estaria presente entre os economistas soviéticos, chineses e da Europa Oriental, se encontrando igualmente entre as preocupações de intelectuais conhecidos como Charles Bettelheim, Ernest Mandel, Oskar Lange e Carlos Rafael Rodríguez, entre outros).

Além disso, vale recordar a importância depositada na emulação socialista, que objetivava o aumento da produtividade individual do trabalhador e da produção de forma geral, estimulando o controle de qualidade e funcionando, igualmente, como elemento ideológico que incentivaria uma “competição fraternal” entre os operários. Já o trabalho voluntário, outra modalidade estimulada pelo Che, pode ser remetido aos “sábados comunistas” impulsionados por Lenin, após o triunfo da revolução russa. O próprio Guevara se destacou neste tipo de atividade laboral. Afinal, ele sempre fazia questão de dar o exemplo...

Sua crítica ao modelo soviético vigente, contudo, seria implacável. Em seu Apuntes críticos a la economía política, o revolucionário argentino diria que o “dogmatismo intransigente” da época de Stálin havia sido sucedido por um “pragmatismo inconsistente” no período em que escrevia, um modelo, em grande medida, herdeiro das políticas “reformistas” nepianas apoiadas por Lenin, nos anos 1920, as quais ele combatia de forma implacável. Isso estaria acontecendo em todos os aspectos da vida dos povos socialistas… A solução seria uma mudança radical na estratégia econômica das principais potências daquele bloco. Para ele, contudo, a URSS estaria seguindo por um caminho cada vez mais perigoso. Se continuasse daquela forma, aquele país estaria fadado a retornar ao capitalismo. Como sabemos, Guevara conseguiu perceber um fenômeno que só iria se aprofundar nos anos seguintes. E que culminou, poucas décadas depois, com o fim da experiência do “socialismo real” na União Soviética e nas democracias populares...

Artigo escrito originalmente para a edição especial da revista Caros Amigos, n. 88, 2017 e retirado do blog da Boitempo.

Luiz Bernardo Pericás é historiador e professor da USP, autor de Caio Prado Júnior: uma biografia política (Boitempo, 2016), lhe rendeu o troféu Juca Pato de Intelectual do Ano.

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