Correio da Cidadania

O ninho do Antropoceno e os ovos do fascismo

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Cento e cinquenta dias após a execução brutal de Marielle Franco, a ferida aberta na sociedade brasileira se recusa a fechar. Pelo contrário, sangra mais e mais. E a deterioração da situação política no país não para de se agravar, como vimos, só para citar fatos dos dias seguintes à sua execução, ataque a tiros à caravana de Lula no Sul, com um general da reserva chantageando abertamente o STF e o país inteiro, com ameaça de golpe militar a depender do posicionamento da corte, com um bufão com posições abertamente fascistas despertando simpatia de 1/5 ou mais do eleitorado.

Neste cenário, mesmo pessoas próximas, sensíveis às ditas "causas ambientais" ou à "pauta ecossocialista" questionam "como falar de mudanças climáticas em tais condições?" ou "não seria o caso de deixar um pouco de lado essas bandeiras ambientais?" ou, pior, se colocam aberta ou veladamente na linha de considerar tudo isso como algo "secundário", senão a priori, pelo menos na atual conjuntura. Mas será que essa linha de raciocínio está correta?

Um aspecto trágico - dentre tantos - do colapso ecológico do Antropoceno é que ele não é uma catástrofe que chega gradualmente com a sociedade unida, em laços de solidariedade, tendo oportunidade de gradualmente tomar consciência e enfrentá-la; com a admissão, por parte de setores cada vez mais amplos da sociedade, da necessidade de frear a máquina produtiva-destrutiva do capital, que demanda eterna expansão em contradição antagônica com a realidade de um planeta limitado; com o entendimento, em particular, de que é insustentável para a natureza e para o restante da sociedade manter uma minoria, uma elite econômica, com padrões de consumo escandalosamente elevados.

 
A ONU estima que mais de 20 milhões de pessoas sejam deslocadas anualmente por catástrofes de alguma forma ligadas à mudança climática. Estima-se, infelizmente, que essa cifra cresça exponencialmente ao longo deste século.

Pelo contrário, o colapso ecológico do Antropoceno chega com a disputa de bens naturais, território e recursos se agudizando. Chega trazendo secas cada vez mais severas que ampliam a insegurança alimentar e hídrica, somando-se à pressão de outros fatores, como a degradação e perda de fertilidade do solo e a demanda gigantesca de água pela irrigação de grande escala de monoculturas, pela mineração, pela indústria pesada como termelétricas, siderúrgicas e refinarias de petróleo etc.

Chega associado a ondas de calor mortíferas que matam agricultor(a), pescador(a), operário(a) da construção civil, mas não mata político nem CEO engravatado. Chega produzindo tempestades cada vez mais severas, como o Katrina, o Haiyan, o Patrícia, o Harvey, o Irma, o Maria, que para além das mortes e prejuízos imediatos deixam sequelas de mais longo prazo, especialmente em países pobres (mais de 6 meses após a passagem do Maria, parcela significativa da população de Porto Rico ainda se ressente da falta de energia na rede e água na torneira).

Esse colapso chega com populações cada vez mais depauperadas, expulsas de suas terras de origem, com um número crescente de refugiados de guerra e refugiados climáticos (estimativas dão conta de que estes podem chegar a 140 milhões em 2050, especialmente na África, Ásia e América Latina), conectando a aldeia indígena ou a comunidade camponesa inviabilizadas por alguma grande barragem ou mina às periferias de cidades inchadas, em que as pessoas são sistematicamente privadas de condições dignas de vida. Chega alimentando conflitos, servindo de solo fértil a ideologias de ódio, a micro e macrofascismos. Chega produzindo uma barbárie em que militarização e xenofobia ganham apelo. É um caldo de cultura terrível.
 

880 dias depois, o crime da Samarco-Vale-BHP em Mariana segue essencialmente impune. O assassinato de Marielle já contabiliza 20 dias e até agora nada.

Ou seja, o colapso do Antropoceno chega tornando ainda mais difíceis as condições de luta contra ele próprio. Primeiro, porque fortalece justamente as ideologias e correntes políticas mais alheias à defesa da integridade do ambiente. Segundo, porque encurrala os setores sociais e políticos potencialmente mais conscientes do ponto de vista ecológico, com o debate climático, ambiental, hídrico etc., sendo soterrado ante a correria para salvar a própria pele e a das mínimas liberdades democráticas e direitos.

Mas saber, mesmo nos tempos mais duros, que tudo está conectado - 400 ppm de CO2 e Amarildo, Mariana e Marielle, agronegócio matando indígena e milícia matando favelado - é dever nosso. E por mais que seja sob o sangue e as lágrimas dos nossos e nossas, que nos coloquemos à altura do desafio de pensar saídas e respostas não apenas para a fumaça no ar, que ora nos sufoca, mas para a própria ameaça da "queda do céu". Não se pode, portanto, cair na tentação de "deixar a discussão ambiental e climática para outro momento".

Afinal esta crise profunda que vivenciamos já é, em larga medida (ou arriscaria até dizer essencialmente), ecológica.
 
A sensação de que está tudo fora da normalidade, que não dá simplesmente para continuar tocando as coisas como antes, está caindo sobre boa parte da esquerda brasileira no que tange à percepção de endurecimento do regime político e deterioração das condições de luta.

Essa percepção de saída da "normalidade" e entrada em terreno bem mais perigoso e difícil precisa, porém, se estender às alterações no sistema Terra, à desestabilização do clima, à crise hídrica, ao colapso da biodiversidade.

O Antropoceno é uma grande chocadeira do fascismo. Diria mais, pela lógica de controle, sujeição, eliminação do diferente, o Antropoceno é ele próprio um grande fascismo voltado contra o planeta.


Alexandre Araújo Costa é cientista do clima.

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