Correio da Cidadania

Agora vão tentar 'normalizar' Bolsonaro

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Quando, na manhã de 8 de outubro de 2018, o Brasil acordou após uma noite de apurações intranquilas, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num país fascista. Porém, assim como o sábio chinês que sonhou que era uma borboleta e, ao acordar, não sabia mais dizer se era uma borboleta sonhando que era um sábio ou um sábio sonhando que era uma borboleta, o Brasil já não conseguia dizer se era uma democracia vivendo o pesadelo do fascismo ou se sempre havia sido uma ditadura fascista que, por alguns anos, sonhara que era uma democracia.

A arrasadora onda eleitoral que se formou em torno do nome do candidato à presidência Jair Bolsonaro (PSL), arrastando consigo candidatos a cargos no Executivo e no Legislativo de todo o país, e que por pouco não garantiu uma vitória do capitão ainda no primeiro turno, é o prenúncio de tempos muito difíceis para a democracia brasileira.

Se você não percebeu isso e ainda acha que Bolsonaro é um candidato como qualquer outro, ou acredita que suas inclinações autoritárias seriam comparáveis às de Fernando Haddad (PT), parabéns: você já pode ser comentarista de política da Globonews. Só não tente usar sua vocação de ignorar magicamente a realidade como qualificação para ser contratado por universidades ou publicações estrangeiras: fora do Brasil, a visão predominante é de que Bolsonaro, e só ele, é uma ameaça de rompimento institucional.

O roteiro seguido pelo capitão — que começa com ataques a minorias e segue para as alianças firmadas com empresários e banqueiros, que veem naquele líder tosco, popular e submisso aos interesses do capital a oportunidade perfeita de terem nas mãos o governante dos seus sonhos, e que não se importem que esses sonhos signifiquem um pesadelo de perseguições, mortes e perdas de direitas para outras pessoas —segue tão de perto o de outros líderes históricos fascistas que, hoje, se você resolver enviar um texto escrito por um alemão sobre a trajetória de Hitler, como este do El País, para um grupo de Whatsapp de família, correrá o sério risco de ver algum apoiador de Bolsonaro ofendido com seu gesto, crente de que as críticas a Hitler só podem ser uma indireta para o candidato dele. Faça o teste.

E não se engane. Bolsonaro não vai se desviar do roteiro fascista. Ele não está "se deslocando para o centro", não está suavizando suas opiniões autoritárias e nem está trabalhando para "unir o país", como apontaram que faria. Não fez e nem vai fazer. Duvida? No seu pronunciamento após o fim do primeiro turno, o capitão voltou a colocar em suspeita em urnas eletrônicas, sem base em qualquer fato real, e ainda soltou uma frase assustadora: "vamos botar fim a todas as formas de ativismo". Não dá para imaginar declaração mais clara de fim das liberdades democráticas.

Ah, mas não há risco à democracia, vão dizer. Os brasileiros amam seu regime democrático. É só ver como uma pesquisa Datafolha desta semana apontou que "o apreço pela democracia nunca foi tão forte entre os brasileiros", com 69% dos entrevistados afirmando que o regime democrático é o melhor de todos. A mesma pesquisa também apontou que a democracia tem ainda mais apreço entre os mais ricos e escolarizados — o que, curiosamente, também são os estratos da população que sempre apoiaram Bolsonaro, mesmo antes de o fascismo virar modinha. Parece que não é arriscado imaginar que, portanto, muitos admiradores de Bolsonaro são também amantes da democracia. Não é lindo?

Não, não é. Não é possível amar Bolsonaro e a democracia ao mesmo tempo. É um amor impossível, já que o capitão parece encarar a democracia como uma dama que nem merece ser estuprada. A única explicação possível para uma contradição dessas pode ser encontrada na definição que os brasileiros têm de democracia, que não é das mais rigorosas.

Veja como, mesmo dentro do período que todo mundo chama de democrático, após 1985, o Brasil continuou a conviver com forças policiais militarizadas atuando feito exércitos de ocupação nos territórios pobres, fazendo uso diário, e quase sempre impune, de invasões a domicílio, torturas e execuções extrajudiciais — todo aquele pacote de abusos que, quando os governos praticam com gente branca e de classe média, a gente chama de ditadura (já reparou como não se contabiliza os mortos pelo Esquadrão da Morte como vítimas do regime militar, embora tenham sido mortos pelo mesmo aparelho repressivo?).

E vale lembrar que a própria ditadura nunca se assumiu como tal. O governo militar que tomou o poder em 1964 — agora chamado de "movimento" pelo presidente do STF — disse que seu objetivo era "assegurar autêntica ordem democrática", expressão que aparece até no Ato Institucional número 5 (AI-5), que completa 30 anos em 13 de dezembro próximo, e que endureceu a repressão como nunca.

Hoje, entre os malucos que costumam fazer cosplay de militar e marchar até a Avenida Paulista para pedir "intervenção militar constitucional", muitos acreditam que estão fazendo um pedido bastante razoável e democrático e que, imagina, não estão pedindo a volta da ditadura. Mesmo porque o Brasil nunca foi uma ditadura, isso de ditadura é lá em Cuba, na Venezuela, entendeu, seu comunista?

Bolsonaro agora tem muito poder. E nada é mais sedutor do que o poder. Sedução que já se faz sentir não só entre os políticos, mas em veículos de imprensa, que aos poucos começam a se mostrar mais condescendentes em relação ao capitão, como se sua candidatura fosse igual a qualquer outra.

Começa agora um processo de "normalização" de Bolsonaro, para tentar tratar o absurdo como normal, o inominável como corriqueiro. Ele faz comentários racistas e homofóbicos, mas quem não faz? Ele questiona as urnas, mas não é sério. O vice dele fala em autogolpe e "branqueamento da raça", mas quem nunca?

Esse processo de "normalização" de Bolsonaro é algo que deve ser combatido a todo custo. Não tem nada de normal nas suas ideias, nas suas posições, na sua intolerância. Quem aceita isso agora poderá aceitar muito mais depois. Se Bolsonaro fizer como já disse que ia fazer e adotar a carta branca para o extermínio policial ou a queima de livros, se adotar até mesmo o fechamento do Congresso, vão dizer que tudo bem, que gente chata que só reclama, não tem nada de mais, tudo isso cabe numa democracia.

A gente precisa, mesmo, é abraçar uma definição de democracia onde não caiba Bolsonaro. Ou entraremos em 2019 assegurando a "autêntica ordem democrática" de 1964 e 1968. Uma velha ideia de democracia manchada de sangue, dor e opressão.

Ponte Jornalismo – Justiça, Segurança e Direitos Humanos.

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