Correio da Cidadania

Automonitoramento das empresas, cortes nos órgãos fiscalizadores e economia primarizada explicam Brumadinho

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A tragédia do rompimento da barragem de minério de ferro de Brumadinho completa um mês sem que o total de vítimas seja sabido. Enquanto isso, a compreensão geral sobre a dimensão e os impactos da mineração em solo brasileiro segue escassa, enquanto o ministro do Meio Ambiente faz declarações que vão na direção de mais exploração extrativista como receita para o crescimento econômico. Sobre o delicado quadro de um setor que ainda domina a pauta de exportações, o Correio entrevistou Tadzio Peters Coelho, pesquisador do assunto no Centro Ignácio Rangel da UFMA.

Sobre o aumento a vulnerabilidade das barragens, Tadzio explica que “a qualidade do minério de ferro encontrado em Minas vem caindo ao longo do tempo, o que faz com que a proporção de material sem valor econômico aumente. E os avanços tecnológicos na direção de um melhor aproveitamento do material não conseguem compensar completamente esta queda”.

No entanto, considera que a repartição de responsabilidades é mais ampla do que parece. Para além da já batida promiscuidade público-privada, com lobbies empresariais definindo tranquilamente as políticas de Estado, há a opção histórica do Estado brasileiro, endossada por todos os governos, pelo extrativismo intensivo de matérias primas, reforçada pelo momento recente de alta de seus preços. Soma-se a isso a mais nova rodada de medidas ultraliberais na economia.

“A política macroeconômica de austeridade fiscal também tem sua fatia de responsabilidade. Exemplo disso é o sucateamento do principal órgão de fiscalização de barragens no país, a Agência Nacional de Mineração – ANM. Segundo estudo do Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), em 2018, foram gastos apenas R$ 4,9 milhões para ‘fiscalização mineral em áreas tituladas’ em todo o país, incluída aí a fiscalização das barragens”.

Apesar da comoção, Tadzio, que também é membro do Grupo Política, Economia, Mineração, Ambiente e Sociedade (PoEMAS), não acredita no necessário aprofundamento do debate em torno do segmento. Mas é enfático ao tratar da reincidência da Vale em tragédias socioambientais.

“Deveríamos saber o que não fazer. Durante o crime contínuo de Mariana, foi criada a Fundação Renova. A Renova seria a responsável por levar à frente o processo de reparação do rompimento da barragem de Fundão, e foi realmente o que aconteceu, substituindo o Estado na regulação do processo de reparação e definindo quem é e quem não é atingido, de acordo com os interesses das mineradoras. Em suma, a Renova é controlada pela Vale e pela BHP Billiton As reparações e as indenizações vêm se mostrando insuficientes e muita gente ficou de fora desse processo”.

O entrevistado também alerta para outras bombas-relógio espalhadas pelo território nacional. “Venho acompanhando há mais de um ano, no Maranhão, uma barragem pertencente à Equinox Gold, empresa canadense especializada na extração de ouro. No dia 6 de novembro de 2018, material estéril (material antes do beneficiamento do minério), sem água, portanto, desmoronou e atingiu uma área de igarapés e mangue, bloqueando a estrada de acesso à comunidade de Aurizona”.

A entrevista completa com Tadzio Peters Coelho pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: O que comentar do rompimento da barragem de Brumadinho, mais um grande desastre ambiental da mineração em solo brasileiro, cujo número de mortos e desaparecidos é altíssimo e ainda incerto?

Tádzio Peters Coelho: A trilha de tragédias da mineração no país é longa. Não se trata de episódio isolado ou mero acidente. A utilização de tecnologias menos eficientes e mais baratas, a fiscalização falha, o licenciamento tendencioso, a flexibilização das legislações trabalhista e ambiental, as punições brandas, a ausência de participação popular e a baixa transparência do processo decisório, a dependência econômica, a relação de subordinação com os mercados financeiros, tudo isso compõe o panorama da tragédia.

Ainda deve-se considerar que a geração de rejeitos de mineração em Minas Gerais aumentou em parte por conta da expansão da extração de minerais, mas também por causa da diminuição do teor de pureza dos mesmos. A qualidade do minério de ferro encontrado em Minas vem caindo ao longo do tempo, o que faz com que a proporção de material sem valor econômico aumente. E os avanços tecnológicos na direção de um melhor aproveitamento do material não conseguem compensar completamente esta queda.

A diminuição da qualidade dos materiais aliada à utilização de tecnologias de tratamento menos eficientes - por utilizarem água - compõem a plataforma sistêmica de geração de rejeitos e construção de barragens.

Correio da Cidadania: Já é possível calcular os passivos ambientais, sociais e econômicos?

Tádzio Peters Coelho: A destruição do rio Paraopeba e sua fauna afeta diretamente as comunidades no seu redor que produziam com base no rio, tal como pescadores e agricultores. Pesquisadores antecipam o risco de surtos de dengue e febre amarela, como vimos nos anos posteriores ao rompimento da barragem de Fundão. O adoecimento psicológico em sobreviventes e familiares dos mortos e desaparecidos levou a casos de depressão e suicídio na tragédia contínua da Samarco e deve acontecer também em Brumadinho.

Economicamente, poucas alternativas à mineração foram criadas. A dependência foi criada e reproduzida num ambiente de boicote a alternativas econômicas, o que leva ao problema atual de grande parte da arrecadação municipal ter como base a mineração. Sendo assim, a arrecadação municipal deve cair pressionando os serviços públicos. É provável que uma das poucas vias alternativas dessa região, o turismo - importante setor da economia local – seja decisivamente impactado.

Vale destacar que a reprodução desses passivos se deu ao longo desses três anos de crime em Mariana, não se restringindo ao rompimento. A prática da empresa em relação aos atingidos tem sido de violação contínua. É provável que o mesmo aconteça em Brumadinho e ao longo dos rios Paraopeba e São Francisco.

Correio da Cidadania: Como avalia as primeiras reações dos governos federal e estadual? Em sua visão, quais as responsabilidades a serem distribuídas pelo ocorrido?

Tádzio Peters Coelho: Este é o momento das bravatas. Representantes dos mais distintos poderes se apressam em declarar o rigor das medidas a serem tomadas. Muitos deles tentam aproveitar a janela em que a sociedade está mirando Brumadinho para oferecer soluções que parecem fáceis e rápidas. Conhecendo o processo de Mariana, sabemos que a tendência é de dissipação dessas ações quando a mídia deixar de destacar a questão de Brumadinho.

A respeito da responsabilidade, como se trata de um aparato complexo e diversificado, recai sobre vários agentes. Obviamente, a empresa é a principal responsável, afinal, foi a Vale que utilizou o método a montante para o alteamento de suas barragens, optou por tratamento dos minérios com utilização de água e expõe seus trabalhadores, funcionários terceirizados e a população ao risco.

Porém, a conivência dos órgãos estaduais e federais responsáveis pela fiscalização e licenciamentos reforça o processo. A subestimação dos danos efetivos da atividade durante os licenciamentos, que é encarado apenas como mais uma etapa burocrática, sem se colocar realmente a possibilidade de negar a licença, a fragmentação e aceleração dos licenciamentos e a fiscalização insuficiente e enviesada favorecem as mineradoras.

A política macroeconômica de austeridade fiscal também tem sua fatia de responsabilidade. Exemplo disso é o sucateamento do principal órgão de fiscalização de barragens no país, a Agência Nacional de Mineração – ANM. Segundo estudo do Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), em 2018, foram gastos apenas R$ 4,9 milhões para “fiscalização mineral em áreas tituladas” em todo o país, incluída aí a fiscalização das barragens.

Dificilmente essa falta de recursos para a fiscalização será revertida tendo em vista a aplicação da PEC 241/55, a chamada “PEC dos Gastos”, que congela os investimentos do governo federal e pressiona para a diminuição de recursos destinados à ANM.

Correio da Cidadania: Como fica o discurso do novo governo, que reiteradamente afirmou intenção de flexibilizar legislações ambientais e liberar terras indígenas para mineração?

Tádzio Peters Coelho: Estão tentando desvincular essas medidas defendidas pelo governo federal do rompimento da barragem na mina do Córrego do Feijão. As medidas devem ficar algum tempo fora de exposição e quando passado o período de comoção nacional com o rompimento, elas devem voltar à tona. Recentemente, em entrevista ao programa Roda Viva, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, declarou que serão mantidos os esforços para acelerar os processos licenciamento, não obstante o rompimento da Barragem I.

O governo Bolsonaro representa setores da mineração que têm interesse em instalar a atividade mediante a exploração de novos territórios e a expulsão dos povos que lá vivem, principalmente em reservas de pedras e metais preciosos (ouro, platina, paládio etc.), que não demandam infraestrutura de transporte tão extensa como no caso do minério de ferro. A mineração em Unidades de Conservação Integral e em Terras Indígenas e Quilombolas continuará sendo o propósito desses capitais.

Correio da Cidadania: Não estamos perdendo tempo com o debate entre privatismo e estatismo na gestão de uma empresa ou setor de tamanho porte e deixando de lado o que seria mais importante, isto é, o modelo de exploração de matérias primas em vigor?

Tádzio Peters Coelho: No debate sobre a Vale, mais do que a reestatização – que envolveria também a transferência de seus passivos para o Estado -, importante é o fortalecimento dos sindicatos dos trabalhadores. Desde a grande greve dos trabalhadores em 1989, ainda na época da empresa estatal – a privatização ocorreu em 1997 -, a direção da empresa conseguiu enfraquecer a atuação dos sindicatos, com honrosas exceções. O sindicato atuante pode aumentar o nível de renda durante os ciclos de alta nos preços dos minerais e atenuar a retração salarial durante os ciclos de baixa, o que gera uma série de efeitos na economia local.

Além disso, um sindicato fortalecido é capaz de questionar a empresa em relação às condições de trabalho, incluindo a manutenção e o monitoramento de barragens. A decadência dos sindicatos dos trabalhadores enfraquece a fiscalização do ambiente de trabalho feita pelos próprios trabalhadores.

Mas concordo que este seria apenas um ponto dentre vários a serem discutidos. O atual modelo de exploração de matérias-primas viveu seu apogeu no período 2002-2011, com a alta histórica nos preços dos minerais no mercado internacional. A enxurrada de dólares aliada à política de juros altos gerou a tendência à valorização do câmbio, o que prejudicou de maneira determinante o setor de manufaturados, reforçando o processo de reprimarização das exportações e desindustrialização, que vinha desde os anos 1980.

A China ocupou de vez o setor de semimanufaturados e a indústria brasileira, para além da Petrobrás e a Embraer, não conseguiu atingir as áreas mais intensivas em tecnologia. Os investimentos foram direcionados para o setor primário-exportador, inaugurando novas minas e expandindo muitas das já existentes.

Durante esse período, não foram implementadas medidas que preparassem para a previsível queda nos preços das commodities, o que ocorre ciclicamente de acordo com estudos acerca do comportamento dos preços das matérias-primas. Agora nos vemos atados a um modelo de mineração violador de direitos e que se encontra em crise.

Correio da Cidadania: Ainda assim, o que fazer em relação à Vale? Como avalia sua relação com as vítimas de mais este desastre?

Tádzio Peters Coelho: Deveríamos saber o que não fazer. Durante o crime contínuo de Mariana, foi criada a Fundação Renova. A Renova seria a responsável por levar à frente o processo de reparação do rompimento da barragem de Fundão, e foi realmente o que aconteceu, substituindo o Estado na regulação do processo de reparação e definindo quem é e quem não é atingido, de acordo com os interesses das mineradoras.

Em suma, a Renova é controlada pela Vale e pela BHP Billiton As reparações e as indenizações vêm se mostrando insuficientes e muita gente ficou de fora desse processo. A posse de recursos pela Vale criou assimetrias em diversas esferas, inclusive no judiciário. A judicialização dos conflitos tornou os processos de reparação (quando eles acontecem) extremamente morosos e, paradoxalmente, injustos.

Esse tipo de omissão do Estado não deve mais ser tolerado. É de suma importância que os atingidos, sejam trabalhadores da empresa ou de terceirizadas ou a população local, além do Estado, ocupem o centro dos processos de reparação e especifiquem os seus termos. Porém, só será possível com a constante mobilização de tais grupos, e aqui está outra condição para que a reparação não seja configurada de acordo com os interesses da empresa.

Correio da Cidadania: Seriam muitas bombas relógios que a mineração brasileira tem pelo território? Como lidar com a grande quantidade de barragens espalhadas pelo país?

Tádzio Peters Coelho: São muitas as bombas e de diferentes tipos de infraestrutura. São muitas as barragens, como também são muitos os minerodutos, as pilhas de estéril e as ferrovias. Venho acompanhando há mais de um ano, no Maranhão, uma barragem pertencente à Equinox Gold, empresa canadense especializada na extração de ouro. No dia 6 de novembro de 2018, material estéril (material antes do beneficiamento do minério), sem água, portanto, desmoronou e atingiu uma área de igarapés e mangue, bloqueando a estrada de acesso à comunidade de Aurizona.

A Barragem do Vené, propriedade da Equinox, tem volume total aproximado ao da Barragem I, na mina do Córrego do Feijão, com 12,1 milhões de metros cúbicos. Passaram dois meses desde o extravasamento do material e ainda não foi publicado um laudo explicando suas causas. A população vizinha à mina pouco sabe sobre a barragem de rejeitos e menos ainda acerca do que aconteceu no desmoronamento da pilha de estéril.

Apesar de existir a Política Nacional de Segurança de Barragens (PNSB), ainda é necessário tornar efetivo o monitoramento e a fiscalização de barragens de rejeito de mineração, além de infraestruturas conexas, tais como minerodutos.

Alguns pontos resumidos: deve-se reforçar a capacidade de atuação da Agência Nacional de Mineração (ANM), com a abertura de concurso público, já que o órgão encontra-se sucateado e com falta de funcionários, e os órgãos estaduais e municipais responsáveis pelo licenciamento, monitoramento e fiscalização devem também ser alvo de rigorosos esforços; a redução do uso de água em todo ciclo minerário, por isso o Estado deve estabelecer um limiar para a ação das empresas e elas precisam se adaptar tecnologicamente; tornar obrigatória a utilização de tecnologias mais eficientes na extração, beneficiamento, transformação e transporte de bens minerais, evitando o beneficiamento por via úmida; e a proibição do alteamento de barragens de rejeitos por método para montante.

Outro ponto é que a contratação de consultoria independente tem se mostrado bastante dependente das demandas das empresas, justamente porque são elas as contratantes. Nessa relação, a fiscalização se torna maleável aos interesses da empresa. É importante acabar com o automonitoramento, as mineradoras não devem ter o poder de escolher seus auditores.

Correio da Cidadania: São diversos os movimentos sociais de atingidos por barragens e projetos mineradores, em especial da própria Vale. O que fazer para tornar essas lutas mais visíveis e encampadas pela sociedade brasileira?

Tádzio Peters Coelho: Primeiro, é preciso que a sociedade brasileira finalmente compreenda que somos um dos países mais minerados do mundo e, segundo, a mineração deve estar no centro do debate público. Por exemplo, a discussão sobre a Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM) se limitou aos políticos dos dois estados que mais extraem minerais, Minas Gerais e Pará.

Entretanto, a mineração afeta diretamente a vida de milhões de pessoas no restante do país. Estados como Bahia e Goiás figuram entre os principais estados extrativistas, e grandes projetos de mineração chegaram ao Rio Grande do Sul, o que demonstra a expansão da atividade, principalmente no período de alta nos preços, entre 2002 e 2011.

A esquerda brasileira de maneira geral sempre teve dificuldade para se inserir no debate da mineração, se atendo geralmente à questão do petróleo e à questão agrícola. As duas discussões fazem parte da tradição desse campo e estão ligadas à formação histórica do povo brasileiro, mas a mineração também está. A esquerda pouco participou dos debates em relação aos royalties da mineração (a CFEM). Isso se deve à incompreensão do que seja a atividade, seus efeitos e sua relevância na vida de milhões de pessoas dos mais diversos territórios.

Também necessitamos ultrapassar demandas meramente nacionalistas. O controle dos recursos naturais pelo Estado é importante, mas é limitado sem a participação popular e a transparência devida. O controle do nióbio e do lítio tem lá sua importância, quando encarado enquanto potencialidade de desenvolvimento tecnológico, mas é uma ilusão pensar que a posse de determinado recurso natural irá transformar, ou tornar desenvolvido, um país de economia complexa como é o Brasil ou um estado como Minas Gerais.

Essa é a tese do trampolim econômico, em que por meio da descoberta de um recurso um país possa ascender ao campo dos países desenvolvidos. Além de nos aproximar de um discurso que vem sendo propagado pela extrema-direita, a questão do nióbio e do lítio se baseia em pressupostos falsos e em simplificações acerca dos efeitos da exploração desses bens.

Correio da Cidadania: Acredita, diante da atual conjuntura política e institucional, que será possível pautar qualquer debate sobre a matriz econômica brasileira, em especial a respeito do nosso modelo de extrativismo e seu peso na pauta de exportações? O que você vislumbra nesse sentido?

Tádzio Peters Coelho: Dificilmente. É provável que as discussões se restrinjam ao método de alteamento das barragens (a montante) e às punições especificamente para a Vale, mas não me parece que o debate irá se aprofundar em direção ao extrativismo. A conjuntura é bastante desfavorável para a ascensão desse tipo de debate porque os setores extrativistas se encontram bem representados no Poder Executivo.

Além disso, considerando as medidas de liberação de mineração em áreas antes proibidas e o aceleramento do licenciamento, a tendência é que os investimentos privados se dirijam para esse setor e se aprofunde a reprimarização das exportações. Um país dependente e entregue é prato cheio para as grandes mineradoras.

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Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.

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