'O grande problema é a falta de dinheiro para o SUS, não a forma de repasse’
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- André Antunes
- 24/02/2017
O Ministério da Saúde anunciou no dia 7 de fevereiro alterações no modelo de repasse dos recursos da União para estados e municípios. Através do Projeto SUS Legal, como a medida foi batizada, a transferência de recursos federais para o SUS será feita por meio de dois blocos de financiamento: custeio e investimentos.
Anteriormente os repasses eram feitos de acordo com o que ficou estabelecido pela portaria 204 de 2007, que dividia os repasses em seis blocos de financiamento distintos: Atenção Básica, Vigilância em Saúde, Média e Alta Complexidade, Medicamentos, Gestão e Investimento. Aprovada no dia 30 de janeiro, em reunião da Comissão Intergestoras Tripartite (CIT), a medida contou com o apoio tanto do Conselho Nacional dos Secretários de Saúde (Conass) quanto do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems).
Essa é uma reivindicação antiga dos gestores, que alegam que o modelo vigente ‘engessa’ sua atuação uma vez que eles não podem dispor livremente dos recursos atrelados a cada bloco específico. Para Conass e Conasems, a mudança é importante no sentido de avançar no processo de regionalização do SUS. As mudanças, no entanto, também foram objeto de apreensão. Para alguns críticos a mudança representará um grave retrocesso no financiamento da Atenção Básica e da Vigilância em Saúde no SUS, podendo significar um desvio de recursos de áreas com menor visibilidade, como a Vigilância em Saúde, para áreas como a de média e alta complexidade, com forte presença do setor privado prestador de serviços para o SUS, que tem maior capacidade de exercer pressão sobre os gestores locais por mais recursos.
Nesta entrevista, o professor da Universidade de São Paulo (USP) Áquilas Mendes argumenta que a questão tem mais contradições do que essa polêmica faz parecer. Segundo ele, é uma discussão que vem se dando desde a criação do SUS, cujo marco regulatório preconiza a alocação equitativa com base no planejamento de saúde construído nos conselhos estaduais e municipais de saúde.
A questão, diz, é que isso nunca foi implementado e os repasses federais sempre foram feitos com base em critérios definidos pelo ministério, que com isso centralizava a decisão sobre as políticas de saúde que deveriam ser implantadas nos níveis estadual e municipal. Essa mudança poderia, assim, ser uma boa notícia, mas ele adverte que, para isso, seria preciso alocar mais recursos para o SUS, o que não está nos planos do governo atual. O pesquisador faz um apanhado histórico desse debate e defende que hoje o foco das lutas precisa ser a garantia de mais recursos para o SUS.
Na sua opinião, o que significa para o SUS esse novo modelo de repasse de recursos da União para os estados e municípios?
Eu primeiro queria fazer um histórico sobre esse processo, para não cair na crítica que alguns estão fazendo e que considero muito superficial. Essa é uma reivindicação de estados e municípios há anos, desde que o SUS foi criado, desde a Lei Orgânica do SUS e, principalmente, da Lei 8.142, de 1990. A lei 8.142 trata das transferências de recursos no interior do SUS. E desde lá se falava na ideia do repasse dos recursos “de fundo a fundo”, que seria do Fundo Nacional de Saúde para os fundos estadual e municipal de saúde, de forma automática e global.
Na prática, só funcionou em 1993, com um processo de municipalização que se iniciou naquela época com a Norma Operacional Básica (NOB) 93 do Ministério da Saúde, que determinou a transferência dos recursos da União para 11 municípios do Brasil, que foram habilitados para receber recursos da União de forma global, passando a ter a responsabilidade sobre as ações e execuções dos serviços de saúde. Na época isso era chamado de gestão semiplena.
O que significa? Significa o município receber a transferência e usar o recurso mediante o seu planejamento local; vale dizer, o seu plano de saúde, decidido num conselho, ou seja, na sua política de saúde, determinada pelas necessidades locais. Portanto, esses 11 municípios receberam, entre 1993 e 1995, recursos da União de forma global.
Isso não avançou por quê?
Acontece que o SUS vai sendo construído num embate muito forte, embate no qual estamos construindo a federação brasileira, que também é da Constituição de 1988. Não tem nada construído, é uma disputa muito intensa entre as esferas. E sabemos que historicamente a União sempre foi centralista e queria manter o poder. A Constituição diz que é para descentralizar recursos, mas não descentraliza encargos. Assim, com tal ideia, a União nunca quis abrir mão do controle do poder do dinheiro.
Acontece que em 1994 entrou o PSDB no governo e mudaram os ministros, com o (José) Serra na Saúde. O Serra veio a criar, em 1996, uma nova portaria, que é a NOB 96. Ela abriu um flanco para a criação de incentivos financeiros que o governo federal vai usar para repassar recursos. O governo federal inventa uma política e exige que municípios e estados façam essa política na área da saúde. Se ele fizer, ele manda um projeto que vai ter um incentivo financeiro. Com base nisso, foram ganhando força os incentivos financeiros na forma de transferência de recursos dos ministérios, acabando com a ideia do repasse global. E aí vai se criando o que na área da saúde ficou conhecido, na terminologia do senso comum, como ‘caixinhas’.
Naquela época, vários críticos, eu entre eles, escreviam artigos dizendo que o financiamento do SUS estava pautado pelo governo federal; que a política era dada pelo governo federal, porque ele inventava os programas e criava recursos para isso. Se o município e o estado criassem, eles recebiam; senão, não tinham dinheiro. Portanto, a política é dada pelo financiamento centralizado. O Serra, por exemplo, criou a campanha de combate ao câncer de colo uterino. Se o município criasse lá o projeto para fazer essa campanha, recebia o recurso. Se ele inventasse campanha pra combater a catarata, o município que quase não tinha o problema de catarata ia atrás, porque fazendo o projeto e mandando para o Ministério recebia recursos.
Agora, o grande mote na NOB 96 foi o Saúde da Família. Se você implantar uma equipe de Saúde da Família, tem ‘xis’ de recurso do Ministério; se nessa equipe você implantar agente comunitário, tem mais recursos por agente comunitário. A NOB 96 criou o PAB, Piso da Atenção Básica. Vários autores da época já vão dizer que o Piso da Atenção Básica abriu a porteira para crescer mais incentivos. Por quê? Porque o ministério vai repassar os recursos mediante um per capita nacional do governo federal. Na época, foi concebido que o valor seria de R$ 10 per capita ao ano.
Se olharmos a transferência do Ministério, quando a falamos de atenção básica, por exemplo, o que mais cresceu foi o chamado PAB variável, não o PAB fixo, que é baseado no per capita; o PAB variável eram os incentivos para implantar as políticas do governo federal: implantou Saúde da Família? Tem incentivo. Incorporou dentista na equipe? Tem mais incentivo. E foi abrindo o que tudo mundo vai chamar de “caixinha”. Tudo pela lógica do governo federal. Por isso havia um pleito, sobretudo dos gestores, dos secretários municipais de saúde, Conasems, do Conass, de acabar com isso e criar a transferência em bloco.
E é isso o que foi aprovado em janeiro pela CIT?
Exatamente. Na realidade, havia um pleito constante de acabar com essas ‘caixinhas’. Nós chegamos ter a cerca de 300 formas de repasse. Por exemplo, o município lá de Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro, tinha um gestor de saúde que tinha de abrir umas 20 ou 30 contas para poder fazer o controle do repasse. Assim, ele é mais um despachante do Ministério, para fazer a política que o ministério induz, do que efetivamente alguém para fazer uma política colada nas necessidades de saúde locais. Já no governo Lula, quando houve o Pacto pela Saúde, teve uma nova portaria do Ministério para tentar tirar essa fragmentação de forma de repasse. O Pacto pela Saúde tentou terminar com as portarias, com os incentivos todos, mas não se conseguiu avançar no debate.
Naquela época, eu já acompanhava e produzia para o próprio Ministério sobre como fazer uma alocação equitativa de recursos, ou seja, a transferência seria passada para garantir equidade, corrigir as desigualdades. Não poderia ser pela lógica de produção, mas sim pela lógica das necessidades de saúde, características epidemiológicas, socioeconômicas. Começamos a fazer estudos, chegou o momento em que a gente foi apresentar o estudo ao Ministério, na época do ministro Saraiva Felipe, já no governo Lula, e eles disseram: “está ótimo, o estudo está muito bacana, mas vamos fazer o seguinte, vamos juntar todas as caixinhas e vamos criar oito blocos de financiamento”. Oito blocos por quê? Porque você tinha oito secretarias no Ministério da Saúde. Foi por área programática, nível de atenção, quem mais tinha poder...
Isso foi com a portaria 204, de 2007, que estava em vigor?
Exatamente. No final foram criados os cinco blocos, que depois viraram seis, que estão até hoje. Veja que isso é um debate do Pacto de 2006, mas a definição veio em 2007. Assim, no finalzinho de 2007 a transferência passa a ser por blocos, que continuam com a lógica de oferta; só se mudou a forma de repasse, de acordo com as áreas que mais pressionavam: a média e alta complexidade e a área da SAS (Secretaria de Atenção à Saúde) do Ministério.
Ficaram os seguintes blocos: Gestão, Assistência Farmacêutica, Vigilância Sanitária, Atenção Básica e Média e Alta Complexidade. E depois criaram o bloco de investimento, no governo Lula, que não tinha muito uma defesa do SUS, porque vinha dos sindicatos e os sindicatos não defendem muito o SUS. A marca do Lula foi criar as Unidades de Pronto Atendimento, as famosas UPAs. A UPA significava construir uma coisa que vai aparecer, que é um contêiner e tal, mas muito município dizia: ‘eu não preciso de uma UPA, eu já tenho pronto-socorro, preciso de dinheiro pra ele’. Não, agora a política é a UPA. Se criar a UPA tem dinheiro, faz o projeto e tal, o Ministério ajuda e instala a UPA.
Aí, em 2012, foi aprovada a Emenda Constitucional 29, que se materializa na chamada Lei Complementar 141. Já havia um debate intenso para regulamentar a emenda, e a discussão não era só ter mais recurso, mas era a forma de distribuição dos recursos da União. Há o artigo 17 na lei 141, que diz como se devem dar as transferências na rede a partir de 2012. A transferência deve ser repassada pela União para os estados e municípios tendo como critério as necessidades em saúde, balizadas nas condições demográficas, epidemiológicas, socioeconômicas e espaciais. Mas, por exemplo, como fica as pessoas na Região Norte? Elas precisam se deslocar às vezes dez dias de barco para ter uma referência, e assim, você tem de considerar esse critério na forma de transferência. A discussão deveria ser equidade e não somente produção, a questão espacial também era importante.
Só que na hora do ‘vamos ver’, com o movimento interno e a pressão do mercado, acabaram saindo, além desses critérios que eu falei, os critérios estabelecidos no artigo 35 da lei 8080. O artigo 35 fala em capacidade de oferta, fala em algumas questões demográficas e tal, mas fala de outras coisas também, inclusive coisas que não tinham sentido, como o plano quinquenal de cada ente federado. Não existe no Brasil plano quinquenal, o que existe é plano quadrienal, que são quatro anos. Na época havia um estudo do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) dizendo que parte dos critérios do artigo 35 não era aplicável, outra parte, sim. E nunca foi regulamentado esse artigo 35. Já em 2012 formou-se um grupo na tripartite da qual eu participei para discutir como operacionalizar o artigo 17.
Em 2013, nós começamos a discutir nesse grupo, conduzido pelo Ministério, que então começou a querer discutir para dentro, com as diversas áreas programáticas. E as áreas não queriam abrir mão dos blocos, porque os blocos já eram a garantia de ‘reserva de mercado’, vamos chamar assim, de cada área para obter recurso. E as áreas começam a exigir que haja uma fragmentação por dentro dos blocos de financiamento. Portanto, a área da saúde mental cria a coisa dos CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), que é um avanço, mas requer incentivo financeiro. Dessa forma, foi incorporado dentro da média e alta complexidade. Ao incorporar, o município na ponta tem que abrir uma conta separada para as coisas da saúde mental, porque ele tem de prestar conta para tal área.
Por dentro dos cinco blocos, há 890 formas de repasse de recursos. O que, na prática, exige que lá na ponta os gestores abram conta para prestar contas para os órgãos de controle, que vêm ganhando espaço no país. O que é uma coisa positiva, mas também tem o lado negativo. Os órgãos de controle adoram essa fragmentação, porque vem tudo amarrado, controlado.
Mas o que a aprovação dessa portaria significa no contexto político atual?
Nós estamos num quadro político muito complicado. Só que, por dentro do SUS, os gestores têm que se virar. Conass e Conasems não pararam de pedir que isso tudo fosse aglutinado ao longo do tempo todo, e o Ministério sequer discutia com eles. Quando você aloca de forma equitativa, vai ter que tirar recurso de um estado, por exemplo, e passar para aquele que está precisando mais. E isso politicamente é inviável. E aí vai precisar de recurso novo para fazer a distribuição equitativa de recurso. Como nós temos problema de financiamento do SUS, não tem recurso novo.
Depois, veio o governo Temer e aprovou a PEC 241, que virou a Emenda Constitucional 95. A situação do sistema é grave porque não tem recurso. Tem a pressão do gestor na ponta de município e do estado, porque a crise está batendo em todos, tem queda de arrecadação nos estados e municípios. Os municípios sempre reclamaram que se sobrava dinheiro na média e alta eles não podiam pegar esse dinheiro e passar para a atenção básica e vice-versa, porque os orçamentos são formados por blocos que criam programa orçamentário e na lei orçamentária você não pode deslocar de um para o outro.
Este ministro, diante da falta de recursos, na sua correlação de forças políticas, foi levado pelos gestores e pela equipe dele no Ministério, sobretudo a secretaria executiva que veio do Conasems, a acabar com isso. O ministro, é claro, nem sabe de todos esses debates aqui colocados. Ele, politicamente, faz isso numa situação de ausência de recursos, porque os estados e municípios não vão poder reclamar.
Ele agora joga lá para baixo, na pressão e na disputa no município e no estado. Os órgãos de controle não gostaram disso, os Ministérios da Fazenda e do Planejamento nunca permitiram. O problema é que antes o Ministério da Saúde não tinha poder para ir direto ao presidente, porque os ministérios da Fazenda e do Planejamento sempre foram mais fortes. Só que, agora, as áreas sociais estão todas a reboque da lógica da política de exceção que este governo está lançando.
Portanto, o ministro, que nem da saúde é, teve o aval do Temer. É a contradição do processo. Toda essa minha fala é porque eu não posso dizer simplesmente se sou contra ou a favor. Nós temos que levar a contradição e expor as vantagens e desvantagens.
Quais são elas?
Uma vantagem é que se agiliza e traz à tona a ideia de que a construção da política tem de se dar localmente, e não induzida pelo governo federal, e traz maleabilidade para que os gestores possam fazer e executar melhor política de saúde. Mas, para isso, tem de amarrar com critérios de rateio que a lei impõe. Há todo um debate dos gestores de pressionar o Ministério. Eles estão sentados juntos para garantir que vão ter de se construir, nessa fase de transição, os critérios de rateio. Inclusive, eu estive no Conselho Nacional de Saúde colocando isso, que pode ser uma desvantagem se não amarrar com os critérios. A desvantagem seria que vai ficar solto lá na ponta e aí, é claro, o mercado pressiona muito mais.
Essa foi uma das críticas colocadas também nesse processo, de que a nova forma de repasse de recursos vai abrir caminho para que o mercado de média e alta complexidade que presta serviço para o SUS possa pressionar por uma fatia maior dos recursos no nível municipal. Qual é sua análise sobre o risco disso vir a acontecer?
A gente tem de garantir agora os critérios de rateio. Por quê? Nos critérios de rateio é assim: você vai ter que mandar o recurso baseado em necessidades de saúde medidas por critérios demográficos, epidemiológicos, socioeconômicos e espaciais. Você precisa medir o desempenho, o que o município e o estado fizeram de saúde. Porque se você mandar e deixar que a disputa fique lá no mercado, a média e alta então vão se sobrepor, você tem de garantir, mas não do ponto de vista do ‘controlismo’ da área programática. Como se vai medir desempenho técnico?
Você vai medir frente ao que se definiu como planejamento local, ao que está lá no plano de saúde, com metas, indicadores. Como vou medir? Com o resultado que se alcançou naquela meta. Aí a forma de transferência não vai ser por incentivo de cada área, mas pelo resultado geral da política. Essa é a reivindicação desde aquela época. Mas, para isso, precisa todo apoio à construção do planejamento, precisa que o conselho de saúde tenha tal papel.
Agora, a gente volta a impor a discussão, mas vai precisar fazer pressão política, senão não garante. Quando eu estive no Conselho Nacional de Saúde defendi que eles devem fazer essa ponderação. Eles estão começando a trabalhar nisso, mas agora vai depender da pressão política. Os critérios têm de ser discutidos conjuntamente, porque se ficar somente a ideia de passar custeio e investimento e ponto final, vai ser um problema.
Alguns críticos alertam para o risco de que isso signifique uma perda de recursos para áreas com menos poder de pressão política, como a vigilância sanitária, o que pode ser bastante grave especialmente num contexto de epidemias como a da febre amarela e a zika. Qual a sua avaliação sobre isso?
Eu não concordo com a crítica de que agora acabou a vigilância sanitária, acabou a atenção básica. Ora, a atenção básica e a vigilância sanitária já vêm acabando há muito tempo. O SUS vem acabando há muito tempo por uma série de outros motivos. Essas críticas são programáticas. O bloco da vigilância era um dinheirinho tão pequeno... E não é que vá acabar o bloco da vigilância, porque na realidade a ideia que a gente tem de atacar é a que visa apenas juntar os blocos.
Na ponta, o município já tem ações de vigilância que ele tem de dar conta. Ele não vai deixar de fazer aquilo. O que nós precisamos é fazer uma discussão para enfrentar o debate. O problema é a ausência do financiamento da saúde, do SUS. Não tem recursos. Não vai ser a modalidade de repasse que vai impactar. Eu acho que essa crítica é bem de reserva de mercado da área deles, da atenção básica e tal. Nós temos que trabalhar para reforçar o SUS em outra lógica.
Os gestores do Conasems e Conass são enfáticos em dizer que já estão trabalhando na regulamentação dessa portaria, onde tudo vai ser amarrado. Agora, o quadro político é muito complicado. Na realidade, eu não sei até que ponto há margem.
Tem um prazo definido?
Eles querem dar o prazo de até 60 dias, a partir da emissão da portaria. E eles já estão trabalhando. O Conasems fez uma oficina e me chamou para discutir, o Conass vai chamar em outra oficina, estão chamando técnicos, pessoas que estudam. No entanto, estamos num quadro político complicado, não dá para dizer que acabou. Essa é uma visão simplista, é preciso ponderar a contradição do processo. A discussão não pode estar associada simplesmente a criar a modalidade de custeio e capital. Do ponto de vista do Ministério e do governo, eles fizeram o próprio jogo. Qual? Joga lá para baixo, deixa os estados se enfrentarem com o mercado e ele tira a batata quente dele, porque não tem recurso. Mas a todo momento temos de discutir que precisa ter recurso novo para a saúde.
Um dos argumentos do ministério para defender a alteração é de que em 2016 os municípios deixaram de usar R$ 5,7 bilhões em recursos por conta do modelo anterior de repasse. Esse argumento é válido?
Nós fizemos estimativa para poder fazer a locação equitativa, e identificamos que teria que ter R$ 5 bilhões a mais. Com R$ 5 bilhões já melhoraria a forma de transferência, garantiria equidade e tal – para os estados. Quando eu falei isso no Conselho Nacional de Saúde, o representante do Ministério da Secretaria de Orçamento, indicado por esse ministro, virou e disse. “R$ 5 bilhões é o dinheiro que os municípios deixaram no fundo e não usaram”.
Eles estão dizendo agora que os municípios e estados são os culpados, eles que se virem, porque o ministério está fazendo a sua parte. É um meio de jogar a batata quente para lá. Se você perguntar para o Conasems, vão dizer que não, o que ficou em caixa foi problema de dinheiro que veio atrasado, dada a insuficiência orçamentária, o problema do financiamento do SUS, e eles não podem deslocar para cá e para lá. Assim fica parado. E a discussão vai para um nível de uma tecnicalidade na execução orçamentária. Não podemos cair nisso.
O que eu digo é o seguinte: tem que problematizar, porque isso que está sendo anunciado como uma grande questão não é a grande questão. A grande questão é a forma com que o ministério está privatizando por dentro, defendendo planos de saúde populares. Nós somos contra tudo isso. Aí joga a história do modelo de repasse como uma grande questão, e os opositores mais imediatos, que estavam no governo até ontem, fazem a crítica, dizendo que agora, e só agora, virou um grande problema. Eu tenho receio de que isso vá deslocando o debate da privatização por dentro, que está em andamento com o modelo que o ministro anuncia sempre, nessa lógica dos planos acessíveis.
André Antunes é jornalista do Portal Fiocruz, da Escola Politécnica de Saúde Pública Osvaldo Cruz, onde a entrevista foi originalmente publicada.