Correio da Cidadania

Lei da Terceirização: “vai ser normal trabalhar e não receber”

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Desencanto e perplexidade totais parecem ser os sentimentos do brasileiro médio frente à carreira desabalada do governo Temer na direção de todas as reformas pró-capital que possamos imaginar. Após um malabarismo que resgatou projeto de Lei de 1998 para liberar a terceirização ampla, geral e irrestrita, o Correio da Cidadania entrevistou a historiadora Rejane Carolina Hoeveler.

“O Brasil que sair desse massivo ataque neoliberal será um país muito mais desigual e menos autônomo. Em 1972, o Brasil foi o campeão mundial de acidentes de trabalho. O arrocho salarial imposto pela política econômica da ditadura obrigava os trabalhadores a fazerem muitas horas extras em condições degradantes e o resultado foi esse triste recorde. Com a terceirização irrestrita aprovada hoje, podemos chegar lá novamente - sem militares à vista”, sintetizou.

Para além da ilimitada criatividade de um governo e Congresso sem qualquer legitimidade social, a entrevista destaca o fato de as terceirizações já fazerem parte de amplas parcelas dos trabalhadores brasileiros. Ademais, novamente a crítica sai da zona de conforto de atacar o governo ultraliberal e patronal de Temer para dividir responsabilidades com a era Lula, que já permitia a ampliação da precarização do trabalho. E se o economista Eduardo Fagnani aponta para uma mudança de paradigma social, Rejane já considera esse dado uma realidade.

“Nós já estamos vivendo na era do sujeito neoliberal. O sujeito neoliberal é exatamente esse que passa a se entender como um ‘empreendimento’, tendo como pressuposto expor-se aos riscos e assumir a responsabilidade pelos eventuais fracassos. Não somos mais trabalhadores, somos proprietários de um ‘capital humano’ que precisa se autovalorizar. Precisamos nos acostumar a ‘viver na incerteza’, é um estado que parece natural”, explicou.

Leia a íntegra da entrevista com Rejane Carolina Hoeveler.



Correio da Cidadania: Pensávamos que o projeto de lei de abertura total para as terceirizações seria o 4330/2015, capitaneado por Eduardo Cunha. No entanto, foi levado adiante um de 1998, que estava enterrado no Senado, com a mesma finalidade. O que comentar a este respeito?

Rejane Carolina Hoeveler: É difícil até comentar, diante da estupefação em que ficamos ao saber da aprovação. Já sabíamos que este Congresso era capaz de manobras espetaculares para aprovar as contrarreformas, mas neste nível acho que surpreendeu até os mais cautos. Os caras conseguiram desencavar um projeto de 19 anos atrás, basicamente pelo fato de que ele possibilitaria “pular” a fase de discussão no Senado, acelerando o rito parlamentar. O “benefício” extra é que o teor desse PL 4302, de 1998, em relação ao do Cunha, proposto em 2015, é ainda pior, porque no anterior a empresa com trabalhadores terceirizados formalmente ainda tinha a obrigação de fiscalizar se a fornecedora de mão-de-obra cumpre as obrigações trabalhistas. Agora nem isso.
    
Não é só o caso de que apenas 12 dos atuais 81 senadores estavam no exercício do mandato à época em que esse projeto foi discutido, em 1998; a atribuição do Congresso é debater os projetos de lei não no “vácuo”, mas nas circunstâncias sociais dadas. Ainda mais numa questão dessa, de alto impacto, e que tem a ver com direitos trabalhistas inscritos na Constituição.

A manobra é dupla ou tripla, porque em primeiro lugar não fizeram em forma de alteração constitucional (que teria de ser em forma de PEC, exigindo uma margem maior de votação). Não se pode pegar um projeto que foi examinado há quase vinte anos e aprovar num só dia! É uma forma de tornar a Constituição inválida nesse quesito, sem ter que mexer na Constituição. Temos de admitir, foi uma tacada de mestre! É inacreditável. Esse Congresso topará qualquer negócio, atropelará qualquer princípio democrático, para aprovar o fim dos direitos trabalhistas.
    
E tem mais um detalhe sórdido: eles resolveram aprovar esse projeto porque viram que votar a reforma da Previdência vai ser mais difícil que se pensava – houve manifestações com centenas de milhares de pessoas contra a reforma da Previdência no último dia 15, e isso embaralhou a votação da matéria na Câmara.

Estrategicamente, eles congelaram provisoriamente a votação da Previdência e pautaram a terceirização. Tudo isso um dia depois de Temer e sua equipe participarem de um evento com investidores brasileiros e internacionais, ávidos para que o governo mostrasse “serviço”. E o fizeram.
    
Embora a margem de aprovação tenha sido bem menor do que a aprovação da PEC do teto de gastos (foram 231 votos favoráveis, 188 contrários e oito abstenções, enquanto na PEC foram 359 votos a 116), Temer mostrou que ainda tem capacidade de controlar o Congresso. São uma presidência e um Congresso totalmente subservientes aos interesses do capital, especializados em burlar os rituais democráticos.

O argumento daqueles que votaram a favor é que existe um “excesso de direitos trabalhistas”, que “impedem a contratação”; e dizem que a terceirização vai aumentar os empregos formais. Como dizem os norte-americanos, bullshit! Balela! O que vai acontecer é que muito em breve os atuais trabalhadores contratados serão demitidos para a contratação de terceirizados através de empresas “prestadoras de serviço”, ou através de pessoa jurídica (PJ). Em muitos casos é provável que as empresas contratem “dois por um”, isto é, consigam diminuir sua folha de pagamento.

Ou seja, a curto prazo isso pode significar mais desemprego, e não menos. Sem contar, é claro, o tipo de emprego que se irá supostamente “criar”.

Correio da Cidadania: Ao lado das outras reformas buscadas pelo governo Temer, como as trabalhista, previdenciária e educacional, o que está posto para o país? Uma alteração do próprio modelo de sociedade, como disse o economista Eduardo Fagnani?

Rejane Carolina Hoeveler: O Brasil que sair desse massivo ataque neoliberal será um país muito mais desigual e menos autônomo. Em 1972, o Brasil foi o campeão mundial de acidentes de trabalho. O arrocho salarial imposto pela política econômica da ditadura obrigava os trabalhadores a fazerem muitas horas extras em condições degradantes e o resultado foi esse triste recorde. Com a terceirização irrestrita aprovada hoje, podemos chegar lá novamente - sem militares à vista. A imensa maioria dos trabalhadores brasileiros será precarizada e não conseguirá se aposentar, morrerá trabalhando.

Não sei se será exatamente outro modelo de sociedade, pois já vivemos nessa sociedade neoliberal, no império do capital, e estamos sofrendo derrotas há muito tempo. É preciso dizer que houve também contrarreformas no período do governo Lula, e mesmo as concessões realizadas foram extremamente limitadas.

Essencialmente, não foram baseadas em uma cidadania de direitos, como colocam muito bem Ruy Braga e outros sociólogos. Sem falar, é claro, no “legado” intocado dos oito anos de governo do Fernando Henrique Cardoso (um deles o próprio PL 4302 aprovado ontem).

Correio da Cidadania: Quais serão as consequências dessa ampla terceirização na vida do trabalhador comum?

Rejane Carolina Hoeveler: A consequência principal é a precarização do trabalho. Coisas básicas, como salário em dia, são feridas de forma recorrente pelas empresas contratadoras e nada a acontece. No ano passado, por exemplo, as trabalhadoras de limpeza de várias universidades federais (sim, porque em sua maioria são mulheres, que são as mais precarizadas, e as mulheres negras, que estão na base da pirâmide salarial), ficaram meses sem receber. E sem poder parar de trabalhar, sob o risco de demissão. Num cenário em que você não tem opções de emprego, elas tiveram de se submeter a trabalhar sem receber. É muito mais difícil organizar trabalhadores que estão nessa situação. E tal situação, provavelmente, passará a ser majoritária na classe trabalhadora brasileira.
    
Isso também poderá se tornar a norma para toda uma série de categorias até então contratadas através de concursos públicos. Imaginem, nos serviços públicos, o poder que agora terão as OSs, as chamadas “Organizações Sociais” (que são privadas, mas recebem dinheiro público), que já controlam a maior parte da contratação de profissionais na saúde, por exemplo. Imaginemos o efeito disso em serviços públicos que já são terríveis, por consequência, entre outros fatores, da não valorização dos servidores.
    
Todas as pesquisas sérias sobre o assunto mostram que os trabalhadores e trabalhadoras terceirizados recebem menos; em média, quase 30% a menos, sendo que trabalham, em média, quase 30% mais. O Ricardo Antunes, um dos principais especialistas brasileiros no assunto, mostra como as empresas contratantes conseguem burlar a Justiça do Trabalho, através de várias maneiras, entre elas “fechando”: elas encerram sua razão social para não se endividar, caso sejam condenadas pela Justiça, abrem outra logo depois e o trabalhador fica sem receber.

Aliás, a própria Justiça do Trabalho também está sendo dilapidada, com direito a declaração explícita do Rodrigo Maia de que ela “nem devia existir”. A terceirização aumenta a fragmentação da classe trabalhadora, porque fica muito mais difícil agrupar num mesmo sindicato trabalhadores “contratados” e os terceirizados, que dirá dos “quarteirizados”.

Correio da Cidadania: Como ficará o cenário para as empresas, em especial aquelas que estiverem na ponta dos processos produtivos e subcontratam diversas firmas para seus serviços? Está liberado o calote geral sobre o mundo do trabalho?

Rejane Carolina Hoeveler: Praticamente liberado. Para as empresas é ótimo porque é “terceirizada” uma parte fundamental de seus problemas, que são as relações trabalhistas.

Correio da Cidadania: É possível dialogar com governantes como Temer e os congressistas que aprovaram a reforma? Qual o caminho a ser feito na disputa política, em sua visão?

Rejane Carolina Hoeveler: Quando sequer se dá tempo para a sociedade discutir e poder influir sobre um projeto de lei, desengavetando-o e aprovando num dia só, como foi feito ontem, é óbvio que está se lixando para a opinião pública. Mais do que isso, trata-se de uma verdadeira guerra, realizada em aliança com a grande mídia, com táticas e manobras feitas sob medida para impedir que a população possa pressionar. As decisões parlamentares são “blindadas”. Estamos sofrendo agora os golpes depois do golpe.
    
Eu não sei exatamente quais são as iniciativas parlamentares e judiciais que os partidos da oposição, aqueles que se opuseram à aprovação dessa lei, podem tentar; acho que são válidas, mas é muito difícil que sem uma forte pressão externa se consiga reverter. Temos visto isso repetidamente. A única saída, portanto, é lutar incessantemente, nas ruas, nos locais de trabalho, fazer grandes manifestações públicas, como a que foi feita no dia 15 de março contra a reforma da Previdência, organizar uma greve geral nesse país. É o único caminho.

Correio da Cidadania: Somos todos empreendedores? Estamos diante da “utopia liberal”?

Rejane Carolina Hoeveler: Este é um ponto fundamental a ser dito, porque o outro lado da moeda, ao menos quando analisamos as “saídas” que o capital apresenta, é o tal do “empreendedorismo” - que virou uma palavra-chave de empresas, governos e uma miríade de ONGs e entidades de perfil empresarial com atuação social. As políticas públicas governamentais estão cada vez mais pautadas por esse mote, no melhor estilo “não pense em crise, trabalhe”.

Aqui é vendida a ideia de que se o indivíduo se esforçar muito e tiver “mérito”, ele conseguirá se sair bem mesmo num cenário de crise. Organizações Não Governamentais cada vez mais se dedicam a formular programas, prêmios, encontros e eventos diversos sobre empreendedorismo, e estão na mídia o tempo todo. Mas se analisarmos bem, veremos como é uma forma de mascarar a velha exploração de trabalho precarizado, e formar uma ideologia que sabota as identificações de classe. Não é por acaso que o que mais vem crescendo é o discurso do empreendedorismo feminino, pois são as mulheres as que sofrem mais a precarização.
    
Nós já estamos vivendo na era do sujeito neoliberal. O sujeito neoliberal é exatamente esse que passa a se entender como um “empreendimento”, tendo como pressuposto expor-se aos riscos e assumir a responsabilidade pelos eventuais fracassos. Não somos mais trabalhadores, somos proprietários de um “capital humano” que precisa se autovalorizar. Precisamos nos acostumar a “viver na incerteza”, é um estado que parece natural.

As consequências psíquicas disso são enormes, basta ver o surto de depressão e síndromes diversas causadas por questões de trabalho, como desemprego ou medo do desemprego, a pressão que internalizamos para trabalhar o tempo todo etc. Como os problemas são vistos como individuais e não sociais, as pessoas tendem a achar que a culpa é delas, porque elas não trabalharam o suficiente.

A indústria farmacêutica vai muito bem, obrigado! O índice de suicídios na China, um país que os capitalistas brasileiros e internacionais querem “imitar” em termos trabalhistas, é uma das coisas mais assustadoras do mundo contemporâneo. Se quisermos evitar esse destino, temos que nos levantar já.

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