Correio da Cidadania

O que a repercussão do escândalo da adulteração da carne tem a nos dizer?

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"Por que então o algodão, a batata e a aguardente são as pedras angulares da sociedade burguesa? Porque para produzi-los é necessário menos trabalho e, consequentemente, eles são mais baratos. Por que o mínimo de preço determina o máximo de consumo? Seria, por acaso, em função da utilidade absoluta desses produtos, da sua utilidade intrínseca, da sua utilidade enquanto melhor correspondência às necessidades do operário como homem e não do homem como operário? Não: é porque, numa sociedade fundada na miséria, os produtos mais miseráveis têm a prerrogativa fatal de servir ao uso da grande maioria” (Karl Marx, “A miséria da filosofia”).

No dia 17 de março de 2017 o noticiário brasileiro foi mais uma vez tomado pela divulgação de uma operação da Polícia Federal (PF) que denunciava outro esquema de corrupção, a envolver grandes empresas e funcionários públicos. Desta vez, frigoríficos e fiscais agropecuários do Ministério da Agricultura foram acusados de montar um esquema para que mercadorias adulteradas e/ou vencidas pudessem ser comercializadas.

Com a pirotecnia que já lhe é peculiar, a PF cumpriu 38 mandados de prisão em seis estados e no Distrito Federal, sem revelar detalhes sobre as investigações nem sobre as acusações que pesam sobre cada uma das 31 empresas envolvidas até aqui (além das gigantes JBS e BRF, outras 29 empresas também são alvo da Operação Carne Fraca).

Quase imediatamente foi possível sentir o tamanho da repercussão que o caso teria. Aqueles que acompanhavam o noticiário percebiam a magnitude do caso pela forma como a imprensa o tratava. Outros viam aos poucos suas redes sociais e celulares serem invadidos por “memes” e piadas que faziam referência ao novo escândalo que tomaria conta das conversas mais ou menos sérias sobre o assunto. Pouco depois, começariam a aparecer as primeiras análises, que tentariam revelar as reais intenções de mais uma operação da Polícia Federal.

A meu ver, mesmo passadas duas semanas da divulgação das denúncias, ainda não é possível ter dimensão da extensão do esquema revelado pela Polícia Federal, nem determinar o impacto que ele terá sobre as empresas acusadas (e consequentemente sobre a economia brasileira). No entanto, ainda no calor do momento, cabe pensar o que tanto as acusações que pesam sobre as empresas como sua repercussão revelam sobre o momento em que vivemos.

Em primeiro lugar, cabe destacar como a enxurrada de “memes” sobre o escândalo revela que ao mesmo tempo em que mostramos uma capacidade cada vez maior de rir da miséria na qual estamos metidos, nos distanciamos da capacidade de indignação frente a ela. Não é preciso dizer que esse não foi o primeiro caso no qual um evento com ares trágicos torna-se tema de incontáveis piadas em um curto intervalo de tempo e assim fica cada vez mais comum ouvirmos (ou fazermos) algum comentário jocoso sobre a “criatividade do povo brasileiro”.

Não quero patrulhar a risada alheia, mas me parece revelador o fato de que para muitos de nós a única forma de lidar com algo grave como a adulteração de alimentos seja através da gozação. Desde o anúncio feito pelo delegado da Polícia Federal, não consegui encontrar uma notícia que tratasse de um ato, protesto ou manifestação que demonstrasse claramente nossa indignação contra as empresas envolvidas. E assim, a meu ver, mais uma vez a zombaria serve para amortecer e minimizar nosso ódio.

Em segundo lugar, penso que seria interessante pensar o que há por trás de uma espécie de celebração por parte de alguns (muitos?) vegetarianos frente ao ocorrido. Difícil definir precisamente a razão desse regozijo (que também tomou a forma de “memes” ou de debates nas redes sociais), mas é possível supor que, para alguns vegetarianos, quem consome carne não mereceria outro tratamento da indústria alimentícia.

Gostaria de destacar que meu desconforto aqui não é com o vegetarianismo, e que não me identifico com as repostas (em geral rasas) que esse tipo de provocação gerou. Para mim, o que precisaria ser destacado é o fato de ser uma das formas pelas quais se manifesta uma espécie de distinção (e até mesmo rivalidade) entre consumidores de tipos diferentes: de um lado, aqueles consomem de maneira correta, justa, ética e consciente; de outro, aqueles que, ao consumir, tornam-se responsáveis pelos problemas que têm origem na produção de mercadorias.

Estaríamos diante de um discurso que responsabiliza o consumidor pela forma como as mercadorias são produzidas? A quem ele serve? E em que medida ele nos divide ao invés de fortalecer um embate contra processos que atingem a todos nós?

Responsabilizar o consumidor e suas escolhas individuais é parte fundamental da ideologia do livre-mercado. Esse raciocínio quer nos fazer crer que como consumidores (individual ou coletivamente) podemos definir, por meio de nossas compras, a maneira como as mercadorias são consumidas.

Logo, o consumo deve ser visto como uma forma eficaz de promover a solução dos problemas ambientais e sociais que caracterizam as sociedades em que vivemos. No centro do capitalismo mundial essa crença já tem nome e prega que “devemos votar com nossos dólares” (dollar voting), ou seja, que devemos considerar cuidadosamente os impactos que nossas compras produzem, para assim mostrar às empresas que cada dólar gasto é um voto naquilo que nós, como consumidores e cidadãos, acreditamos e apoiamos. Nada mais adequado aos interesses do capital do que tornar o consumo nossa forma privilegiada de fazer política.

A meu ver há vários motivos para combatermos tal tipo de raciocínio. Primeiramente porque ele supõe que seja possível, sob as relações sociais capitalistas, produzir mercadorias de maneira ética/justa/consciente. Em segundo lugar porque não passa de mais um processo de mercantilização: o conforto moral com o que consumimos ganha um preço, inacessível para parcela significativa da população, e pode mesmo se tornar um elemento de distinção social.

Como indicado na epígrafe desse texto, em nossa sociedade não é a utilidade ou a qualidade de uma mercadoria que faz com que ela seja a mais consumida entre os trabalhadores. Enquanto houver uma enorme massa de trabalhadores mal pagos (leia-se explorados) são os produtos mais baratos (leia-se, aqueles que foram produzidos sob as condições de trabalho mais degradantes e com o uso das matérias-primas mais baratas) que serão mais consumidos em nossa sociedade. É por isso que, para Marx, “numa sociedade fundada na miséria, os produtos mais miseráveis têm a prerrogativa fatal de servir ao uso da grande maioria”.

Por fim e, a meu ver, o ponto mais importante deste embate seria a forma como a repercussão dessas denúncias aponta para limites do debate político no Brasil, em especial para limites de uma parte da esquerda (na falta de melhor definição) que parece perder mais uma oportunidade de explicitar como estamos sujeitos e expostos a uma série de constrangimentos e opressões dentro e fora do ambiente de trabalho.



Pouco depois das notícias sobre a adulteração da carne tomarem o noticiário, difundiu-se uma compreensão de que a investigação de esquemas que envolvem grandes indústrias do setor alimentício (em especial o de carnes) seria devastadora para a economia brasileira. Muitas delas associando o ocorrido com recentes investigações de mesmo caráter no setor petrolífero e na construção civil (através da Operação Lava Jato), indicando uma ação orquestrada para fragilizar setores estratégicos da economia brasileira.

Não é novidade para ninguém que a Polícia Federal vem sendo utilizada politicamente pelos setores mais conservadores de nossa sociedade. Tampouco penso que seja difícil perceber que suas ações são para lá de seletivas. Assim, não quero aqui negar a necessidade de uma crítica à atuação da Polícia Federal e acho importante que alguns meios de comunicação independentes, ou melhor, meios de comunicação que não são controlados por um punhado de famílias, denunciem a maneira como tudo vem ocorrendo (Xadrez para entender a operação Carne Fraca, Luís Nassif).

No entanto, me preocupa quando essa crítica à atuação da PF vem acompanhada de algo que, no mínimo, se aproxima da defesa das empresas envolvidas, seja levantando a estranha tese de que as empresas não deveriam ser responsabilizadas e sim alguns de seus funcionários, tidos como inescrupulosos, ou através de uma defesa mais direta da importância delas para o desenvolvimento do capital nacional. Quase imediatamente foi possível perceber que, para uma parte da esquerda, não caberia nesse momento fazer críticas às empresas envolvidas no caso, sob o risco de ser ingênuo ou mesmo de estar “fazendo o jogo da direita”.

Parece-me que se trata de uma extensão de uma dicotomia que vem dominando e rebaixando o debate político nacional – a saber, o embate entre coxinhas e petralhas, entre golpistas e petistas – e que impede que avancemos na compreensão do que vem acontecendo no país (e no mundo) nos últimos anos. Assim, se interdita a possibilidade de ao mesmo tempo revelar os interesses envolvidos nas ações da PF e mostrar como suas revelações apontam para a necessidade de uma crítica radical da ação das empresas privadas e do Estado.

Neste momento me pergunto por que parte da esquerda não quer enxergar que, para se tornarem grandes empresas multinacionais que concorrem em escala internacional, a JBS e a BRF (assim como qualquer outra empresa) teriam necessariamente de adotar as mesmas práticas de suas concorrentes em escala global? Ou seja, teriam de apelar para a superexploração do trabalho com pouca ou nenhuma preocupação com o meio ambiente. E mais, tenderiam a adulterar (dentro ou fora da lei) aquilo que comemos.

Por que essa parte da esquerda não aproveita o momento para criticar as condições de trabalho que tais empresas impõem aos seus trabalhadores e expõe as denúncias e estudos que já existem sobre o tema (Moendo gente: a situação do trabalho nos frigoríficos; JBS, Sadia e Marfrig varrem doenças de trabalhadores para debaixo do tapete, Repórter Brasil)? Que esquerda é essa que acaba legitimando os abusos das empresas como parte do jogo a ser jogado na concorrência internacional? Por que não apostar na crítica da indústria alimentícia e dos grandes empresas do agronegócio que historicamente atuaram em oposição aos interesses da população como um todo? O argumento de que seria melhor garantir algum trabalho degradante do que nenhum trabalho me parece um argumento válido para quem explora, mas jamais para quem é explorado.

Uma vez mais somos obrigados a reconhecer a atualidade da obra de Marx, não para fortalecer um argumento acadêmico apartado das questões práticas da vida, mas para resgatar uma obra que nos permite compreender melhor os processos aos quais somos submetidos em uma economia capitalista. Ele já anunciava como a adulteração (não apenas) dos alimentos (1) estava na gênese dessa economia que tem como fim, não a satisfação de nossas necessidades, mas a busca incessante pela acumulação de mais capital.

Também explicitava como os interesses do capital e dos trabalhadores são antagônicos dentro ou fora do ambiente de trabalho. Foi assim, de maneira coerente com suas pesquisas, que em mais de um momento Marx defendeu a necessidade de uma crítica radical da realidade como fundamento das ações que visam transformar a realidade.

O debate em torno da adulteração da carne mostra o quanto estamos presos (mesmo dentro da esquerda) à busca pelo aperfeiçoamento dos mecanismos da economia de mercado, o que faz parecer possível dominar e regular os imperativos da reprodução do capital (isso sim uma utopia!). Os trabalhadores assumem a racionalidade do capital e desejam participar da solução dos problemas. Os sindicatos saem em defesa das empresas acusadas de superexploração do trabalho (Trabalhadores da Alimentação defendem empregos no setor da carne). As contradições são apaziguadas e prevalece a identificação.

Neste momento é indispensável tratar os fatos com a seriedade que eles merecem. Não podemos abrir mão de uma crítica radical caso nossa perspectiva ainda seja a da transformação da realidade para que nossas necessidades deixem de ser meros meios para a valorização do capital. É preciso explicitar que, num mundo invertido, a irracionalidade aparece a todo momento travestida de racionalidade.

A crítica que faço aqui está assentada na compreensão de que as variadas organizações/instituições que defendem os interesses dos trabalhadores cumpririam um papel importante na transformação da realidade e que, portanto, é necessário debater sempre suas posições e seus rumos. Em outras palavras, quero dizer que me importo com os rumos da esquerda, guardando meu desprezo e ódio à direita, pois dela (e apenas dela!) não espero mais do que a legitimação da barbárie.

Notas

1) “A inacreditável adulteração do pão, especialmente em Londres, foi primeiramente desvendada pelo comitê da Câmara dos Comuns “sobre a adulteração de alimentos” (1855/56) e pelo escrito do dr. Hassall Adulterations detected. (…) O inglês apegado à Bíblia sabia que o ser humano, quando graças à Divina Providência não se torna capitalista ou landlord (proprietário de terra) ou sinecurista, está condenado a comer pão com o suor de seu rosto; mas ele não sabia que tinha de comer com seu pão diário certo quantum de suor humano, embebido com supurações de abcessos, teia de aranha, baratas mortas e fermento podre alemão, além de alúmen, arenito e outros agradáveis ingredientes minerais” (Marx, O capital).


José Raimundo Ribeiro é Doutor em Geografia pela USP.
Publicado originalmente em Passa Palavra.

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