Correio da Cidadania

Temos que falar de aborto

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De tempos em tempos, o fantasma da penalização do aborto volta a assombrar, colocado por ilusionistas competentes ou demagogos interesseiros e oportunistas como milagrosa forma de preservação da vida.

Dessa vez foi a Comissão Especial da Câmara dos Deputados, que por dezoito votos a favor e um contra, aprovou a proposta de Emenda à Constituição 181/2011, conhecida como “Cavalo de Tróia”, que determina que “a vida começa desde a concepção”.

Essa PEC, inicialmente benéfica, visava apenas ampliar direitos trabalhistas, como o aumento do tempo da licença-maternidade para mulheres cujos filhos nasceram prematuros. Entretanto, ao ser alterada pelo Legislativo, em dezembro do ano passado, para discutir o aborto, acabou se transformando num pesadelo.

Longe de ser a primeira, é bem verdade que ela não é a única ameaça feita aos direitos reprodutivos das mulheres, nos últimos tempos. Os famosos e já muito combatidos “Estatuto do Nascituro” (PL 478/2007) e PL 5069/13 também representam ameaças reais para os direitos das mulheres. E, além deles, há também outras, como a PEC 164/2012, de autoria de Eduardo Cunha e a PEC 29/2015, de autoria do senador Magno Malta (PR/ES), que definem a vida como inviolável desde a concepção.

Com o claro propósito de impedir qualquer avanço da pauta da legalização do aborto no Brasil, elas abrem perigoso precedente para que qualquer forma de interrupção da gravidez seja proibida no nosso país, em franco retrocesso civilizatório.

Não é sem razão que todas essas propostas legislativas tenham sido sugeridas por homens, com apoio da bancada fundamentalista, no Congresso Nacional mais conservador desde a redemocratização.

E assim segue o Brasil, na contramão, insistindo em manter normas tão retrógradas que, longe de mudar nossa realidade fática, assentam uma verdadeira legislação sobre o útero alheio, em uma das posições mais conservadoras sobre o assunto, ao lado de Senegal, Iraque, Palestina, Iêmen e Nicarágua.

Atualmente, no nosso país, o aborto é legalizado em três hipóteses: no caso de gravidez decorrente de estupro, risco para a gestante e de gravidez de feto anencefálico - esta última em decorrência de decisão do STF, proferida em 2012. Entretanto, o que a realidade nos mostra é que, mesmo com esse respaldo jurídico, muitas mulheres ainda encontram vários entraves para realizar o procedimento.

Segundo a Organização Mundial da Saúde, a cada dois dias, morre, no país, uma mulher vítima de aborto clandestino. Ainda, de acordo com a Pesquisa Nacional de Aborto, realizada em 2010 pela antropóloga Debora Diniz e pelo sociólogo Marcelo Medeiros, mais de uma em cada cinco mulheres entre 18 e 39 anos de idade já recorreu a um aborto na vida, na grande maioria mulheres pobres, sem recursos para recorrerem a clínicas sofisticadas. E segundo as conclusões da Pesquisa Nacional do Aborto realizada em 2016, trata-se de um fenômeno frequente e persistente entre as mulheres de todas as classes sociais, grupos raciais, níveis educacionais e religiões.

Em 2015, ocorreram cerca de meio milhão de abortos. Ao todo, 48% dessas mulheres vão parar no hospital devido a abortamentos inseguros. O abortamento inseguro provoca 602 internações diárias por infecção, 25% dos casos de esterilidade e 9% dos óbitos maternos, sendo a quinta causa de mortes maternas no Brasil.

No mundo são realizados cerca de cinco milhões de abortos ao ano, sendo 97% em países onde o aborto é ilegal. Se consideradas as negras e pardas juntas, elas realizam cerca de três vezes mais abortos que as mulheres brancas e morrem ou sofrem sequelas três vezes mais também, em razão da maior vulnerabilidade desse grupo e das péssimas condições sociais em que vivem.

Esses números gritam e nos mostram que a maioria das mulheres continua morrendo na tentativa de interromper a gestação de uma criança que não querem ou não podem ter. Além disso, eles não só reafirmam que a criminalização do aborto obedece à mesma lógica do apartheid racial e social que rege o cotidiano do nosso país, como indicam que, na prática, a criminalização do aborto representa uma eficiente máquina estatal de produzir cadáveres femininos e também órfãos – se considerarmos que muitas dessas mulheres possuem outros filhos.

E, principalmente, nos mostram que o aborto, não só é comum entre as mulheres brasileiras, como que a legalidade ou ilegalidade não tem muita interferência sobre a decisão dessas mulheres, mas interfere, sim, sobre as consequências para a saúde delas.

Exemplo concreto disso é o que ocorre na França. No começo dos anos 70, a França foi palco de uma mobilização social que abraçava a pauta e, em 1975, viu a Lei Veil ser aprovada. A Lei permite a interrupção voluntária da gravidez, sob controle médico, até a 12ª semana de gestação e, 40 anos depois, continua a provar seu saldo positivo: há menos de 1 morte/ano na França em consequência da prática do aborto. Em paralelo, porque as mulheres podem fazer escolhas, a França exibe hoje uma das taxas de fecundidade mais altas da Europa (2,03).

Outros países como Canadá, Noruega, Portugal e mais recentemente o Uruguai já divulgaram dados de diminuição drástica do número de abortos após a legalização, isso porque a política de legalização veio acompanhada, mesmo que precariamente, pelo aumento da política de educação sexual e de planejamento reprodutivo.

Por tudo isso, muito diferentemente do que se propaga, a descriminalização do aborto salva vidas, sim, de muitas mulheres que merecem respeito à sua dignidade, como qualquer um de nós.

É bem verdade que esse assunto é bastante polêmico, e um dos mais controversos e difíceis de debater no Brasil, já que confunde conceitos de liberdade, direito, moral, religião e vida. Porém, estamos num momento em nosso país em que, se apropriar, ter posicionamento e se mobilizar por esse debate é essencial, porque quanto menos debatermos e menos informações tivermos, mais mulheres irão morrer. E ser a favor da vida só pode ser verdadeiro se for também a favor da mulher gestante.

Aqueles que insistem que defender a descriminalização do aborto é o mesmo que defender sua prática, certamente desconhecem por completo o peso do que é discutido: uma decisão difícil, conflitiva e muito dolorosa para qualquer mulher, em qualquer circunstância. E também ignoram ou fingem que não sabem, que as mulheres, no mais das vezes, recorrem a esse método apenas em última instância, quer porque foram educadas desde pequenas na “função social” de serem mães – o que faz com que essa decisão tenha um enorme peso psicológico -  quer porque, como é conhecido por todos, isso pode significar um trauma físico imenso. E, humanas que são, têm muito medo.

Também é falho o argumento de que “engravida quem quer”. Segundo dados extraídos da Pesquisa Nacional do Aborto, cerca de 50% das mulheres que abortaram usavam algum tipo de método anticoncepcional enquanto engravidaram e 70% estavam em relações estáveis. Ou seja, esse argumento, além de não enxergar o machismo nas relações, o qual implica desde violências sexuais até relações violentas no cotidiano onde os homens acabam por relativizar o uso de contraceptivos e não assumem a responsabilidade pelas consequências dos seus atos, também culpabiliza a sexualidade das mulheres e as coloca como únicas responsáveis, quando sabemos bem que ninguém engravida sozinha.

Assim, defender a não criminalização do aborto, ao contrário do que muitos querem fazer crer, não significa, em hipótese alguma, concordar com ou incentivar a prática abortiva, mas apenas e tão-somente apoiar a mudança de uma lei que coloca, todos os dias, as vidas e a dignidade de milhões de mulheres em risco, com um efeito perverso para as mulheres mais pobres e vulneráveis.

Infelizmente, as políticas brasileiras, inclusive as de saúde, vêm insistindo em tratar o aborto sob uma perspectiva religiosa e moral, e responder à questão com a criminalização e a re¬pressão policial, transformando o aborto em tabu.

Porém, os números são claros: a resposta fundamentada na criminalização e repressão se mostra não apenas inefetiva, mas nociva, porque não reduz nem cuida.

De um lado, porque não é capaz de diminuir o número de abortos, e de outro porque impede que mulheres busquem o acompanhamento e a informação de saúde, necessários para que seja realizado de forma segura ou para planejar sua vida reprodutiva a fim de evitar um segundo evento desse tipo.

Por tudo isso, ter posicionamento e se mobilizar por tal debate no atual momento é tão essencial.

E apenas para que não pairem dúvidas, ou coloquem palavras na minha boca: eu nunca fiz um aborto. E não sou a favor da prática do aborto, apenas não sou contra a mulher que decide pelo abortamento.

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