Brasil, Argentina e a crise estrutural da política
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- Maria Orlanda Pinassi
- 06/01/2018
Seja mediante golpe, seja através das urnas, pouco interessa que um seja ilegítimo e outro legítimo, importante é que Temer aqui, Macri acolá, ancorados em congressos imorais e mídias embusteiras, conduzem seus respectivos governos conforme a música que o capital, em crise estrutural vertiginosa, exige da política de Estado.
Sim, Brasil e Argentina consagram-se como exemplos do fundo do poço em que chafurdou a democracia burguesa porque, sem lastro e sem pactos, avançam sobre e destroem cada um dos sofridos direitos laborais, ambientais e humanos conquistados em suas histórias marcadas por instabilidades de toda ordem. Nada do que vem acontecendo nesse cantinho do mundo é fortuito.
Sobre a questão, impossível não lembrar de István Mészáros que nos deixou no último mês de novembro, fechando um ano de perdas irreparáveis. Quando ele publicou Para além do capital – rumo a uma teoria da transição (2002), no Brasil, pouco se compreendia sobre a real dimensão do conceito de crise estrutural do sistema de reprodução do capital, conceito que explicou à exaustão no quinto capítulo, “A ativação dos limites absolutos do capital”, do referido livro.
Lembro-me de que, na ocasião, alguns o definiram como “estruturalista”, desinformados de que o que ele fazia era justamente uma crítica radical do caráter estrutural e sociometabólico do sistema. Outros torciam o nariz e diziam “lá vem mais um que ao menor sinal de crise decreta o fim do capitalismo e anuncia o socialismo”. Ora, Mészáros jamais viu qualquer positividade espontânea na crise estrutural; para ele, no fim do túnel pode não restar absolutamente nada sem a ação rápida e decisiva de um amplo movimento de massas disposto a destruir cada um dos pilares de sustentação do sistema formado por capital, trabalho e Estado. Alguns devem conhecer sua frase: “socialismo ou barbárie, barbárie se tivermos sorte” e isso lhe rendeu a fama de “catastrofista”. Se non è vero, è ben trovato!
A crise estrutural, diferentemente das crises cíclicas (os “limites relativos da lógica de funcionamento do sistema”) não implica uma paralisia momentânea do ciclo de produção e de reprodução do capital. O diferencial da crise estrutural, iniciada nos anos finais de 1960, é que ela aprofunda as consequências e acelera a frequência das crises cíclicas, desde então desprotegidas das soluções keynesianas, definitivamente abandonadas pelos teóricos do capital.
Os limites absolutos do sistema significam, assim, uma aceleração incontrolável do processo do qual se originam e proliferam contradições sociais crescentemente agudas e insolventes por toda a extensão do planeta. Porém, ao contrário do período anterior, exige-se uma absoluta liberação dos dispositivos legais capazes de regular sua expansão e sua gana de acumulação. Pior, impõe-se total descompromisso com as inconvenientes necessidades humanas (os valores de uso) que até bem pouco atrás impulsionaram o imperativo valor de troca. A classe burguesa, enfim, tem a oportunidade inédita de se ver livre dos pesados tributos exigidos pela classe trabalhadora outrora organizada e reivindicativa.
Desde o princípio, financeirização, transnacionalização, reestruturação produtiva, desemprego estrutural, privatizações impõem uma ampliada ruptura com o Estado de direito que representou a longa fase de ascensão histórica do capital. Assim como o capitalismo do período anterior foi a forma mais perfeita de funcionamento do sistema sociometabólico do capital, o neoliberalismo representa, até aqui, a mais perfeita tradução da crise estrutural, momento que se abre para um irremediável descenso histórico marcado pela lógica essencialmente destrutiva da produção material e pela regência de uma política moralmente miserável (1).
O capital, enfim, atinge o seu ideal e funciona como causa sui nas formas mutantes do neoliberalismo que, na América Latina, é introduzido através das ditaduras dos anos 1960-70. Desde então, as várias formas assumidas pelo Estado se metamorfoseiam para atender exclusivamente às necessidades do capital. Mas é somente nestes últimos anos que as coisas ficam claras.
Neste quadro, é óbvio que nem Brasil, nem Argentina comportam-se como bolhas destacadas do mundo, encerradas em suas próprias particularidades. E, apesar dos rumos por vezes diversos que trilharam em sua já longa trajetória de rivalidades, possuem a mesma matriz histórica. Para entendê-la seria preciso ir à raiz ideológica de suas nacionalidades quiméricas, da herança colonial impregnada em seus processos de independência (se bem que distintos), da competitividade militarista, econômica e futebolística embaladas pelas indefectíveis ilusões desenvolvimentistas destas duas nações irremediavelmente periféricas.
Pois bem, após dois séculos de esperança vã de pertencerem ao nirvana capitalista, nutrida principalmente nesta última década e meia de farsa neodesenvolvimentista, caíram das alturas e foram obrigadas a confirmar sua condição colonial, dependente, exportadora de mercadorias brutas produzidas por uma ampliada força de trabalho barata, superexplorada, descartável e sem direitos.
A tragédia social que hoje assola esses dois países quase plutocráticos, produz uma explosiva situação de anomia que só pode ser controlada por pesado efetivo público e privado de repressão. Apesar dos perigos, em massa os argentinos foram às ruas protestar contra as reformas da previdência; exigiram punição para os assassinos de Santiago Maldonado e do jovem mapuche Rafael Nahuel; e as mulheres, principalmente elas, foram às ruas denunciar as reais intenções da OMC na região. Mas, mesmo lá onde a pressão popular é enorme, não se conseguiu abalar o congresso que aprovou a “modernização previdenciária”, assim como o episódio do submarino com 44 oficiais da marinha ganhou destaque e desfocou a atenção dos demais protestos (2).
No Brasil, a violência do Estado nas quebradas urbanas, nas terras indígenas, quilombolas, camponesas, os massacres sociais e as consequências inimagináveis da devastação ambiental provocada pela conjugação de interesses de grupos econômicos dedicados à mineração, ao agro e hidronegócio, à especulação imobiliária, são todos obscurecidos pelos espetáculos oferecidos pelos poderes legislativo, judiciário e executivo.
Juntos, tal como uma bem articulada Ópera Bufa, personificam a miséria da política evangelizada para combater, com o ódio dos abençoados, a corrupção, o aborto, as religiões afrodescendentes, as comunidades LGBTQ, as artes, a educação e a saúde pública. Na calada da noite aprovam as contrarreformas trabalhistas, a lei da terceirização, leis de proteção à mulher e demais direitos humanos. Amaciam osermos de combate ao trabalho escravo, propõem a retirada do termo feminicídio do código penal e isentam de punição os candidatos do ENEM que ferirem t os direitos humanos em suas redações.
As últimas massivas manifestações populares aconteceram em 2015 com os secundaristas e mais recentemente com as lutas dos indígenas em várias regiões do país. As ruas vêm sendo ocupadas por centrais sindicais e movimentos sociais mais preocupados em transformá-las em palanques para fins eleitoreiros do que combater as estocadas do atual Estado brasileiro.
Ora, a gravidade da situação brasileira e argentina impõe a tomada de consciência de que estamos diante de um padrão irreversível de desenvolvimento que se traduz em absoluta negatividade para as classes trabalhadoras, para as populações originárias, para o meio ambiente, para a humanidade inteira. Apostar nele e tomá-lo como referência para a transição significa suicídio histórico para os atingidos pelo capital. Além disso, ir às ruas é sim importante, mas só isso não basta. É preciso mais.
Assim entendemos que, se durante as vacas gordas, nós, brasileiros e argentinos, nos dividimos em contendas inúteis, na barbárie nossas particularidades históricas, na medida em que reproduzem a mesma tendência geral da crise estrutural do capital, podem nos aproximar e afinar.
Que a adversidade nos unifique e fortaleça em 2018!
Notas:
1) Mészáros dedicou os últimos 15 anos de sua vida a uma obra sobre o Estado, intitulada Para além do Leviatã: crítica do Estado. Infelizmente a obra não foi integralmente concluída.
2) Ver a respeito o artigo Ars poética das mídias na conjuntura argentina, de Josefina Mastropaolo e Silvia Beatriz Adoue. https://diplomatique.org.br/midias-na-conjuntura-argentina-repressao-mauricio-macri/
Maria Orlanda Pinassi é socióloga.