Correio da Cidadania

A “regra do jogo” na prisão de Lula

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Lula em ato no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, São Bernardo do Campo, 7/04/2018. Foto: MídiaNINJA.

Durante seus dois mandatos na Presidência, Lula redescreveu os problemas políticos a partir da alegoria do futebol. Como todo jogo, a política e o futebol possuem regras constitutivas e regras regulativas. As regras regulativas permitem alterar a maneira de jogar sem contudo alterar a essência do jogo.

Por exemplo, o futebol pode ser jogado com 11 ou com 5 jogadores, na praia ou na grama, com ou sem uso de câmeras para auxiliar o árbitro. Já as regras constitutivas definem o jogo em si. Sua eventual violação redunda na alteração do nome do jogo que se está a praticar. Por exemplo, um futebol que é jogado com a mão já não pode mais ser considerado futebol, pois a regra de jogar com os pés (com exceção do goleiro e das cobranças de lateral etc.) define constitutivamente o que é o futebol. O novo existe, ele pode ser chamado de “manobol”.

A aplicação das regras regulativas na política brasileira mostrou-se, desde a destituição de Dilma, flagrantemente seletiva. A lei se pronunciou contrária às “pedaladas fiscais” (que Temer cometeu), avessa à nomeação protetiva de ministros (que Temer cometeu) e crítica da presença de pessoas indicativas de atos ostensivos de corrupção (que Temer também cometeu).

Até aqui, o país se polarizou-se em torno do que no futebol se denomina “erro de interpretação”. Faz parte do jogo que um árbitro se equivoque sistematicamente contra seu time. É possível que você escute seu vizinho dizer “roubado é mais gostoso” ou que você deve ir “chorar na cama que é lugar mais quente”.

Quando a chapa Dilma-Temer foi “absolvida” apesar de evidências lógicas e materiais em contrário, supôs-se que um novo estilo de arbitragem tinha começado. Um estilo que devia ter levado à cassação de Temer. Mas quando isso não aconteceu, rompeu-se uma perigosa linha. Um time pode ser campeão por meio de um pênalti incorretamente não marcado, como aconteceu recentemente no Campeonato Paulista.

Nesse caso, o vencedor deve estar disposto a admitir que a contingência lhe favoreceu. Ora, deu-se exatamente o contrário no caso da política: os vencedores passaram a gritar e esbravejar mais agressivamente ainda, como que para se convencer de que sua vitória é, sim, legítima e incontestável em todos os sentidos.

Foi só nesse segundo tempo que algo se tornou indefinido do ponto de vista da violação das regras. Doravante, as regras regulativas incidirão, sancionadas pela lei, seletivamente contra uns e a favor de outros. Ademais, isso seria apenas a generalização da prática jurídica corrente. Quem tem dinheiro tem justiça. Ao perdedor, nem as batatas. É como se a associação de árbitros, por um infeliz acaso, torcesse contra seu time.

Ruim, péssimo: desperta e confirma na realidade o sentimento de injustiça que já é vivido de forma local. Por isso são as minorias as que mais sofrem com a capilarização do golpe. Pois é como se cada chefe de seção, cada pequeno burocrata, cada pai autocrático, cada homofóbico ou preconceituoso tivesse recebido uma mensagem cifrada dizendo: “Agora virou futebol. Torne-se você também um microempreendedor do seu próprio golpe doméstico”.

Ou seja, a violência, o uso da força pela posse dos meios de coerção, de dinheiro, de discurso, de instituições está liberado. Mais uma vez, isso apenas generaliza, oficializa e sanciona a percepção geral de corrupção endêmica. Em situação de desemprego e precariedade social ascendente, essa foi a senha para generalizar a “corrupção dentro da lei”.

O campeonato se duplica. Como se diz no futebol, é preciso “ganhar na bola e no tapetão”. É preciso enfrentar os efeitos de ressentimento social causados pelo retorno piorado daqueles que “não sabem vencer”, aqueles que, além de ganhar, gozam com a humilhação do outro. Está dado o caldo para uma cultura da vingança. Aumenta a sensação de que a lei não é imparcial, de que a lei tem dono.

Chegamos assim ao terceiro tempo deste jogo. Nele, alteraram-se definitivamente as regras constitutivas da política neste país. Para uns, a ideia de suspensão do nosso estado de funcionamento básico expressa pelo mote de que os ricos e poderosos nunca vão para a prisão finalmente foi satisfeita por um caso real de punição exemplar. Para outros, houve uma suspensão das regras constitutivas do jogo, vingança e neutralização instrumental do candidato com maior aprovação popular. Mas notemos que, neste ponto, direita e esquerda unem-se na concordância de que as regras mudaram.

Começamos a jogar “futebol com as mãos”. Os próprios princípios do jogo, não apenas sua aplicação seletiva e parcial, são alterados. Um juiz inquerido por Lula diz “não tenho prova alguma, por isso te pergunto e por isso de condeno”. Uma juíza do Supremo Tribunal Federal diz “voto no caso, ainda que discordo do princípio que ele presume”. Não é só “dois pesos, duas medidas” é também a punição exemplar, o uso da raiva, que aflora no lugar dos argumentos. Assim como durante muitos anos os simpatizantes da esquerda fechavam os olhos para desmandos e desvios do governo Lula-Dilma, agora são os simpatizantes da direita que não querem ver que a justiça certa pode ser feita por linhas tortas.

Aqui o acirramento dos afetos combina-se com o racismo cultural brasileiro e sua teoria de que a purificação nos salvará. Pelas mãos e pelo uso da teologia política do velho testamento, ressurge o Deus da ira. Tal qual nas guerras de religião, não se trata de vencer um campeonato e perder outro, talvez perder muitos para um dia ganhar. A alteração da regra constitutiva pleiteia a inexistência do outro. Um campeonato onde só meu time jogue... E ganhe toda vez!

Aqui termina a analogia com o futebol enquanto luta e conflito simbólico. Surge assim uma sanção regulativa e constitutiva, contrária à ideia de República. Voltamos à política como posse da força e dos meios de coerção. A culpa, quando se sabe dos exageros, das forçagens e das manipulações, é um afeto que facilmente se converte em agressividade. É por isso que tão frequentemente precisamos generalizar, acusar e diminuir o outro para comprar alguns minutos de paz com a nossa própria consciência. Só que uma consciência “comprada” com este tipo de autoengano sempre pede mais. Ela se torna tão mais “gulosa” quanto mais precisa atacar os outros para confirmar a verdade de suas convicções. Formam-se assim blocos cada vez mais genéricos de pessoas-tipo, necessárias para dar corpo ao nosso ódio e a nossa covardia: artistas, professores universitários, “esquerdopatas”, petistas, esquerdistas, gays, são todos espantalhos criados para tentar afastar os corvos que explicam por que a nossa plantação não vai pra frente.

Uma vereadora negra, periférica, bissexual e militante de esquerda é executada e políticos e judiciários de alta patente respondem, em uma variante nacional de Trump, dizendo que afinal “os dois lados tem alguma razão”, ou que “ela teve o que mereceu”, ou ainda “ela estava procurando encrenca”. Justiça verdadeira feita por linhas tortas, não é mesmo?

É esta a mudança fundamental sobre a percepção social da injustiça que nosso direito e nossas mais elevadas formas jurídicas renunciaram a pensar. Lula foi julgado com gosto e com raiva, cuja legenda é mesmo “manda esse lixo janela abaixo” (dita ao piloto do avião que o transportava para a prisão), pois qualquer um tornou-se juiz (não apenas técnico de futebol), qualquer um se autoriza como carrasco e executor, criando um depositário para que uma vez imolado em sacrifício “tudo volte a ser como dantes no quartel de Abrantes”.

O pior aspecto da prisão de Lula é que ela simboliza a derrota de um projeto e a extinção de uma perspectiva de Brasil. Abole-se também a ideia de que é possível partilhar modos de exercer o poder e de o alternar. Sai vitoriosa uma concepção arcaica de poder, baseada na força da pessoa, na posse dos meios e na instrumentalização do Estado. A prisão punitiva de Lula, independente das razões e evidências jurídicas vacilantes, acentua e generaliza a descrença no processo e nas instituições. O espetáculo dantesco de voltas e contravoltas, de casuísmos e de contradições que vem se desenrolando impede que o senso comum forme uma impressão minimamente informada sobre as razões do processo.

O problema aqui é que quando o poder torna-se opaco e demasiadamente complexo para as pessoas comuns a tendência é que cada qual interprete essa opacidade conforme sua própria fantasia. Ou seja, o grande pai salvador, a teoria das maçãs podres, o ideal de purificação, a concepção da família e do sagrado como determinantes políticos fundamentais, a paranoia sobre o estrangeiro, a invisibilidade de certas formas de violência e a hipervisibilidade de outras formas de violência. Essa retomada de nossos piores preconceitos acabou sendo sancionada pela forma como o processo se deu.

Para o bem e para o mal é preciso procurar entender por que Lula era o candidato virtualmente mais apoiado para as próximas eleições. Curiosamente, ele representa apesar de tudo certo consenso, a razão conciliatória, que de fato ele colocou em prática, e que para muitos teria sido a razão última da degradação de seu projeto. Ora, essa conciliação desapareceu. Junto com ela foi-se embora esse valor muito importante que se traduz, em termos republicanos, pelo sentimento comum diante da coisa comum, pelo reconhecimento do conflito como razão produtiva da política.

Ora, negociar, argumentar, convencer e justificar dá trabalho e envolve dedicação, informação, certa formação política, algum domínio da história e da cultura. Ter uma opinião abrangente é muito mais fácil. O mesmo sujeito que radicaliza agora se desinteressará pela política quando ela deixar de ser a expressão e o suporte para seu próprio ressentimento social.

Diante de todas as incertezas que aparecem no horizonte é certo que a maneira como as coisas se deram, a retórica do ódio e a imposição da humilhação aos derrotados só pode redundar em aumento do ressentimento social. Foi assim com a ascensão de Temer e depois com a emergência de problemas ligados à violência de todo tipo, das rebeliões prisionais às chacinas na periferia, da homofobia ao massacre de jovens negros.

Não é um acaso. Quando interpretamos que a “autoridade” não se justifica senão pela raiva e pela seletividade, tomamos isso como uma mensagem que autoriza as nossas pequenas opressões e os nossos conflitos cotidianos a deixarem de ser elaborados e tratados “institucionalmente”, por meio do trabalho da palavra, e passamos a nos autorizar a fazer o mesmo com nossos assim entendidos “subordinados”. Se a regra é que “quem pode mais, leva”, ao final quem paga a conta são os menos favorecidos.


Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista e professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP); autor de Mal-estar, sofrimento e sintoma: a psicopatologia do Brasil entre muros (Boitempo, 2015).

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