Correio da Cidadania

As ruas, as eleições e o sequestro do PSOL pelo lulismo

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“Não tem a mínima importância o que tal ou qual membro do PT acha. Interessa o que o Lula decida.”

O mais novo capítulo da agonia intelectual lulista

As singelas e grotescas palavras que constituem a epígrafe deste artigo, proferidas por Emir Sader no Twitter em 30 de julho último, resumem com perfeição a “democracia” que PT e PC do B praticam, bem como revelam quão ilusórios são o “golpe” e a “onda conservadora” inventados pela intelectualidade que defende o retorno da hegemonia política burguesa exercida entre 2002 e 2016 pela ex-querda neodesenvolvimentista (1).

Mas a formulação boçal de Emir Sader expressa também a catatonia intelectual dos lulistas no Brasil, que se mostram não só incapazes de criticar esse obscurantismo de veio “progressista”, mas seguem firmes no propósito de pregar um autoritarismo messiânico e demagógico sobre as classes populares (minando sua autonomia e iniciativa política). O lulismo intelectual é professado tanto por ex-governistas do PT como por pessolistas recém-convertidos ao lulismo por meio da candidatura presidencial de Boulos. Este repete, via Lula, o culto à personalidade tradicional da esquerda stalinista e do populismo varguista – contra a qual o PT nasceu, é bom lembrar.

Fica nítido, na conjuntura atual, que o salvacionismo em torno de Lula é expressão cultural e política da crise econômico-social brasileira tanto quanto o messianismo demagógico de direita em torno de Bolsonaro e o conservadorismo pentecostal-evangélico que tão bem conviveu com Lula e Dilma (2). É admirável que certos intelectuais que se querem de esquerda não percebam tal similaridade. Mais desafiador ainda seria exigir da intelectualidade lulista a compreensão dos obstáculos e dos retrocessos que a política unidimensional em torno de Lula impõe aos trabalhadores brasileiros e suas lutas concretas.

Por isso nossa classe trabalhadora continua ignorando a narrativa em torno de uma “onda conservadora”, pois intui que a reação do conservadorismo grassou junto com os governos do PT, não contra ele.

Por isso o “povo” não engole o discurso do “golpe” como momento inaugural dos ataques aos trabalhadores: estes sentem na pele tais ataques desde a reforma da previdência de Lula em 2003 e, mais claramente, desde o governo Dilma, quando a crise mundial e a explosão do desemprego já chegavam a nós.

Por isso o lulismo e seus representantes políticos e intelectuais persistem alienados da realidade das classes populares, que estão preocupadas com a crise, não com a prisão de Lula – visto como mais um político “rouba mas faz” tanto quanto alguns outros.

O engodo não sai da bolha

E por tudo isso, apenas a intelectualidade progressista, ao contrário dos políticos profissionais obedientes a Lula, engole a pantomima lulista em Curitiba. Afinal de contas, como levar a sério uma greve de fome pela libertação de alguém que agora prefere ficar preso por conta de cálculos eleitorais em torno da viabilidade da candidatura petista? Decerto, não são os trabalhadores que botam fé em tão ridícula encenação.

Tudo isso configura a inaptidão de tais intelectuais em compreender o que tem ocorrido no Brasil desde a derrocada do lulismo como expressão da hegemonia burguesa no país. Eles são, portanto, parte do problema, não de possíveis soluções da crise brasileira.

Ao contrário dos setores descompromissados com as narrativas lulistas, muitos intelectuais e militantes não conseguem admitir que a luta contra o “golpe” e o conservadorismo foi formulada instrumentalmente para arrefecer a derrocada lulista durante a crise do governo Dilma, como prova a inviabilização da “frente antifascista”, fantasmagoria desmoralizada pelo cerco oligárquico à candidatura Ciro Gomes pelo PT (como já ocorrido antes com Marina, assim como com Itamar no governo FHC etc.).

Obviamente, como venho insistindo, não se trata de luta pela “democracia”, como a indústria cultural lulista propaga na internet e redes sociais, mas a velha e feroz competição eleitoreira por espaços dentro da institucionalidade de nossa democracia representativa.

Daí também a formação de uma “frente antifascista” composta por setores neoliberais, centristas e mesmo de esquerda, mas sem hegemonia do lulismo (3), não ter sido saudada: pelo contrário, foi repudiada, como se verifica em artigo de intelectual tão exemplarmente fiel à discursividade lulista como Luís Felipe Miguel, um dos importantes cientistas políticos brasileiros da atualidade (4).
 
Como não sabem apenas os que creem, por medo irracional, na narrativa do lulismo, uma frente de tal tipo, se necessária (o que não é o caso), deveria reunir todos os inimigos eleitorais não-fascistas, o que inclui Lula, FHC, Alckmin, Meirelles, Marina etc. Como não se trata disso, os políticos profissionais lulistas de fato dão as costas para tal frente, imprestável para os interesses eleitoreiros do PT, deixando no palco os que acreditam em suas próprias teorias: intelectuais lulistas, tanto os petistas como os recém-convertidos no PSOL.

Para onde vai o PSOL?

No caso destes últimos, a responsabilidade é maior, por terem colocado o PSOL – um partido classista que nasceu contra a hegemonia burguesa lulista, e qualquer outra, em nosso país – a reboque do PT, por meio da candidatura Boulos, que crítica nenhuma faz ao lulismo, pelo contrário, apenas reforça a falsa imagem oposicionista que os lulistas tentam assumir. O que não cola, é patente, face às alianças preferenciais petistas com os “golpistas” do MDB e do Centrão fisiológico.

Desta forma, o lulismo não apenas terceirizou ao PSOL (US e as correntes que abandonaram o Bloco de Esquerda no interior do partido: Insurgência e Resistência) a defesa de versões marxistas dos discursos do “golpe” e da “onda conservadora” (fenômenos tão simplificadamente concebidos (5)), como deixou a esses neolulistas pessolistas o papel de bobos da corte, a defenderem ideias que ficaram “fora do lugar” diante do pragmatismo e eleitoralismo lulistas, os verdadeiros sujeitos de tais teses. De fato, Lula e o PT não lutam nem contra um nem contra outro, ao contrário, tentam reagrupar “golpistas”, fisiológicos e conservadores sob seu arco de alianças de sempre.

Não por acaso, ao tempo em que o PT distribui cotoveladas nos seus aliados contra o “fascismo” e fala apenas aos seus convertidos, ignorando o desemprego e o desalento sofridos pelos trabalhadores, tantos intelectuais – acadêmicos ou burocratas/ongueiros operadores de políticas públicas – afundam-se no conservadorismo que dizem combater. Exemplo deste fato é um tipo de discurso maniqueísta, ainda que apresentado como iluminista, comum a artistas como o dramaturgo Amir Haddad: “temos de exorcizar o Rio, que está sob o domínio do Cão.” [referindo-se ao ex-ministro lulista Crivella, atual prefeito carioca]; “...depois do Golpe piorou muito, a vida cultural foi para um buraco sem fim” [antes com Dilma em crise, também não?]; a solução que este importante ativista cultural aponta parece ser a seguinte: “no Rio de Janeiro, o Eduardo Paes sempre dedicou dinheiro para a arte”. (6)

O que dizer de alguém que, saudoso de tempos que não voltam mais (quando as commodities do agronegócio e do neoextrativismo minerador sustentavam financeiramente políticas sociais e culturais petistas), clama pela volta do prefeito – ao mesmo tempo lulista e “golpista” – que mais removeu moradores pobres na história carioca e ajudou a destruir o Rio de Janeiro junto com a quadrilha privatista e corrupta de Cabral e cia?

Contra argumentos, não há fatos: o simplismo do imaginário lulista

A surpresa com o fato de lulistas e “golpistas” estarem juntos tão rapidamente após o impeachment não se justifica, a não ser para quem entende o Brasil à maneira dualista, dividido entre progressistas e conservadores, o avanço e o retrocesso. Como é inevitável na periferia do capitalismo, nosso desenvolvimento é desigual e combinado, segundo a fórmula original trotskista atualizada por Chico de Oliveira e outros intérpretes antidualistas do Brasil.

Sendo assim, populistas sempre se aliam a fisiológicos reacionários para frear os ímpetos dos “de baixo”, reorientando as forças sociais em prol do desenvolvimento capitalista em detrimento da emancipação dos trabalhadores. O lulismo, pois, não é novidade.

Portanto, uma análise que dê conta de conjuntura brasileira neste milênio deve conseguir entrelaçar, e não opor, fenômenos que o senso comum estabelece como da ordem do moderno ou do atraso. Daí a interpretação lulista do Brasil de hoje forçar simplificações que não cabem na realidade.

O judiciário volta-se apenas contra o PT? A prisão do ex-governador mineiro Eduardo Azeredo por conta do mensalão tucano (e do serrista Paulo Preto em São Paulo, bem como antes de Eduardo Cunha, além de Aécio Neves ter se tornado réu etc.) nega tal diagnóstico.

Os caminhoneiros “reacionários” fizeram paralisações contra Dilma à época do impeachment? Fizeram o mesmo contra Temer neste ano...

Dois exemplos, dentre tantos outros, que jogam por terra o conspiracionismo inerente ao discurso do “golpe”.

Enquanto isso, no Ceará, o candidato a governador do PSDB, bancado por Tasso Jereissati, é um militar saudoso da ditadura militar. Evidência da “onda conservadora” em nosso país? De jeito nenhum: os partidos do reacionário Centrão compõem a aliança de apoio à reeleição do governador petista Camilo Santana. Que “onda” é essa que não resiste a um acordo fisiológico com o lulismo, de maneira a se afirmar que “a oposição [PSDB] nunca esteve tão só na história do Ceará”? (7) Situações parecidas não são difíceis de encontrar em outros estados nestas eleições.

Se o conservadorismo fosse tão forte entre nós, a jogadora de vôlei trans, Tifanny, não seria candidata a deputada federal em São Paulo pelo MDB do “golpista” Temer e do reacionário Cunha...

Se o retrocesso que vivemos é avassalador, como entender a recente adoção de cotas raciais nas Forças Armadas? (8)

De um modo geral, os propagadores dessas teses, lulistas do PT ou neolulistas do PSOL pintam o fim do mundo, a ascensão fascista e inexoráveis derrotas para os trabalhadores. Contraditório é que os mesmos divulgadores de tão reducionistas leituras pontuem cenário desolador com uma força colossal de Lula entre os pobres. Como é possível um “povo” tão progressista e um Bolsonaro tão assustador e, também, popular?

Algo não fecha nessa interpretação derrotista da esquerda brasileira. Inadvertidamente, o que tal ambiguidade sublinha não é o quadro de uma “onda conservadora”, mas um cenário de radicalização político-ideológica e de desgaste da política tradicional e da democracia burguesa, como tenho ressaltado em artigos anteriores.

Tal cenário de radicalização se comprova, por exemplo, ao lermos os comentários à notícia acima, sobre cotas raciais em instituições militares, no portal de internet UOL. Os haters coxinhas, que ali deixam suas idiotices registradas, desenham catastroficamente um país em decadência (racialista, “coitadista”, antimeritocrático, que “destrói suas FAs” etc.), tal qual na escatologia lulista pós-“golpe” (9), apenas com sinais político-ideológicos invertidos. O que, por sua vez, reforça a caracterização de uma reação conservadora (não uma onda (10)) contra conquistas de negros, mulheres, LGBTs, trabalhadores etc.

Igualmente poderia ser registrado por ocasião do recente fechamento de páginas do MBL pelo próprio Facebook em sua rede social: em resposta, os neoconservadores bradam contra a supressão da liberdade de expressão pelo fascismo da “esquerda globalista” etc. – copiando, como fazem há tempos, palavras de ordens e trejeitos oriundos da esquerda (11).

Ao mesmo tempo, recorrendo ao Estado e aos políticos tradicionais contra uma empresa privada multinacional, o MBL, inadvertidamente, ilumina os limites, a falsidade e “as ideias fora do lugar” de nossos ultraliberais do século 21...

Pode-se concluir, portanto, que os trabalhadores brasileiros estão hoje decepcionados com o neoliberalismo tardio de Temer, assim como antes estiveram com o neodesenvolvimentismo de Dilma (que é também o de Lula).

Greve dos caminhoneiros e um efeito paradoxal da narrativa lulista

Por ocasião da greve dos caminhoneiros de maio deste ano, pôde-se observar uma estranha consequência da indústria do medo imposto pelo lulismo em sua área de influência na internet e redes sociais.

A greve, com todos os seus problemas e conflitos internos, recebeu o apoio oficial de entidades lulistas, como PT, CUT e MST, bem como da esquerda – MTST, PSOL e CSP-Conlutas. Apesar disso, muitos simpatizantes e militantes progressistas, por vezes presentes antes no mundo virtual que no real, facilmente aderiram a teorias conspiratórias: a greve (contra Temer!) seria na verdade um locaute, estaríamos na enésima fase do “golpe”, os militares iriam intervir etc.

Tal fenômeno ilustra o “irracionalismo” de lulistas e progressistas – algo que nos parecia ser exclusivo de coxinhas, reacionários e outros facilmente ridicularizados (como Cabo Daciolo), nunca de nós mesmos. Quem esqueceu do vaticínio de que não haveria eleições este ano, após o “golpe”? (os mesmos que afirmavam tal sandice e, ainda mais, que não viveríamos mais numa democracia, agora se dedicam ardorosamente à campanha eleitoral...)

Mais importante: as bolhas lulistas e neolulistas na internet e redes sociais estão deixando seu público de tal maneira à mercê de fake news que por vezes os viciados virtuais seguem a lógica das notícias falsas alarmistas para além do próprio interesse de quem produz as mesmas fake news.

Discurso do medo

A cultura política virtual do medo, disseminada pelo lulismo privilegiadamente em camadas médias intelectualizadas, talvez esteja criando uma ojeriza a qualquer movimentação ou agitação social, que pretensamente possa colocar em risco a Nova República. De resto, efeito inevitável da política lulista de estigmatização de certos setores da classe trabalhadora ou da burocracia estatal que fujam ao alcance de sua hegemonia: primeiramente foram os médicos, depois os juízes, agora os caminhoneiros.

Felizmente, o mundo real das estradas paradas rompeu a já bem gasta narrativa virtual lulista em prol de uma frente ampla do “povo” contra o avanço “fascista” e pela “democracia”. A luta de classes falou mais alto. Mais uma vez ficou evidente que uma pauta socioeconômica classista, em torno dos direitos dos trabalhadores, diz algo de concreto para a maioria da sociedade brasileira.

Infelizmente, a parcela do PSOL que está a se tornar neolulista teve dificuldade de se posicionar nesta greve que tanto enfraqueceu Temer. Já mais afeitos ao mundo parlamentar e das políticas públicas que ao do trabalho e das lutas sindicais, muitos pessolistas não sabiam como dialogar com os caminhoneiros.

Por sua vez, Boulos resumia-se a emular o ataque lulista a Pedro Parente (podendo avançar para a defesa de uma Petrobrás 100% estatal, criticar o rodoviarismo e a dependência de combustíveis fósseis), ao tempo que o PCB conformava-se a reeditar o discurso nacionalista da soberania nacional sobre o petróleo.

Interessante notar que não foi apenas o lulismo a ficar desorientado com a mobilização dos caminhoneiros. Fenômeno afim acometeu neoconservadores asquerosos como Reinaldo Azevedo, Kim Kataguiri, Rodrigo Constantino e Raquel Sherazade, os quais, críticos da greve, foram acusados de esquerdismo por gente ainda mais reacionária que apoiava os caminhoneiros (12).

Sem dúvida, as disputas políticas atuais da sociedade brasileira não envolvem apenas oposições ideológicas, reais ou imaginárias, mas também litígios entre estratos sociais de maior ou menor capital cultural (13). A discrepância entre a realidade de um motorista parado na estrada e a utopia ultraliberal de um direitista de classe média é muito significativa (14).

Após junho de 2013, o gradativo retrocesso da esquerda ao nacionalismo

Após as jornadas de junho de 2013, o lulismo desatinou e a direita tradicional se fortaleceu. Quem tinha mais condições de avançar na conjuntura, justamente a esquerda, após uma rica interação com as massas populares em revolta nas ruas, viu uma parcela significativa sua retroceder política e ideologicamente à condição de linha auxiliar lulista.

Por mais que fatos diretamente vinculados a junho de 2013 continuem recolocando o cenário no seu devido eixo, reagrupando conservadores e lulistas em seu viés repressivo, como no caso do recente e absurdo julgamento em primeira instância dos 23 militantes no Rio de Janeiro, certas vanguardas burocráticas da esquerda classista não hesitam em alinhar-se ao PT, contra quem o PSOL foi criado.

Tal desorientação, alimentada pela discursividade lulista, produz posicionamentos inusitados, como o de alguns militantes pessolistas que se posicionaram contra o pedido de impeachment de Crivella no Rio de Janeiro por conta do... “golpe” contra Dilma.

O pior nos é apresentado pelo candidato presidencial do PSOL: irrestrita e pessoal solidariedade a quem liderou a gestão burguesa do país entre 2003 e 2015, Lula, contrastando com o tímido e distante apoio prestado por Boulos àqueles 23 lutadores populares injustamente condenados. A razão populista sempre privilegia os já incluídos na casta política produzida pelas alianças de classe, em detrimento dos “de baixo” que buscam a emancipação dos trabalhadores.

A inflexão lulista – aparentemente pragmática, mas na verdade conservadora – de partes do PSOL, notadamente suas correntes direitistas (US) e centristas (Insurgência, Resistência), e do PCB, possui nítido viés nacionalista, como é tão comum na história brasileira – vide os casos do PCB pré-64 e do PT dos anos 2000. A esquerda brasileira costuma perder seus horizontes anticapitalistas aderindo ao nacionalismo populista ocupante do poder de Estado, a principal expressão ideológica da dominação burguesa no Brasil, ainda que o liberalismo sempre pareça mais ameaçador e seja efetivamente mais reacionário entre nós (15).

Evidências nesta direção são o keynesianismo e o neodesenvolvimentismo revisitado do programa pessolista em sua atual fase Vamos, bem como o nacionalismo ultrapassado do discurso boulista e pecebista em torno do pré-sal (que ignora a necessidade de controle da Petrobrás pelos trabalhadores).

Mas neste caso observar o anedótico talvez seja ainda mais promissor. Tal nacionalismo que assombra a esquerda reveste-se do pior chauvinismo em assunto erroneamente considerado menor: o futebol brasileiro. A esquisita defesa de Neymar e da seleção brasileira por ocasião do fiasco da Copa do Mundo deste ano talvez seja um ponto alto da trajetória de recuos ideológicos de certa esquerda, que antes seguia corretamente o coro das massas populares em 2014 (“Não vai ter Copa!”). O que seria simplesmente patético nos hilários textos da Causa Operária mostra-se sério e grave em manifestações públicas de Valério Arcary, ex-militante do PSTU em acelerada conversão ao lulismo (16). Não por acaso, a mitologia populista do “povo brasileiro” é acionada neste tipo de discurso, em substituição à referência classista nos trabalhadores.

De resto, estamos diante de algo inevitável em setores, dentro e fora do PSOL, que já tinham aderido ao discurso lulista pró-corrupção, que taxa toda esquerda crítica do reformismo como “udenista”. Aliás, uma boa medida para verificar o abandono do classismo por certa esquerda é o uso crescente do termo “udenismo”, categoria acusatória mobilizada pelos populistas também contra os socialistas que denunciam a corrupção do poder burguês (como fazia Brizola contra o então combativo PT dos anos 80).

A respeito, já afirmava Roberto Schwarz: “o nacionalismo é a ponte que permite a pessoas com categorias e tradições de esquerda passarem para posições que se poderiam chamar de direita (...), que sobrepõem enfaticamente a questão da grandeza nacional à questão dos interesses dos oprimidos” (17).

A situação de desencanto com a política institucional burguesa leva-nos a uma grande dissonância entre as massas populares e certas vanguardas políticas e intelectuais no Brasil (para não dizer no mundo). Enquanto os “de baixo” e excluídos em geral do sistema burguês buscam alternativas nas ruas, no voto nulo ou no abandono do cotidiano (18), as elites e os incluídos nos aparatos da democracia representativa se entrincheiram na defesa do status quo e da mesmice.

Tal situação se desdobra, no caso da esquerda, em falta de alternativas municiadas por um horizonte socialista/revolucionário, daí ela recair na defesa genérica da “política” – como insistem PSDB, PT e o PSOL boulista ao defender a Nova República. No caso das direitas antigas ou recentes, persiste-se no neoliberalismo ou no neodesenvolvimentismo. A miopia do continuísmo, em meio à tão grande crise brasileira, é tal que até a CBF, sempre pronta a trocar tudo após mais uma Copa perdida manteve Tite no comando da seleção...

Conclusões

Enquanto não houver compreensão da crise de motivação cidadã por que passa a sociedade brasileira, a qual não se resolve com “mais educação” ou outra solução mágica (conjecturada por liberais ou populistas), mas com rearticulação de movimentos sociais de base, demagogos como Bolsonaro serão gerados e falsamente apresentados como outsiders – não nós da esquerda anticapitalista.

Felizmente, a sociedade brasileira continua se movimentando desde baixo. Mobilizações das mulheres em defesa do aborto, pela apuração do assassinato de Marielle Franco (19), greves de trabalhadores da educação em Minas e de municipários porto-alegrenses disputam atenção com as eleições. Cabe à esquerda politizar a campanha vinculando-a a essas e outras lutas.

E desafio maior se coloca a ela e aos movimentos populares combativos: reanimar os explorados e oprimidos na perspectiva da resistência a todo tipo de dominação burguesa no país. Para tanto, é essencial construir uma leitura da realidade que seja diversa da promovida pelo lulismo. Neste sentido, um bom augúrio é trazido pelo ANDES-SN, importante sindicato docente vinculado à CSP-Conlutas, cujas bases militantes, em junho último, recusaram mais uma vez incorporar o diagnóstico do “golpe”, estratégico para lulistas e neolulistas descaracterizarem a autonomia sindical diante de governos e patrões.

ANDES, CSP-Conlutas, MPL, MTST, PSOL e outros movimentos e organizações mostraram nos anos sob o lulismo que é possível combater a gestão neodesenvolvimentista do Capital sem esquecer a anterior hegemonia neoliberal/tucana. É possível fazer o mesmo com a conjuntura alterada: combater o neoliberalismo pós-PT mantendo-se ciente do caráter de classe burguês de todo populismo e nacionalismo brasileiros, hoje monopolizados pelos lulistas.

Notas:


1) A respeito, veja-se o artigo meu e de Viviane Narvaes “Depois da farsa do golpe: perspectivas da esquerda classista na crise brasileira em 2016”, publicado no Correio da Cidadania em 16/05/2016: http://www.correiocidadania.com.br/72-artigos/imagens-rolantes/11673-depois-da-farsa-do-golpe-perspectivas-da-esquerda-classista-na-crise-brasileira-em-2016.

2) Conforme já sugeri em “Lulismo e neoconservadorismo: expressões do mesmo fenômeno”, publicado no Correio da Cidadania em 15/09/2017: http://www.correiocidadania.com.br/politica/12831-lulismo-e-neoconservadorismo-expressoes-do-mesmo-fenomeno.

3) Veja-se: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/06/de-psol-a-novo-partidos-se-unem-em-lancamento-de-pacto-pela-democracia.shtml 

4) https://jornalggn.com.br/noticia/pacto-qual-pacto-por-luis-felipe-miguel.

5) A simplificação da tese sempre esbarra na realidade, inclusive no plano internacional: se populistas/fascistas de direita se fortalecem na Europa, nas Américas o autoritário Trump agora está cercado por governos progressistas no Canadá e no México.

6) Jornal do Brasil de 04/06/2018, pg. 3.

7) https://www.opovo.com.br/jornal/reportagem/2018/05/camilo-ja-tem-a-maior-alianca-da-historia-do-ceara.html 

8) https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2018/07/25/forcas-armadas-terao-cota-racial-em-concurso-a-comecar-pelo-ita.htm

9) Ver artigo meu e de Viviane Narvaes, “As resistências dos movimentos classistas na derrocada do lulismo”, publicado no Correio da Cidadania em 06/02/2017: http://www.correiocidadania.com.br/politica/12323-as-resistencias-dos-movimentos-classistas-na-derrocada-do-lulismo.

10) Veja-se meu artigo “Coxinhas e governistas: dupla face da intolerância da classe média?”, publicado no Correio da Cidadania em 27/10/2015: http://www.correiocidadania.com.br/politica/11186-27-10-2015-coxinhas-e-governistas-dupla-face-da-intolerancia-da-classe-media.

11) Conforme apontei em “A crise intelectual do lulismo (e da esquerda a seu reboque)”, publicado no Correio da Cidadania em 09/03/2018: http://www.correiocidadania.com.br/politica/13148-a-crise-intelectual-do-lulismo-e-da-esquerda-a-seu-reboque.

12) https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/05/mbl-princesa-do-conservadorismo-e-comandante-viram-alvo-da-direita.shtml 

13) O já citado “Coxinhas e governistas: dupla face da intolerância da classe média?”.

14) https://www1.folha.uol.com.br/colunas/joel-pinheiro-da-fonseca/2018/05/obrigado-caminhoneiros.shtml

15) A América Latina não parece ser muito diferente: a transmutação de Daniel Ortega de revolucionário socialista em caudilho nacionalista – e agora anti-popular – aponta na mesma direção.

16) Respectivamente: https://www.causaoperaria.org.br/o-futebol-brasileiro-esta-se-tornando-resistente-ao-choque/#.W0D-QYByPH0.facebook e o post de Valério Arcary no Facebook: https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=1342165689250245&id=100003704810388.

17) Entrevista publicada originalmente em Encontros com a Civilização Brasileira, n. 15, setembro/1979.

18) https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/07/brasileiros-em-guerra-contra-a-ucrania-nem-pensam-em-retornar-ao-pais.shtml

19) O assassinato de uma parlamentar de esquerda mulher, negra, periférica e LGBT inscreve-se no quadro de encarceramento em massa, de guerra contra os pobres e de feminicídio no Brasil, acentuado desde a década passada.

Marco Antonio Perrusso é professor de Sociologia da UFRuralRJ e militante do PSOL. Este artigo de análise de conjuntura dá sequência a outros, escritos por vezes em parceria com Viviane Narvaes.

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