Correio da Cidadania

O ataque contra a liberdade de pensar

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Manifestações contra a PEC 37 aconteceram por todo o país

Quando em 2013 o Brasil se levantou em grandes manifestações contra a PEC 37, as forças de esquerda também se posicionaram contra a emenda. A proposta da PEC era tirar do Ministério Público o poder de realizar investigações criminais. E por que os movimentos sociais e partidos de esquerda eram contra? Porque ao longo da história do Brasil, “los de abajo”, os trabalhadores, os movimentos sociais, sempre tiveram no Ministério Público um espaço para denúncias, quando o judiciário ou a polícia não tomavam conhecimento. Crimes ambientais e crimes contra a coletividade sempre encontraram acolhida no MP.

Mas, naqueles dias, surpreendentemente, a direita brasileira começou a ocupar as ruas com essa mesma bandeira: contra a PEC 37. E as manifestações de junho, que começaram pela diminuição da tarifa do transporte público, passaram a se fazer também contra a PEC 37 e de tal maneira que a coisa viralizou. Nas marchas, as pessoas apareciam com camisetas, fabricadas aos milhares, com a frase: contra a PEC 37. Aquilo era estranho, até porque a maioria das pessoas com as camisetas não sabia explicar o que era a PEC. Ficava claro que havia uma força ali, atuando e mobilizando.

O fato é que as mobilizações gigantescas, que iniciaram uma era nova no Brasil, na qual a direita começou a também ocupar as ruas, garantiram que a proposta da PEC fosse derrotada. Com isso o Ministério Público seguiu seu caminho e pode continuar com suas investigações criminais. Poucos anos depois era a partir do Ministério Público que iria começar a investigação que acabou trazendo o Brasil para o golpe e para a ameaça fascista. Uma tragédia, ancorada em delações e arbitrariedades, que ainda não acabou. Com o golpe vieram grandes derrotas para o povo brasileiro como a reforma trabalhista, que tirou direitos, a entrega das riquezas nacionais e a preparação do terreno para mais uma era de conservadorismo, autoritarismo e violência.

O professor de Direito na PUC, Pedro Serrano, fala de um novo ciclo de golpes na América Latina, que não se fazem mais com tanques ou fuzis. Ele vem sendo desenhado a partir de dentro das instituições mesmas, com a formação de uma geração de profissionais do Direito, totalmente vinculada aos interesses do imperialismo estadunidense. Os golpes, desde Honduras em 2009, passando pelo Paraguai em 2012 e Brasil em 2016, acontecem com a participação ativa de operadores da justiça como procuradores, promotores, juízes.

Sobre o Ministério Público ele diz, em entrevista na revista Fórum: “Hoje ele faz parte dessa máquina jurisdicional de exceção. Ele é essencial para produzir a decisão judicial de exceção que suspende o ciclo democrático. Você tem um Judiciário errático. Em certas situações, ele protege direito, veja o caso do casamento homoafetivo, da maconha, que deve sair uma decisão em favor da liberdade; mas, por outro lado, no Paraguai e em Honduras ele interrompeu o ciclo democrático. Aqueles avanços sociais aceitos pela elite são realizados, os que não o são, o Judiciário atua como força de vigilância. Não é efetivamente um Judiciário democrático como existe no Primeiro Mundo”.

O caso do ex-presidente Lula é paradigmático. Acusado de ser o dono de um tríplex, ele tem sido obrigado a provar que o apartamento não é dele, enquanto que o certo é quem acusa provar o delito. E, mesmo com todas as provas apresentadas pelo ex-presidente de que o apartamento não é seu, ele está preso e ainda obrigado a pagar multas que chegam a mais de 60 milhões de reais. Tudo baseado em convicções de procuradores do MP, juízes e desembargadores.

Não bastasse todo o processo desencadeado que levou ao golpe e a uma escala conservadora bastante profunda, o Ministério Público também tem estendido suas investigações para as Universidades Públicas, espaço que sempre esteve na mira da iniciativa privada. Acabar com as federais é um sonho antigo dos mercadores da educação e agora, nesse caldo de perseguição e arbítrio, é no campo do direito que os ataques são feitos.

Na cidade de Ouro Preto, Minas Gerais, um magistrado do Ministério Público deu início a uma investigação criminal contra a Universidade Federal de Ouro Preto, alegando que um projeto financiado pelo Conselho Nacional para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico está baseado em “ideologia”. Por conta disso, exige a suspensão do projeto que viabiliza um centro de estudos sobre o a ordem contemporânea do capital e sobre o modo de produção comunista, referenciado à teoria social de Marx e à tradição marxista. Interessante perceber que não se abrem ações nem investigações criminais para centros de estudos que pesquisam o liberalismo, o neoliberalismo ou o capitalismo.

Em Florianópolis, no dia 14 de setembro, a Universidade Federal de Santa Catarina foi invadida pela Polícia Federal, vários professores e até mesmo o reitor da UFSC são presos sob acusação de corrupção, com investigação também iniciada pelo MP.

A ação espetacular, que conta com humilhações e arbitrariedades, coloca os professores no presídio, em ala de segurança máxima. Dias depois, mesmo fora da prisão, o reitor e os professores são impedidos de entrar na universidade e de falar com seus colegas. Amargurado e com sua honra vilipendiada, o reitor da UFSC atirou-se do sexto andar de um centro comercial e morreu, levando a UFSC a um longo processo de estupor e comoção.

Não bastasse isso, um ano depois, um procurador do MP tenta indiciar o novo reitor e seu chefe de gabinete por terem permitido que houvesse uma manifestação dentro da UFSC contra as ações dos policiais, procuradores e juízes que, segundo os manifestantes, levaram ao suicídio do reitor Luiz Carlos Cancellier. Uma tentativa explícita de censura à livre manifestação da comunidade.

No campo do legislativo também se multiplicam os ataques a professores e projetos que trabalhem com o pensamento crítico, todos acusados de “ideologia”. A proposta de uma escola sem partido, apresentada por vários parlamentares conservadores, tem sido a porta de entrada de todas essas tentativas de barrar a pluralidade de pensamento. Os ativistas de direita consideram “ideologia” tudo aquilo que vai contra seus interesses e chamam de escola sem partido uma escola que eles pretendem tenha apenas um pensamento único.

Assim, que não será surpresa se, dentro em breve, núcleos de pesquisa de universidades ou projetos de professores que atuem com outros paradigmas teóricos que não os do neoliberalismo passem a sofrer ataques e denúncias. É de se perguntar por que só acontecem ataques contra aqueles que se utilizam de teóricos como Marx, Paulo Freire ou Lukács, e nenhum contra os que se filiam ao pensamento de teóricos como Weber, Keynes ou Hayek.

O fato é que é por essa porta, do cerceamento da liberdade de pensamento, que seguem os ataques que encontram guarida no Ministério Público, hoje bastante afeito a esse tipo de investigação, baseado em denúncias carregadas de ódios, preconceito e na tentativa de apagar qualquer pensamento que não seja o que respalda o sistema capitalista de produção. Uma geração de operadores do Direito, completamente afinada com o velho plano de dominação que mantém o país cativo da dependência e do subdesenvolvimento, causas principais da miséria, do desemprego e da superexploração dos trabalhadores.

É a guerra de classes, cada dia mais acirrada.


Elaine Tavares é jornalista e colaboradora do Instituto de Estudos Latino-Americanos da UFSC.

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