Correio da Cidadania

Lógica de guerra e lógica de Paz: um alerta necessário

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Toda pessoa tem o direito de mudar. E deve mudar, se sua experiência de vida, sua reflexão e sua consciência a convencerem dessa necessidade.

Começada a discussão, por toda a sociedade, para a escolha, em segundo turno, do presidente do Brasil. Bolsonaro, um dos candidatos, reivindica esse direito. Ele não enfrenta diretamente o outro candidato nos debates que os eleitores têm o direito de assistir, apoiado em convenientes prescrições médicas (conseguirá mantê-las até o 28 de outubro?).

Enquanto isso, dá entrevistas sozinho, ao mesmo tempo em que sua máquina de produção de informações falsas nas redes sociais intensifica sua ação, manipulando os sentimentos de um grande número de pessoas desinformadas e reforçando seus erros de avaliação

No espaço que lhe é oferecido nas entrevistas, ele diz o que disse e fez ao longo de 20 anos como político é coisa do passado. Que na verdade ele não é por ditaduras, nem por armas, nem contra mulheres ou gays. Que vai ter como ministros somente pessoas competentes nos seus respectivos ramos, assim como não vai fechar o Congresso. E que não apoia eleitores seus que se envolvam em atos de violência. Etc. etc.

É possível que muitos de seus eleitores estejam acreditando no que ele fala. E que já estejam decididos a votar nele também no segundo turno, e até vejam sua escolha reforçada com a ativação da estratégia de uso das redes sociais que ele adotou.

É provável, por outro lado, que todos que já se associaram ao apelo do ELE NÃO vejam sua escolha também mais reforçada por essa mudança de Bolsonaro, e até estejam se organizando para que mais gente tome consciência do que ELE significa.

A questão é saber se os que não estão aguerridos nem de um lado nem de outro da disputa podem ainda perceber que, acima de uma alternância democrática saudável, estamos todos correndo o enorme risco de um aventureiro sem escrúpulos como Bolsonaro, com a lógica destrutiva que tem entranhada em sua mente e em seu coração, assumir a presidência do Brasil.

É dramático, mais do que triste, ver em nosso país um candidato a presidente nos aterrorizar apontando armas, por enquanto imaginárias, para os que dele discordam – num gesto que diz ser necessário e que portanto, no fundo, está “prometendo” concretizar. Podemos estar às vésperas da implantação de um autoritarismo feroz que será talvez mais difícil e doloroso superar do que a ditadura militar imposta em 1964 – Bolsonaro já não disse que os militares que assumiram o poder em 64 não fuzilaram todos que deveriam ter fuzilado?

Pior ainda: pelo exemplo que dá em suas atitudes e pelas suas palavras, é extremamente preocupante a possibilidade de, na prática, ele liberar, logo depois de eventualmente eleito e antes de sua posse, instintos e rancores recalcados de pessoas que decidirão fazer justiça – e aplicar castigos – com as próprias mãos, desatando a violência, que aliás já está começando a grassar, entre nós.

O que fazer?

Temos que evitar que isso ocorra. Como cidadãos ou cidadãs comuns, temos que levar, com o poder político de que dispomos, esse grande contingente eleitoral que decidiu o primeiro turno e poderá decidir o segundo, a descobrir a diferença abissal que existe entre os dois candidatos. Num trabalho sistemático, quase um a um. Trata-se de nossa sobrevivência como sociedade.

Uma coisa é eleger um candidato de um partido com cujo programa ou prática se tem discordâncias, outra é eleger um candidato que nunca se constrangeu em aceitar a prática da tortura ou glorificar a violência e que acolhe entre seus apoiadores, e até os estimula, agrupamentos brutalmente racistas, homofóbicos, misóginos e mesmo nazifascistas. O gesto que Bolsonaro mais se compraz em repetir é o de empunhar armas imaginárias com suas duas mãos, dirigindo-as a um inimigo eventual. E o fez até quando fotografado no hospital, vítima da violência que ele próprio preconiza.

Este texto pretende fornecer alguns subsídios na busca de uma reposta à angustiante pergunta que está atravessando o espírito, neste segundo turno eleitoral de 2018, de muitos brasileiros e brasileiras conscientes do perigo que nos ronda.

A rejeição ao PT

Muitos dos que no primeiro turno elegeram Bolsonaro lhe deram seu voto ou seu apoio pelo medo da volta do PT ao poder.

O PT de fato paga hoje o preço, entre outras insuficiências dos governos que lhe foram confiados, de um grande equívoco: ao mesmo tempo em que criou e apoiou instituições de combate à corrupção, contraditoriamente, buscou condições de governabilidade aceitando e mesmo facilitando práticas usuais da cultura politica brasileira que levam necessariamente à corrupção.

A propaganda impiedosa de seus rivais, com o apoio sistemático dos meios de comunicação controlados pelos interesses que contrariou, fez com que esse equívoco terminasse por encobrir tudo de bom e acertado que o PT estava fazendo – no que respeita por exemplo à superação da desigualdade social – e se assimilasse o partido somente à corrupção. Ele passou então a ser rejeitado por muitos, ainda mais por não ter feito qualquer autocrítica.

Ainda que o PT não faça a autocrítica, temos que lhe dar a oportunidade de emendar-se na prática de um novo exercício da presidência da Republica. Ou esse direito só cabe a Bolsonaro? Isto será muito melhor para todos do que entregar o poder presidencial a uma pessoa que defende abertamente a prática de resolver os problemas com truculência.

Não podemos deixar que a decepção com o PT, o medo de sua volta e mesmo o ódio ao partido impeçam as pessoas de verem quão tenebrosa é a alternativa proposta.

Lições da história

Bolsonaro está tentando utilizar o instrumento democrático do voto para conquistar o poder politico em nosso país. Mas a história já nos ensinou que a escolha democrática dos governantes não impede que mecanismos perversos, criados pelo novo poder instalado com a legitimidade do voto, penetrem no tecido social sem encontrar muita resistência, apoiando-se nas muitas fragilidades humanas.

Sábios chineses e indianos já diziam, três séculos antes de Cristo, que armas sempre causam desgraça e por isso só devem ser usadas, para dirimir conflitos, em último recurso. Mas o acesso de todos a armas é a primeira das medidas que Bolsonaro pretende propor, contando, para sua aprovação, com uma “bancada da bala” reforçada pelo grande número de militares eleitos neste pleito e apoiada pelos fabricantes de armamentos.

O pacifismo, preconizado por aqueles sábios chineses e indianos, só conseguiu criar instituições políticas no início do século 20 – a Liga das Nações, depois que muitas delas foram martirizadas pela carnificina da Primeira Guerra Mundial. Mas a Liga não conseguiu evitar que o mundo vivesse novamente as consequências dolorosas do crescimento do ódio e da violência entre cidadãos e cidadãs e entre nações, alimentados por dirigentes muitas vezes democraticamente eleitos, mas que passaram a visar objetivos perversos. E sucumbiu frente às ambições que levaram à Segunda Guerra Mundial.

A Organização das Nações Unidas (ONU) foi erigida, três décadas depois, sobre os escombros de Hiroshima e Nagasaki, duas cidades japonesas cujos moradores foram quase instantaneamente varridos da face da terra por duas poderosíssimas bombas. Ela visava também evitar as guerras, mas nem sempre o tem conseguido.

Será que cada sociedade humana precisa viver ela mesma seu próprio sofrimento sem atentar para as lições da história? É este o alerta urgente que, acima de todas as outras considerações, precisa ser mil vezes repetido, no segundo turno das eleições no Brasil. Antes que seja tarde demais.

A reação social apartidária

A grande manifestação convocada pelas mulheres brasileiras no último dia 29 de setembro, sem nenhum partido ou candidato por trás, criou a esperança de que estávamos acordando. Milhares de pessoas atenderam à convocação e saíram alegremente às ruas pelo país afora, a dez dias das eleições, não para apoiar algum candidato, mas para recusar peremptoriamente o voto num determinado candidato, num estrondoso e uníssono ELE, NÃO!

A iniciativa foi muito oportuna porque a atividade política no Brasil, assim como a quase totalidade dos que a desenvolvem, estão atualmente extremamente desacreditados, o que, num contexto de crescimento da desigualdade social e sofrimento do povo, abre espaço para o surgimento de aventureiros salvadores da pátria.

Devemos essa luz de esperança à intuição feminina de uma mulher negra da Bahia, sem nenhuma filiação partidária, que viu a necessidade de chamar todas e todos a se defenderem do processo autodestruidor que ganhou força no Brasil, liderado por esse candidato.

Os cidadãos de segunda classe

Bolsonaro já escancarou, em diversas declarações – desde os tempos que hoje chama de passado – seu desprezo por negros, indígenas, quilombolas, as próprias mulheres, aqueles que fazem outras escolhas sexuais, os mais frágeis.

Para o General Mourão, seu companheiro de chapa, é próprio ao negro ser malandro e ao indígena ser indolente. Se Bolsonaro por desgraça for eleito, é cabível temer que esses segmentos sociais possam vir a sofrer aqui no Brasil a perseguição que sofreram os judeus e muitos estrangeiros quando Hitler tomou o poder – também por meio de eleições livres – na Alemanha dos anos 30, e os identificou como inimigos da supremacia alemã.

Houve, naquela ocasião, quem conseguiu sair da Alemanha a tempo, e quem ficou e resistiu, muitas vezes ao custo da própria vida. Mas houve muitos alemães que, como bons burocratas, cumpriram ordens, mesmo sangrentas.

Outros muitos assumiram vigorosamente a perspectiva do “Führer” – apesar de terem às vezes alta formação intelectual universitária – e, induzidos por ele, assassinaram os “diferentes” com sua mesma frieza e violência. E muitíssimos outros assistiram silenciosos ao que estava acontecendo, talvez sem saber exatamente o que estava ocorrendo com os que viam serem presos e perseguidos. Até que se tornaram vítimas, eles próprios, da reação também violenta do resto do mundo às loucuras de seus dirigentes políticos.

Esse paralelo provoca calafrios. E é extremamente preocupante, e mesmo assustadora, a adesão a Bolsonaro de líderes empresariais, religiosos, até comunitários. E, com eles, de muitas pessoas, de diferentes idades e estratos sociais.

O principal inimigo

O principal inimigo de Bolsonaro e seus adeptos ainda é aquele insistentemente martelado pela propaganda anticomunista que, durante os quase cinquenta anos de Guerra Fria, dividiu as nações em duas visões antagônicas de sociedade e alimentou o ódio entre posições políticas consideradas irreconciliáveis: de um lado o regime “democrático e civilizado do ocidente cristão”, de outro o regime “comunista e ateu” capaz de crimes hediondos sob a direção de ditadores assassinos – aproveitando-se do fato de que alguns dirigentes do mundo comunista (como Stalin ou Pol Pot) mereciam ser assim classificados.

Se essa ideia tosca de divisão binária do mundo já faz parte do passado no mundo dito desenvolvido, ela está ainda muito presente na sua periferia.
Muitas das instituições de nosso país, especialmente as militares, mas também as próprias instituições religiosas, ainda estão profundamente marcadas por essa propaganda. É com base nela que muitos segmentos religiosos deram apoio social ao golpe “anticomunista” de 64, e agora simpatizam com o candidato Bolsonaro.

Bolsonaro aposta em tal simplificação ao dizer que sua guerra é contra o que ele chama genericamente de “esquerda” – uma categoria única e diabólica de inimigos do Brasil. Ele mesmo já deu todas as indicações de que, se eleito, será um governante autoritário ou mesmo ditatorial.

Mas, segundo ele, seria necessário para enfrentar o autoritarismo de esquerda, que afirma que se instalaria no Brasil se elegermos “comunistas”, “socialistas”, “ambientalistas”, cristãos contestadores do capitalismo e todos os grupos, partidos e movimentos sociais contrários ou críticos a esse sistema econômico – o que inclui até o Papa Francisco.

A formação militar

Bolsonaro é um militar.  Nas palavras de seu vice, General Mourão, os militares são os “profissionais da violência”. Devemos ter presente que a formação militar, de fato, baseia-se em uma lógica específica, que chamo de lógica de guerra.

É uma lógica perversa: na guerra, o objetivo é destruir o adversário. Para que um ganhe, é preciso que o outro perca. Se necessário, pela sua destruição física. A lógica de guerra é uma lógica de violência. Ela é, portanto, todo o contrário da lógica de construção de uma sociedade humana, que envolve o diálogo, a negociação, a inclusão, a tolerância, a diversidade.

Pois é nessa lógica de guerra que o candidato Bolsonaro pensa, fala e age. E essa é na verdade a dimensão mais perigosa do seu caráter, claramente exprimida no gesto de empunhar uma arma, que se tornou sua marca registrada.

É, acredito, o apelo mais profundo do ELE NÃO! dirigido a Bolsonaro – o candidato que opta pela violência – na manifestação de 29 de setembro, que precisamos agora difundir claramente ao máximo: negando o voto a Bolsonaro como candidato à presidência do Brasil, reafirmar a opção da maioria dos brasileiros e brasileiras, que é pela outra lógica: a do diálogo na diversidade, na construção de um mundo de Vida, de respeito e de ajuda mútua, de fraternidade e de Paz.

A lógica de guerra

Os processos mentais da lógica de guerra ficaram mais claros para mim, pessoalmente, ao ler depoimentos, no Chile, em um dos muitos processos judiciais em que o governo do país, diferentemente do que ocorre no Brasil, busca punir os militares que cometeram crimes durante a ditadura de Pinochet.

Trata-se do processo pelo fuzilamento sumário de 20 membros da Guarda Armada do Presidente Allende, conhecida como GAP. Eles tinham sido presos na própria tarde do golpe de 11 de setembro de 1973, no Palácio de Governo bombardeado e encarcerados no Regimento Tacna, em Santiago, transformado em prisão provisória dos detidos nesses primeiros dias.

No dia 13 pela manhã foram levados para Peldehue, uma área de treinamento do Exército na periferia da cidade, e foram metralhados um a um, à beira de um fosso onde caíam e onde ao final foram arremessadas algumas granadas, despedaçando e cobrindo de terra os seus corpos.

O suboficial a quem foi ordenado que disparasse a metralhadora só suportou matar os primeiros cinco. Transtornado, foi substituído. De volta ao quartel o comandante o chamou e lhe disse que compreendia que tinha sido muito difícil e duro, mas que se acalmasse porque fizera o que devia: cumprira ordens. E completou: assim é a vida militar.

Em seu depoimento, mais de trinta anos depois, esse suboficial lastima não lhe terem dado, no fuzilamento, nem o beneficio da dúvida (nos pelotões de fuzilamento “normais”, pelo menos um dos fuzis tem munição de salva, não letal...).

Assim como se lembra do dia em que vira a cabeça destroçada do presidente Allende por uma fresta da porta do Gabinete presidencial, ao participar da invasão do Palácio do Governo pelos militares, no dia do golpe. Ele possivelmente nunca conseguiu se acostumar, pois alguns anos depois foi afastado para a reserva do Exercito por dificuldades no exercício de suas atividades profissionais.

Os desaparecidos e executados dos regimes militares

Eu fora ao Chile, com minha mulher e uma filha, acompanhando a viúva e a filha de Tulio Quintiliano Cardoso, na dolorosa busca dos seus restos mortais. Brasileiro refugiado no Chile, ele desaparecera depois de levado preso ao mesmo Regimento Tacna, na noite do dia 12, e até hoje sua família não pode lhe dar sepultura. Seu nome e sua foto estão no Mural dos mais de 1000 desaparecidos políticos nessa ditadura, no Museu de Memória e dos Direitos Humanos de Santiago. Teria Tulio sido juntado ao grupo de membros do GAP e levado para ser fuzilado, com eles e como eles, sem nenhum julgamento, como um brasileiro suspeito?

A dureza dessas decisões, na lógica da guerra, é a mesma da voz severa que lê o comunicado militar número 24, que se ouve na grande sala de entrada do Museu, num vídeo com cenas do dia do golpe: “Todos aqueles que insistam na atitude suicida e irresponsável assinalada anteriormente (referência ao parágrafo anterior, em que fala de “resistência armada ao novo governo dos chilenos”) serão objeto de um ataque definitivo pelos efetivos das Forças Armadas e da Policia Militar. Os que forem tomados prisioneiros serão fuzilados no ato”.

Matar!

Nas duas Guerras Mundiais e nas que lhes seguiram, foram inúmeros os episódios de violência desse tipo, vitimando militares e também civis, mulheres, crianças e idosos. É assim: uma guerra se ganha matando e destruindo. Matar para não ser morto, destruir para não ser destruído. Documentários espetaculares nos mostram inacreditáveis canhões, barcos e aviões vomitando fogo em tropas inimigas, até que grandes festas populares comemorem a vitória. Guerra é barbárie.

Alguns desses episódios são particularmente cruéis. Como o massacre de Katyn, na Polônia, no inicio da Segunda Guerra, em que em poucos dias mais de 20.000 prisioneiros poloneses foram executados, entre os quais quase 1.000 oficiais do Exército Polonês, mortos um a um com um tiro na nuca. Durante muito tempo a Alemanha de Hitler e a União Soviética de Stalin, nos seus esforços de propaganda, se acusaram mutuamente por esse massacre, até que fosse reconhecido pela Rússia como um dos crimes de Stalin, que pretendeu com isso destroçar totalmente a cúpula do Exercito polonês. O diretor polonês Andrzej Wajda reconstituiu esse massacre num filme notável, “Katyn”.

Como também o massacre – em outra escala, mas não menos cruel – de todos os habitantes do pequeno vilarejo de My Lai no Vietnã,  em um só dia, pelos fuzileiros norte-americanos. Ou o genocídio dos judeus no holocausto. Ou Hiroshima e Nagasaki. Ou tantos outros que ferem a consciência humana e contribuíram para acordar a humanidade para a necessidade da construção da paz.

Assim é a vida militar

Mas essa é a realidade da guerra, com a qual têm que se “acostumar” os que recebem a missão de matar. Em que é essencial obedecer. Numa batalha não há lugar para titubeios, estados de alma e dúvidas filosóficas. Menos ainda para a tomada democrática de decisões e nunca para a indisciplina. Ordens são dadas para serem cumpridas. Incogitável colocar em dúvida a estratégia dos comandantes.

No filme “Gloria feita de sangue”, Stanley Kubrick retrata um desses episódios da Primeira Grande Guerra em que centenas de soldados franceses eram fuzilados por desobediência, imediatamente e à curta distância da trincheira em que se encontravam, por levantarem objeções de consciência ou não se disporem a obedecer ordens que consideravam absurdas. Diz um general a seus soldados: “Se não enfrentarem as balas alemãs, vão ter que enfrentar as nossas”.

Os fins – defesa do país, ou da “pátria”, conceito útil para alistar as pessoas em ações anti-humanas – justificam todos os meios? Esse princípio, extremamente danoso na atividade humana em geral, pode levar a crimes mesmo na atividade militar, pelo desrespeito às chamadas “leis da guerra” – como, entre outros, o recurso à tortura para arrancar informações do inimigo....

Bolsonaro já declarou que a aceita e, em seu voto pelo impeachment de Dilma Rousseff, homenageou um notório torturador, o Coronel Ustra. E o general Mourão, por sua vez, em sabatina eleitoral na TV, disse, em resposta a uma pergunta que se referia também a esse torturador:  há heróis que matam. Faltou a pergunta: “heróis também torturam?”. Pois os relatos de torturas infligidas a presos por esse torturador são tão abundantes quanto aterradores.

Leis da guerra

Eu disse “leis da guerra”? Pois é. Adotadas internacionalmente, pretendem o impossível: manter as guerras dentro de limites civilizados, “aceitáveis”, com tribunais internacionais que podem punir atrocidades “porventura“ cometidas. Proíbem dar tratamento desumano e matar, sem julgamento, soldados inimigos feitos prisioneiros. Como os ameaçados no comunicado militar do golpe do Chile. Proíbem o bombardeio de hospitais. Proíbem que mísseis mirem carros brancos com o símbolo da Cruz Vermelha. Mas, dizem os “realistas”: e se estiverem cheios de armas e munições? Proíbem matar civis não combatentes, mas isso não impede alguns comandantes militares de arrasar totalmente áreas em que vivem civis não combatentes – mulheres, crianças e idosos – quando desconfiam de soldados inimigos nelas escondidos. Os moradores de cidades bombardeadas que se protejam em abrigos antiaéreos...

As guerras, em curso ou previsíveis, permitem também que nunca pare de funcionar o “complexo industrial-militar” – incitado pela sede insaciável de lucro que move as economias capitalistas – que mobiliza um enorme esforço científico e tecnológico para aumentar o poder de fogo dos militares, de maneira a infligir o máximo possível de perdas ao inimigo e ao mesmo tempo evitar baixas do seu lado.

É assim que se chegou aos atuais drones eficientemente comandados, em operações “cirúrgicas”, sem nenhuma contestação “democrática”, a partir de salas com ar condicionado a milhares de quilômetros do campo de batalha.

Lógica de guerra e vida civil

Se nos sujeitamos à lógica da guerra temos efetivamente que nos acostumar com a morte, mesmo a provocada pelas nossas próprias mãos. Tudo se torna tão natural que o piloto que lançou a bomba de Hiroshima aceitou a honra de dar o nome de sua mãe ao avião que serviu para matar tanta gente. Guerra é guerra. Na guerra, é permitido matar – faz parte de sua lógica, que nos desumaniza. Bolsonaro já nos explicou que o policial militar começa a se tornar um bom policial militar quando inscreve uma morte em seu currículo de ação.

O grande risco, portanto, é o de se adotar a lógica da guerra também para a vida em sociedade em tempos de paz. Daí a importância de os militares estarem subordinados ao poder civil. É esse o sentido dos Ministérios da Defesa, que começaram a surgir pouco antes e durante a segunda Guerra Mundial – acima dos comandantes dos diversos ramos das Forças Armadas e confiados a civis.

E foi certamente nesta perspectiva que o presidente do Uruguai puniu há pouco, com uma detenção de um mês, o comandante do exército de seu país, por este ter feito declarações “políticas”.

No Brasil, a criação de um Ministério da Defesa chegou a ser discutida pelos militares que assumiram o poder em 1964, ainda que com o objetivo de dar mais eficiência à coordenação entre as armas, e também na Constituinte de 1986-88, já então para atender às tendências mundiais. Mas só em 1998 ele foi criado – e sempre confiado a civis: a nomeação recente de um militar como Ministro Interino rompeu uma tradição de 28 anos.

Num país como o nosso que pouco se envolveu em guerras mundiais e muito menos em aventuras de conquista territorial, é possível que muitos de nossos militares não tenham se deixado condicionar pela lógica da guerra. Adaptaram-se ao princípio de confiar o Ministério da Defesa a um civil – e possivelmente se adaptariam também a outra tendência em curso no mundo – esta, bem mais difícil para os adeptos de Bolsonaro: a de confiar esse Ministério também a mulheres... Em março de 2017, um quarto dos Ministros da Defesa da OTAN eram mulheres. A sensibilidade feminina é um trunfo adicional na busca da paz.

Mas enquanto o mundo avança do ponto de vista civilizatório ao confiar os Ministérios da Defesa a civis, Bolsonaro retrocede declarando que, em seu eventual governo, não somente seu ministro da Defesa será militar como também outros ministros.

O que esperar da dezena de Generais de reserva que o estão ajudando a preparar seu plano de governo? Pensariam eles ainda como nos tempos da Guerra Fria? Operarão com a lógica de guerra?

E o que dizer dos militares que nestas eleições se candidataram a cumprir mandatos parlamentares? O número de eleitos quadruplicou. Será que, no exercício dessas novas funções, eles também verão, como Bolsonaro, detrás de todo opositor político um inimigo escondido, a ser eliminado se necessário?

Urge agir. O tempo é curto

Temos poucos dias para tentar mostrar a muita gente que a questão que efetivamente se coloca no segundo turno das eleições é o risco de um aventureiro sem escrúpulos, que raciocina somente segundo a lógica da guerra, empurrar nosso país para uma polarização muito mais brutal e violenta do que a que já estamos experimentando.

É oportuna a analogia feita pelo jornal argentino Página 12: Bolsonaro gosta de ser comparado a Trump, mas ele mais se assemelha, por sua biografia e gosto por sangue, ao presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte – um tirano eleito que se tornou referência em matéria de execuções extrajudiciais.

Temos que impedir que Bolsonaro seja eleito, afastando de nós uma perspectiva dramática para nosso país. Não basta votar branco ou nulo: se não votarmos contra ele, ele será o próximo presidente do Brasil.

A Paz como objetivo de vida e ação

A lógica da Paz também existe. É preciso que cresça em nosso país – e no mundo – o vasto movimento pela Paz de que não só o Brasil como toda a Humanidade necessitam. Comecemos a trabalhar por ela no Brasil já neste segundo turno das eleições de 2018. Antes que seja tarde demais.

Chico Whitaker é arquiteto e urbanista, coordenador do Fórum Social Mundial e fundador do MCCE - Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral.

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