Correio da Cidadania

Uma esquerda morreu, mas não sabe; outra precisa nascer, mas não consegue

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Comunidade primitiva, escravidão, feudalismo, cada etapa histórica pela qual a humanidade passou teve começo, meio e fim.

Agora está em curso a agonia do capitalismo, que não sobrevive sem contínua expansão, só que não tem mais para onde expandir-se, depois de vir por tanto tempo driblando com artifícios o fato de que cada vez se alarga mais o abismo entre os volumes sob ele produzidos e os indivíduos em condições de adquiri-los.

O desenvolvimento das forças produtivas que ele impulsionou em séculos passados seria suficiente para que cada habitante do planeta dispusesse do suficiente para uma existência gratificante e para que não esgotássemos estupidamente os requisitos imprescindíveis para a própria sobrevivência da humanidade.

Mas, como o Império Romano conseguiu esmagar a única força capaz de fazê-lo avançar para um estágio superior de civilização (os gladiadores de Spartacus, que acenaram com a promessa de fim da escravidão, embora não sentissem-se suficientemente fortes para assumir bandeira tão ambiciosa e quisessem apenas escapar para serem livres longe dos romanos), o capitalismo já estagnou e está nos estertores, mas ainda consegue evitar a imprescindível ruptura.

Os ganhos obtidos pela humanidade com os desenvolvimentos científicos e com o barateamento da produção foram usurpados pelo capitalismo, que acumulou um monumental poder de fogo e, com auxílio da lavagem cerebral martelada dia e noite por sua indústria cultural, consegue não só perpetuar e fazer aumentar cada vez mais os riscos de extinção da espécie humana como alavancar implacavelmente a desigualdade entre as classes em cada país e entre os países mais desenvolvidos e os países relegados à miséria, à fome, às pestes e às guerras insanas como as duas atuais.

O capitalismo conseguiu neutralizar inclusive a esquerda institucional, que por vários motivos já não consegue mais sobreviver fora do sistema, como nós, os contestadores da geração 68, tentamos e em parte então conseguimos durante um curto período. Hoje, os jovens de que desesperadamente necessitamos em nossas fileiras não se dispõem mais a lutar em duas frentes, a militância anticapitalista e a batalha pela subsistência.

Assim, os partidos que se rendem à institucionalidade burguesa, como o PT, levam a esmagadora vantagem de darem a seus quadros a possibilidade de se dedicarem somente, ou principalmente, à militância.

[Falo do fundo eleitoral, da cota de assessores dos quais cada representante no Legislativo pode dispor às expensas dos contribuintes, das boquinhas na administração pública e nas estatais, dos salários exorbitantes que são pagos para militantes do partido no poder ao atuarem em entes na esfera de influência do dito cujo, na enxurrada de anúncios para as páginas virtuais de blogueiros mais dependentes que nunca do PT etc. etc. etc.]

O centrão todo poderoso e a rainha da Inglaterra

É óbvio que a dependência financeira gera a dependência política. Tal esquerda teúda e manteúda é obrigada a omitir-se vergonhosamente quando o PT passa como um trator sobre os valores fundamentais do marxismo e do anarquismo.

Quanto à esquerda que tenta sustentar-se na raça, sem vender sua alma aos donos do Brasil, fica eternamente relegada à insignificância, com efetivos e recursos insuficientes para virar o jogo mediante uma ação organizada de atração/conscientização de novos quadros, ou formação de territórios livres como a Colônia Cecília no final do século retrasado e em nossas comunas alternativas de 1968, muito menos para expropriar o inimigo (como fazíamos em 1969/1972).

O que resta é a alternância infinita de governos da esquerda domesticada e governos da direita selvagem, como está se vendo no Brasil e na Argentina, sem que consigamos quebrar essa polarização que faz a História travar e tudo piorar cada vez mais.

Por enquanto, a esperança que restou são novas explosões de indignação como a do Brasil em 2013 e a de diversos países (com destaque para o Chile) em 2019, pois se todas as portas da razão estão fechadas, pelo menos o espontaneísmo é impossível de represar infinitamente: sempre acaba chegando a gota d'água que extravasa o copo da cidadania manietada.

Mas, até para isto, precisamos formar os mínimos quadros de uma nova vanguarda, caso contrário as ondas de revolta, com líderes como a pobre Sininho, passarão sem que consigamos cravar a estaca no coração do vampiro.

Vale lembrar: numa dessas janelas históricas, o Partido Bolchevique, que seria quase insignificante em tempos normais, conseguiu em 1917 tomar o poder como quem tira o doce da boca de uma criança, simplesmente porque era a única força disciplinada e consciente dos seus meios e dos seus fins durante aquele pandemônio.

E é para a formação dessa nova vanguarda, que resgate a combatividade esquerdista evaporada durante a hegemonia do PT, que eu venho lutando ao longo do presente século. Trata-se do último legado que quero deixar, depois de dedicar a minha vida à revolução desde a virada de 1967 para 1968, quando tracei meu caminho na vida.

E uma bandeira a ser erguida imediatamente, para a acumulação de forças, é a adequada punição do indiscutível responsável pela morte evitável de centenas de milhares de vulneráveis durante a recente pandemia de covid.

Salta aos olhos e clama aos céus que Lula, depois de tudo haver feito para que os torturadores da ditadura militar não fossem punidos, age agora de forma muito semelhante, tendo inclusive demorado uma eternidade para indicar o novo procurador geral da República e, depois, escolhido um candidato que inspira mais dúvidas do que certezas.

É óbvio que o encarceramento do genocida causaria comoção, e gente indo às ruas defender seus ideais assusta a esquerda que se desvirtuou e hoje pouco mais é do que uma força auxiliar da burguesia. A ela convém a pasmaceira, que lhe permite continuar se satisfazendo com as migalhas que caem da mesa da burguesia. Mas nós queremos muito mais: que finalmente se banqueteiem os que fazem o PIB crescer mas sempre veem, impotentes, uma minoria usurpar a parte do leão.

Depois de todos os crimes cometidos pelo genocida no quadriênio infernal de 2019/2022, se ele escapar das grades será como se um Hitler, caso sobrevivesse à derrota nazista, tivesse sido deixado livre e solto para continuar praticando e pregando sua necropolítica abominável.

Cada derrota consentida fortalece o inimigo e debilita nossa moral. É fundamental cessarmos o quanto antes tal hemorragia. Se quisermos resgatar a esquerda autêntica do fundo do poço, o primeiro passo é termos a coragem de agir como nossos corações e mentes mandam, ao invés de permitirmos que se passe pano naquelas imagens dantescas de seres humanos morrendo sufocados por falta de respiradores.

Temos de projetar para os brasileiros a imagem de uma esquerda que está de novo disposta à luta. Aquela que se deixou expulsar pusilanimemente da avenida Paulista e depois ficou assistindo de longe enquanto secundaristas e torcedores de futebol travavam suas batalhas no seu lugar não nos serve mais para nada. Seu prazo de validade está definitivamente vencido.

Já passou da hora de arregaçarmos as mangas e começarmos a construir uma esquerda de verdade.

Celso Lungaretti é jornalista e ex-preso político.

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