Correio da Cidadania

Condicionantes impostas pelo STF não podem tratar indígenas como incapazes

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Em processo histórico acerca das questões indígenas, o STF decidiu por 10 votos a 1 que a terra indígena de Raposa Serra do Sol deverá ser demarcada de forma contínua e habitada somente por seus ocupantes originais, num entendimento que vale para todas os demais territórios de direito dos índios. O veredicto final foi acompanhado pela determinação de 19 condicionantes a serem cumpridas pelos povos beneficiados.

 

O Correio da Cidadania entrevistou o coordenador do Conselho Indígena de Roraima, Dionito José de Souza, da etnia Macuxi, que tratou do significado da homologação contínua e dos pontos negativos e positivos de tais condicionantes, que a seu ver deixam os índios, em alguns aspectos, como incapazes e sem direito a voz.

 

No entanto, o processo em si representa uma grande vitória para a causa indígena, que agora se vê amparada por leis e autoridades nacionais na garantia de seus direitos. Como alerta, Dionito apenas pede que exército, polícia e Funai ocupem-se de suas verdadeiras funções, o que não foi via de regra nas últimas décadas de luta indígena.

 

Correio da Cidadania: Em linhas gerais, o que pode ser dito da homologação em terra contínua de Raposa Serra do Sol e o que ela significa para o conjunto da causa indígena?

 

Dionito Macuxi: Primeiramente, que agora nós temos nossa terra, e de forma contínua. Isso porque os invasores estavam deixando o território em ilhas, com os índios ficando isolados em suas malocas, em suas aldeias. Isso é muito estranho, muito ruim pra nós, porque futuramente precisaremos de mais espaço. Já existem muitas terras marcadas em ilhas e hoje os indígenas ocupantes pedem ampliação desses terrenos.

 

Mas, de toda forma, sempre buscamos a demarcação contínua e conseguimos manter Raposa desse jeito, sem ilhas. Sendo assim, fica registrado, graças a deus, ao supremo, e às lideranças que trabalharam na causa, que Raposa Serra do Sol permanece em área contínua.

 

É muito importante para nós porque agora sabemos que há uma lei, uma autoridade, que respeita as diferenças e a cultura do povo brasileiro. É uma aposta na diversidade, na possibilidade de existir povos organizados, que se respeitam mutuamente e que possuem uma terra para garantir sua sobrevivência e sua cultura.

 

Agora temos uma terra para viver, tocar projetos, uma terra que possa garantir a felicidade da família, do seu povo e de sua vida.

 

Raposa Serra do Sol foi um processo demorado, mas teve um resultado importante para a causa. Claro, existem essas condicionantes que vamos conversando e analisando para esclarecer melhor aos povos indígenas o que elas significarão.

 

CC: Acredita que o processo de desocupação da terra se dará sem grandes problemas e sem a violência que marcou a luta por esse território?

 

DM: De nossa parte, dos povos indígenas, não será gerada violência em tal processo. Se os invasores pretendem incorrer nisso, tem a polícia para cuidar do assunto. Ela esta aí para vigiar e botar ordem na área. Dessa forma, acredito que eles saiam sem causar nenhum tipo de problema.

 

CC: Vimos que os órgãos indígenas se posicionaram reservadamente frente às condicionantes impostas pelo STF ao referendar a homologação contínua. O que pensa dessas condicionantes? Haveria algumas positivas e outras negativas, sob o ponto de vista dos índios? Quais você ressaltaria de ambos os lados?

 

DM: Há algumas que são muito complicadas e outras que colocam o índio sob tutela. Por exemplo: a proibição de usar as terras para fazer exploração mineral. Assim, tira-se a condição da comunidade indígena de sobreviver através desse meio. Serve-se com uma mão e tira-se com a outra.

 

Fazendo um trabalho qualificado na área, a gente poderia aproveitar tal possibilidade sem causar destruição à natureza; explorando, mas recuperando-a.

 

Tais condicionantes nos impossibilitam de trabalhar esses pontos, mas quando a invasão chegou, trocou as escolas e, com o tempo, conhecemos um pouco da leitura e dos nossos direitos. Mas de toda forma a terra está garantida e de alguma maneira poderemos aproveitá-la. Fora isso, preocupa-me um pouco a parte relacionada à polícia. Ela tem que entrar mesmo, mas para exercer suas atribuições, não para tomar conta da terra dos índios ou abusar da força.

 

CC: O que pensa especificamente da condicionante que diz que a FUNAI e os índios não precisarão ser consultados quando se tratar da implantação de projetos de infra-estrutura para o país?

 

DM: Vejo como algo muito ruim para os indígenas, pois nos considera incapazes. Não nos considera diferentes, nem iguais. Não somos considerados cidadãos brasileiros dessa forma, pois todo cidadão brasileiro tem direito de voz e voto.

 

Deve haver uma consulta prévia antes de qualquer projeto ser implementado na área, não pode chegar alguém, impor as coisas e a gente ficar calado, não é assim.

 

Quando entramos nesse processo, não queríamos negociar em troca de algum grão de arroz e também não éramos objeto de negociação. Qualquer projeto que signifique trabalho do país na comunidade deverá contar com nossa participação, porque defenderemos nossos direitos.

 

Vamos aceitar essas condicionantes, mas não podem querer calar nossa boca. Temos voz e voto para poder trabalhar pelo nosso povo, senão vamos continuar na miséria e, quando aparecer algum projeto do governo, não teremos benefício algum, pois quem está na ponta do processo rouba, desvia, e ficamos de mão abanando, mendigando, o que não é interessante para nós.

 

O importante é ter nossa terra e que ela gere frutos para nós.

 

CC: A livre presença e circulação das forças armadas pela área, por sua vez, inspiram que sentimentos nos indígenas? Esta presença é realmente importante na defesa da soberania nacional, como disseram alguns partidários da não homologação e também da homologação?

 

DM: Acredito que se o exército trabalhar de forma pacífica e vigilante no território brasileiro, não há problemas. Mas do jeito que andam nosso exército e polícia, matando crianças, mãe de criança, tendo laços com o narcotráfico, nesse caso, os índios cuidam melhor do território.

 

Toda hora ouvimos falar que algum delegado ou capitão está envolvido com o narcotráfico, de gente se aproveitando para transformar a fronteira em porta de entrada de coisas ruins.

 

Prostituição, agressão aos índios, desrespeito às índias, isso não é vigilância. Mas, se o trabalho for feito com seriedade e competência, fica tudo bem. E temos condições de chamar o exército se alguém estiver invadindo nosso território, pois há meios de se fazer isso.

 

CC: O Supremo estabeleceu também que as terras já demarcadas não podem ser ampliadas. O que isso acarretará para as terras demarcadas em ilhas, algo vetado pelo próprio STF?

 

DM: Essa idéia vem do governo, desde os militares. Como cada um quer fazer uma coisa e ganhar notoriedade na mídia, acabaram prejudicando meu povo. Fizerem propaganda de que a demarcação em ilhas era benéfica, manipularam os povos indígenas. E hoje esses povos reclamam da falta de condições e de trabalho na terra deles.

 

Os erros que o Brasil cometeu ontem comete ainda hoje, porque não se havia pensado nisso. Davam uma terra para o povo, com o tempo ela ficava pequena, pois a população crescia, e aí faltava o planejamento familiar. Enquanto isso, para os grandes proprietários, concedem cada vez mais espaços.

 

É uma discriminação que vem desde o passado, e a demarcação em ilhas é algo que está errado.

 

CC: Os rizicultores, representados pela figura de Paulo Cezar Quartiero, têm um vasto retrospecto de violência, mortes, atentados, inclusive contra a Polícia Federal, até hoje impunes. Os indígenas ainda continuarão lutando por um julgamento desses fatos e a punição dos culpados?

 

DM: Nós já cobramos o MP a respeito do assunto em reuniões, e vamos pressionar para que a lei seja cumprida. Acho que já acabou aquele tempo de alguém poder tudo só porque tem dinheiro.

 

Nós temos de fazer a lei funcionar, seja para quem for. Mesmo o presidente da República deve respeitar as leis que temos em nosso país. Por mais poderosos que sejam, eles devem, sim, pagar pelos erros e crimes cometidos.

 

CC: Por que o governo do estado não integra os indígenas na política econômica de Roraima? Tal parceria não sairia mais barata do que aquela feita com empresários, que agem pela natural lógica capitalista de busca do lucro?

 

DM: A gente sabe que os não índios infelizmente têm essa política suja, que só serve a eles. Assim os ricos continuam ricos e os pobres continuam pobres, e por isso os índios ficaram tão ameaçados.

 

Aceitamos a política do governo de participar, votar, colocar uma pessoa na direção e ficamos só com a teoria, que era bonita.

 

Hoje estamos começando a mostrar que a coisa não é bem assim, não nos contentamos com uma rede, chapéu e algumas esmolas; não é mais assim.

 

Político tem de fazer planos, um trabalho preparado, senão não será aceito na comunidade. Respeitamos os políticos, mas eles precisam respeitar a comunidade, que já não aceita mais as mesmas propostas. Se vier alguém com uma política de ação, tudo bem, mas, se vier só com blá-blá-blá, não aceitamos.

 

CC: Considera a FUNAI um órgão confiável na defesa dos direitos indígenas e na condução dos processos de demarcação?

 

DM: De uma forma ou outra, a FUNAI é uma organização que traz as pessoas para trabalhar nas questões indígenas, o que é importante.

 

No entanto, existem pessoas lá dentro que são simplesmente anti-indígenas, e isso atrapalha todo o rumo, estraga todo o planejamento do órgão.

 

Alguns setores da FUNAI que querem impor a tutela nos desagradam. Hoje trabalhamos com pessoas que sabem se adaptar à cultura indígena, integrando-a com a dos não índios.

 

Não creio que se deva criar outro órgão, mas a Funai deve se humanizar em relação aos povos indígenas. Os profissionais podem e devem ganhar seu dinheiro, seu pão de cada dia, mas desde que exista uma política indígena de fato.

 

Não queremos na Funai as pessoas que trabalham na direção contrária.

 

Gabriel Brito é jornalista.

 

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