Correio da Cidadania

#meuprimeiroabusopolicial: relato de sobrevivência

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Introdução de Najara Gonçalves

Ser negro no Brasil não é tarefa fácil. Como dizia Luiz Gama, “em nós, até a cor é um defeito. Um imperdoável mal de nascença. O estigma de um crime”. A criminalização do homem negro é algo que acompanha a história de um povo que, outrora escravizado, hoje lida com o racismo e a perseguição.

Se no século 19 o indivíduo negro já era taxado como perturbador da ordem, criminoso e violento, principalmente devido à sua “desobediência” e negação da condição de ser coisificado, numa sociedade que negava a sua humanidade, atualmente, em pleno século 21, o “ser negro” ainda denota perigo para muitos, especialmente àqueles que estão à frente dos órgãos de repressão à contínua resistência.

Ao que parece, as palavras de Gama não foram compreendidas em sua inteireza. Ao criticar os estigmas impostos à gente negra, Luiz Gama afirma a força e o ardor pela justiça que é tão peculiar a este povo da pele escurecida e lembra aos “nossos críticos”: “essa cor convencional da escravidão, tão semelhante à da terra, abriga sob sua superfície escura vulcões, onde arde o fogo sagrado da liberdade”.

É esse vulcão que vejo nos olhos de Bernardo de Castro Gomes. Um homem que, como tantos homens negros, morre todas as noites e ressuscita a cada amanhecer.

Bernardo. Homem negro. Transexual. Militante e ativista das causas Trans e Transmasculinidades. Carioca do subúrbio. Como muitos outros, Bernardo é um alvo pronto para ser atingido por um sistema que oprime e classifica o “ser” negro no Brasil, especialmente aqueles que não se encaixam nos padrões de obediência e disciplina. Tal qual Luiz Gama, ele insiste e afronta. O que veremos abaixo é um relato de afrontamento, resistência e teimosia…Um relato de quem insiste em viver.

#meuprimeiroabusopolicial, mais que um relato, é um alerta! Vidas negras importam. E não desistimos de viver, pois em nós “arde o fogo sagrado da liberdade”.

Bernardo de Castro Gomes

Eu tinha oito anos e meu irmão cinco. Voltávamos de uma festa maravilhosa na Vila Cruzeiro e aquele foi, até ali, um ótimo dia em família. No retorno, quase chegando em Quintino, a Kombi em que estávamos foi parada. Lembro-me de gritos e olhares de medo de todos: minha mãe, minha tia, minha madrinha e o motorista da Kombi. Eu e meu irmão ficamos assustados por ver o terror nos olhos dos adultos.

Os palavrões saíam da boca dos policiais e as armas estavam apontadas para nós. Numa atitude, que hoje vejo como um grito por sobrevivência coletiva, minha tia disse: “Eu sou funcionaria federal!” Sabe de que serviu? De nada! Seguiram-se mais cenas de terror, pois eles mostraram que de nada valia o fato de ela ser funcionária federal. O que contava ali era a vontade de barbarizar e se valer da força.

Sobrevivemos! Não porque minha tia era uma funcionaria federal… Sobrevivemos, porque, naquele momento, eles não quiseram nos matar.

Depois, quase que instintivamente, pensei que estar vivo se devia a um fato consentido pela polícia. Isso me incomodou. Sabe, nasci em uma família típica suburbana carioca, onde tive sempre tudo que foi necessário, na medida em que meus responsáveis achavam que aquele mau não nos assombraria. Triste engano!

Eles já tinham me identificado pela cor da minha pele e sabiam que eu era o alvo direto para um abuso perfeito e silenciado. Já fui e ainda sou abusado tantas vezes, e em cada abordagem, preciso provar de onde eu venho e pra onde eu vou. Nesse tribunal diário, os PMs são os juízes que me batem e me colocavam em situações vexatórias, porque eles têm a certeza de que eu era e ainda sou o alvo perfeito para o abuso.

Quando tive meu primeiro carro, decidi escurecer todos os vidros, a fim de não ser visto e muito menos descoberto pelos meus abusadores. Enganava-me achando que atrás do insufilme eles não poderiam me ver e nem tentar me fazer nenhum mal... Outro engano!

Quando eles me paravam era muito pior, pois queriam saber a procedência do carro e colocavam armas na minha cabeça. É o que eles sabem fazer de melhor!

Quando iniciei a transição, tudo isso ficou ainda pior. O contraste aparência x documento deu a eles a oportunidade de avançar nas agressões. A frase já ecoa sozinha em minha mente: “Você não quer ser homem? Vou te tratar como um!” O nível das agressões mudou e admitir essas agressões não é fácil: cuspe na cara, socos na costela, tapas na cara... Me perdi nas contas... Quando têm policiais presente, nem sei se sou um cidadão ou um protagonista de reality show, dada a quantidade de filmagens sem autorização que a polícia faz da minha imagem.

Hoje sei que sou uma vítima em potencial do abuso e o auge dessa confirmação tive no dia em que fiquei encurralado com um policial do Centro Presente (dia 28 de abril ,estava manifestando contra o governo ilegítimo de Michel Temer) na saída de lixo do teatro Municipal. Estávamos ali, nós dois, nos escondendo da própria polícia.

Encurralados juntos, tive a oportunidade de fazer esse policial ouvir tudo isso que eu estou escrevendo. Lágrimas quentes escorriam do meu rosto e do dele. Dois homens pretos. Estive certo que naquele de momento eu ia morrer, pois ali tinha um policial sentindo o medo que sinto todos os dias. As lágrimas dele refletiam meus medos.

A calmaria veio, me levantei. Ele sacou a arma (até então escondida) e falou bem mais alto do que meus ouvidos já ouviram: “corre, vagabundo!”

Publicado originalmente no Jornal Empoderado.

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