O retrocesso nacional-estalinista
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- Pablo Stefanoni
- 07/08/2017
Depois de uma viagem em 1920 à Rússia revolucionária, com um grupo de sindicalistas trabalhistas, o pensador britânico Bertrand Russell escreveu um pequeno livro — Teoria e prática do bolchevismo — em que apresentava as suas impressões sobre a recente revolução bolchevique. Nesse livro, Russell desenvolveu, com simplicidade e visão antecipatória, alguns problemas relacionados à acumulação de poder e aos riscos de construir-se uma nova religião do Estado. Num texto fortemente empático à tarefa titânica que os bolcheviques levavam a cabo, Russell ponderou que o preço envolvido nos seus métodos era alto demais e que, inclusive pagando esse preço, o resultado era incerto. Nesse singelo raciocínio, residem muitas das dificuldades do socialismo soviético e seu desdobramento ao longo do século 20.
A cem anos dessa façanha libertária, não faz mal voltar a tais problemas. Sobretudo, porque a tensão entre democracia e revolução continua em vigência. Ainda que, em regra, a vigência se manifeste mais frequentemente como farsa do que como tragédia, sobretudo ao lermos algumas análises a respeito da atual conjuntura latino-americana. O caso venezuelano é o mais dramático, já que se trata da primeira experiência autointitulada socialista que triunfou desde a Revolução Sandinista, em 1979. Só por isso já é merecedora da nossa atenção.
Porém, além disso, a derrota desta experiência possivelmente tenha consequências similares ou piores do que a derrota eleitoral sandinista, em 1990. Ainda assim, as análises escasseiam e habitualmente têm sido substituídas por discursos panfletários que não passam do espelho invertido daqueles feitos pela direita regional.
A convocação de uma incerta Assembleia Constituinte parece ser uma fuite en avant para um governo, o de Nicolás Maduro, que foi perdendo apoio popular tanto nas urnas quanto nas ruas. Decerto que os protestos têm mais intensidade nalguns territórios do que noutros, mas a afirmação que seriam apenas os ricos do bairro de Altamira ou do Leste de Caracas que estariam se opondo ao governo está desmentida ante a derrota esmagadora do Partido Socialista Unido de Venezuela (PSUV) nas eleições parlamentares de 2015.
Por causa dessa derrota, já não houve mais eleições regionais (e nem sindicais, no caso da estratégica companhia petrolífera, a PDVSA). E, por isso, a Constituinte foi projetada de tal forma que o voto cidadão viesse combinado com o voto territorial e o corporativo com uma esperteza vernacular revestida de principismo revolucionário. Que no domingo passado tenham comparecido para votar (votar, nesse caso, equivale a votar pelo governismo) mais eleitores que nos melhores momentos da Revolução Bolivariana só poderia ter sido mesmo um “milagre”, como assim o denominou Nicolás Maduro, inclusive se levarmos em conta a enorme pressão estatal sobre os funcionários públicos e quem recebe diversos benefícios sociais através do Carnê da Pátria.
Se o populismo guarda um irredutível núcleo democrático apesar das tensões que provoca nas instituições, ele de qualquer modo se referencia num apoio plebiscitário do eleitorado. Sem o que o poder depende cada vez mais do aparelho militar, como se dá hoje na Venezuela (se Maduro tivesse maioria, poderia convocar um plebiscito revogatório, ganhá-lo e ao menos fechar transitoriamente a crise política, como fizeram a seu tempo Hugo Chávez e Evo Morales).
Na Venezuela, o agravante de o poder estar militarizado é que os militares participam de esquemas de corrupção institucionalizados que incluem o acesso a dólares pelo preço do câmbio oficial (para a seguir trocá-los no mercado paralelo, com ganhos imensos) e o contrabando de gasolina ou de outros bens lícitos e possivelmente ilícitos.
Para piorar, a gestão do Estado se tornou um autoritarismo caótico, com desabastecimento, apagões, violência urbana descontrolada e degradação moral do processo bolivariano. Atribuir tudo isso à “guerra econômica” é absurdo. Com essa explicação, nunca se poderia explicar por que Bolívia ou Equador puderam lidar com as suas respectivas economias e razoavelmente bem.
Apesar disso, uma parte da esquerda regional defende o madurismo invocando a revolução e a luta de classe. A análise empírica desapareceu e foi substituída por apelações genéricas ao povo, ao anti-imperialismo e à direita golpista. Retomando Russell, suponhamos que estivéssemos dispostos a pagar o preço pelos métodos repressivos de Maduro: que resultado esperamos com isso? Que esperam aqueles que, plantados em posições altissonantes, anunciam que o 30 de julho foi uma data histórica, quando o povo triunfou sobre a contrarrevolução? Que céu é esse que queremos tomar de assalto? É sintomático que a Constituinte não esteja acompanhada de um mínimo horizonte de reformas e seja justificada somente em nome da paz, o que evidencia que se trata de uma manobra e não de uma necessidade da “revolução”.
É difícil acreditar que, depois do fracasso ou da marginalização das diferentes experiências “anticapitalistas” ensaiadas desde 2004 (quando Chávez abraçou o socialismo do século 21), possa ser empreendido hoje algum tipo de horizonte novo de mudança social. Não é a primeira vez, nem será a última, que em nome da superação da “democracia liberal” se anule a democracia junto com o liberalismo. Não é por acaso, tampouco, que grande parte da esquerda que sai para festejar a mãe de todas as batalhas venezuelanas seja admiradora de Kadafi e seu Livro Verde. Na Líbia, o “líder espiritual” levou ao extremo a substituição da democracia liberal por um Estado de massas (Yamahiriya) baseado em seu próprio poder pessoal – ainda que ele não tivesse cargos formais – e numa eficaz polícia secreta que resolvia o problema da dissidência.
Trata-se de uma esquerda que poderíamos denominar “nacional-estalinista”. Um tipo ideal que permite captar um mais ou menos difuso espaço que junta um pouco de populismo latino-americano e outro pouco de nostalgia estalinista (coisas que, no passado, não rimavam). Dessa mistura, sai uma espécie de “estrutura do sentimento” que combina retórica inflada, rarefeitíssima análise política e social, um binarismo empobrecedor e uma espécie de neo-arielismo diante do império (para além de análises marxistas do imperialismo, amiúde o que ocorre é certa moralina que induz a entusiasmar-se com as bondades de novas potências como a China, ou com a volta da Rússia, para não falar de simpatias com Bashar al-Assad e outros próceres do anti-imperialismo).
Na medida em que a maré rosé latino-americana se enfraquece, o populismo democrático que explicou a onda de esquerdas na região perde força e essa sensibilidade nacional-estalinista, que conta com alguns intelectuais em suas fileiras, — vários deles encontraram um refúgio na Rede de Intelectuais e Artistas em Defesa da Humanidade, — ganha terreno no espaço público. O nacional-estalinismo é uma espécie de populismo de minorias que governa como se estivesse resistindo na oposição. Por isso governa mal.
Hoje, é de praxe que se compare a Venezuela de 2017 com o Chile de 1973. Claro que os governos democrático-populares enfrentam reações antidemocráticas das direitas conservadoras, muitas vezes apoiadas pelos Estados Unidos, e é necessário enfrentá-las, o que pode incluir estados localizados de exceção.
Mas a mencionada comparação contorna alguns “detalhes”. Primeiro, Salvador Allende se bateu com forças armadas supostamente institucionais, porém hostis, de onde saiu Augusto Pinochet. Na Venezuela, em que pese a existência de setores antidemocráticos na oposição (temos de lembrar do golpe fracassado de 2002), as forças de segurança estão hoje do lado do governo. E o seu poder de fogo permanece intacto.
Tampouco o governo chileno estava perpassado pela ineficácia e a corrupção interna nos níveis em que se encontram no chavismo atual, onde são estruturais. Com a Nicarágua talvez a comparação possa ser mais enriquecedora: lá sim a ingerência imperial foi sangrenta e criminosa, e erodiu mui fortemente o poder sandinista. É possível comparar aquelas ofensivas criminosas com uma sanção econômica a Maduro?, quem, suspeitamos, não tem contas nos Estados Unidos, ou então com a estratégia dos “golpes de quarta geração”, que consistiriam na aplicação de um livro do quase nonagenário Gene Sharp, que aliás pode ser baixado na internet?
O império conspira em todos os lados, certo, mas noutros países da Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (ALBA), mais ou menos bem administrados, não faltam alimentos nas prateleiras dos mercados e, por exemplo, no caso da Bolívia, são apresentados índices macroeconômicos elogiados pelo FMI e o Banco Mundial. Enquanto esses governos mantêm as maiorias, o populismo democrático consegue manter de rédeas curtas os nacional-estalinistas, pois conserva os reflexos hegemônicos e democráticos ativos e assim resiste ao entrincheiramento autoritário.
O que permite traçar pontes entre o sandinismo tardio e o neochavismo atual é a corrupção como mecanismo de erosão interna e degradação moral, que no caso nicaraguense terminou primeiro com a sua derrota e a seguir com o seu retorno — contra a maioria da velha guarda sandinista — por meio do casamento Ortega-Murillo, hoje entranhado no poder após ter a sua conversão ao catolicismo aprovada, articulando uma nova e estrambótica religiosidade estatal com um pragmatismo surpreendente para fechar negócios, públicos e privados, o que na Nicarágua se misturam cada vez mais.
O preço a ser pago na Venezuela seria ficarmos com uma espécie de orteguismo com petróleo? Em prol disso, é que alguns intelectuais reclamam a Maduro que tenha a mão firme contra a oposição?
Claro que para a esquerda é importante diferenciar-se do antipopulismo — com as suas arestas demofóbicas, revanchistas, classistas, como também autoritárias — mas desprezar a perspectiva da radicalização democrática, acusando de liberais aqueles que constatam os déficits democráticos efetivos e operando em prol de um neoautoritarismo decadente, isso só favorece as novas direitas regionais. Em vez de uma disputa pelo sentido da democracia contra as visões que a reduzem à liberdade de mercado, à pós-política ou a um republicanismo conservador, os nacional-estalinistas a abandonam e se entrincheiram numa “resistência” inepta para regenerar a hegemonia que a esquerda conquistara na “década ganhada”. O que se argumentava em nome de um “socialismo do século 21” encontra seu fim na forma de uma paródia setentista.
Articular socialismo e democracia continua sendo uma agenda pendente para a esquerda: o risco contrário, que já vivemos, é a defesa da democracia sem conteúdos igualitários nem projetos reformistas capazes de minar os processos atuais de desdemocratização. Por isso, com relação à Venezuela, parte da socialdemocracia latino-americana tampouco consegue dizer algo que vá mais além de seu apoio à oposição aglutinada na Mesa de Unidad Democrática (MUD). Mas uma saída pactuada na Venezuela não pode basear-se unicamente na normalização da democracia política: precisa incluir igualmente uma defesa dos direitos econômicos populares (uma agenda de democracia econômica), diante daqueles que, a partir da oposição, buscam uma saída do tipo Temer.
Mas diante dos perigos de “temerização” da Venezuela, os nacional-estalinistas se permitem ser contraproducentes: o crescente desprestígio do socialismo, graças ao desgoverno de Maduro e à volta da associação entre socialismo, escassez e filas, leva as saídas pró-mercado a ganharem terreno e apoio social. Ainda assim, a tentação de construir o socialismo na base do porrete — “se não é com votos, será com as armas”, Maduro dixit, ou então “con el mazo dando”, como Diosdado Cabello batizou o seu programa de televisão — em nome de um povo abstrato ou contra um povo manipulado, continua captando a imaginação e o entusiasmo de parte da esquerda militante continental.
Para piorar a situação não há socialismo nenhum. Mas os “filtros bolha” das redes sociais confirmam as convicções e pós-verdades de cada qual, de maneira bastante parecida como operam os (violentos) espaços de sociabilidade antipopulistas.
Lamentavelmente, sem uma esquerda mais ativa e criativa a respeito da Venezuela, a iniciativa regional fica nas mãos das direitas. Analisemos tais processos com senso crítico e façamos todo o possível para que Caracas não seja o nosso muro de Berlim do século 21.
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Pablo Stefanoni é jornalista e editor da revista Revista Nueva Sociedad, onde o texto foi originalmente publicado.
Tradução de Bruno Cava, da Uninômade.