Correio da Cidadania

Estado Democrático de Mercado

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(fotos de Daniel Arroyo, Ponte Jornalismo)


Para o entardecer desta terça-feira, o Movimento pelo Passe Livre (MPL) convocou a terceira manifestação em cerca de 10 dias contra o aumento da tarifa dos ônibus, trens e metrôs, no centro de São Paulo, mais precisamente nas esquinas das avenidas Ipiranga e São João. E por ali mesmo ficou.

Depois de cortes em avenidas importantes das zonas leste e sul na manhã e um escracho ao governador Alckmin em evento que apresentava novas catracas da linha 4 do metrô, um impressionante aparato repressivo foi disponibilizado pela Polícia Militar, que em mais um capítulo digno de entrar para a história do autoritarismo do Estado brasileiro e suas versões locais simplesmente vetou a marcha.

Diante de poucas centenas de manifestantes, menor número das três convocações, e notória ausência dos grupos ligados a PSOL, PC do B e UNE, totalmente tragados pelo julgamento de Lula, a PM não teve dificuldades em cercar os presentes por todos os lados e barrar o protesto.

Ademais, sente-se cada vez mais à vontade para inventar restrições e exigências que jamais poderiam se colocar à mesa caso desfrutássemos de direitos políticos e democráticos reais.

Ontem, além de exigir uma definição do trajeto, afirmou que as bandeiras dos grupos ali presentes não poderiam ter mastro, algo impensável na tradição de qualquer protesto social.

“A Polícia Militar de SP alegou que a manifestação não poderia sair enquanto as bandeiras vermelhas não fossem retiradas de seus bastões e as pessoas mascaradas mostrassem seus rostos. Enquanto isso, o batalhão do choque permanecia mascarado e com seus bastões de prontidão pra reprimir os manifestantes que estavam em um número três vezes menor, comparado ao contingente policial”, protestou o MPL em nota.

De modo quase teatral, um dos responsáveis pela operação dialogou duas ou três vezes com representantes do protesto, em tom absolutamente cordial, para comunicar que ou se aceitava a proposta de trajeto da polícia ou nada feito. Uma cordialidade armada até o pescoço, que deveria causar repugnância em quem se considera defensor de estados democráticos de direito e outras platitudes.

Não é preciso fazer grande esforço de memória para dar conta de que se as manifestações são dos grupos política e socialmente dominantes, tanto à esquerda como à direita, nenhum desses obstáculos se interpõe e até catraca livre rola solta.

Isolados, inclusive pelas esquerdas que até hoje parecem ressentidas com o protagonismo fora de suas hostes das jornadas de junho, o movimento e seus entusiastas são progressivamente vencidos nesta jornada pelo cansaço, difamação e, claro, muita intimidação.



Blindagem contínua

Sobre 2013, o que podemos apontar é que as instituições, ainda mais dominadas pelos monopólios econômicos e oligarquias incrustadas no Estado, continuam a promover sua “restauração” após o terremoto social daquele ano.

Desde normas e regulamentos até o armamento das polícias e colaboração do poder judiciário aos interesses ainda dominantes na desmoralizada política parlamentar (como se viu na rápida cassação pelo TJ-SP da liminar que suspendia o leilão das linhas 5 e 17 do metrô), vê-se uma blindagem incessante promovida pela classe política. Antes, ela se justificou pelos megaeventos esportivos, mas agora continua em marcha, como resposta prática a uma crise econômica e social que se estende a perder de vista.

Já o prefeito da cidade, de fato não é um político. Está mais para agente de negócios. Além de ignorar completamente as reivindicações, dirige a cidade como se fosse sua própria empresa, isto é, toma decisões (ou acata aquelas oriundas do poder econômico) sem consultar absolutamente nada nem ninguém e dedica seu mandato a promover o setor privado, que tanto cultua.

E não está difícil. Afinal, voltando às tais esquerdas, que se dizem inimigas do modelo neoliberal de cidade, pouco fazem do alto de seus aparatos políticos de maior alcance. Simplesmente, abandonam à própria sorte lutas que confrontam os monopólios e cartéis, a exemplo do transporte, cujos serviços causam rebeldia também em setores da população sem vínculos com movimentos organizados.

Chafurda de modo até patético na narrativa vitimista, traiçoeira e chantagista do PT e seu séquito cada dia mais despolitizado e fanatizado por slogans e propagandas sem lastro na realidade.

Acredita que defender “o direito de Lula participar de eleições” num país completamente espoliado em seus direitos lhe dará a tão propalada inserção nas massas, no colo, como se fosse um espólio do pós-PT, que cedo ou tarde se daria.

Perde a chance de se emparceirar com jovens e aguerridos militantes e dialogar com uma pauta realíssima de uma cidade cujo cotidiano tanto mói seus habitantes. Quer ser popular, mas não entra a sério na discussão do transporte público num lugar com as características de São Paulo, onde é comum pessoas perderem horas por dia dentro de um vagão ou ônibus.

Aparentemente, prefere agradar velhos companheiros de sonhos já atirados na lata de lixo da governabilidade da dita conciliação de classes. Aceita intimidação e toda sorte de má fé difamatória de grupelhos instalados no petismo muito mais por interesses particularistas do que qualquer outro prurido democrático ou popular.

Isso mesmo que o PT vote em nomes do DEM e do PSDB, não do PSOL, para a presidência de câmaras municipais e assembleias legislativas, para dar um exemplo bem prático e recente. Ou que suas centrais sindicais deixem duas greves no balcão do “golpista” Michel Temer, para depois se apresentar como vítima de uma “herança maldita” num eventual terceiro mandato do ex-metalúrgico.

Pois “unidade” só se for em torno da figura que já atinge status metafísico, ainda que esta já evidencie que não trabalhará para derrubar as reformas antissociais do governo mais detestado pela população desde o fim da ditadura militar. Na verdade, desmobilizou um movimento que tocou milhares de pessoas e poderia, logo no fim de 2016, afastar o ex-vice do cargo máximo da República.

Terrorismo de Estado

Voltando à frustrada manifestação e a operação policial que não a deixou dar um passo, vale mencionar ainda a prisão de quatro pessoas, logo no início da concentração, que, segundo o MPL, ficaram rodando sem rumo dentro de viatura policial. O típico expediente de tortura psicológica e terrorismo de Estado que os cantos menos iluminados da cidade tão bem conhecem. Como tem sido praxe, foram logo liberados do 3º DP, na avenida Rio Branco, pouco depois da dispersão (com as bombas e aparato de guerra de praxe).

“Ainda durante a concentração, quatro pessoas foram detidas para a averiguação e só apareceram após uma hora na 3ª DP – que fica a quatro quadras da concentração do ato! Quatro horas depois, foram liberados sem nenhuma acusação. A prática das prisões para averiguação é a ferramenta mais arbitrária da polícia, utilizada para o controle da população sem qualquer flagrante ou motivo (o que é totalmente ilegal). Poderíamos chamar isso de sequestro do Estado!”, relatou o MPL.



No dia seguinte, enquanto este texto é finalizado, o Brasil fica vidrado no modorrento julgamento de Lula no TRF-4 de Porto Alegre, como desdobramento da Operação Lava Jato. Quase ninguém demonstra preocupação com o arbítrio total da terça-feira. Alega-se, pobremente, que tal julgamento pode marcar uma guinada autoritária das instituições. “Como se precisasse”, pensam aqueles que lembram dos 40% de encarcerados do país sem processo jurídico e da tradição dos dois pesos e duas medidas do sistema de justiça.

Ignorando todo o aparelhamento notoriamente corrupto que os governos petistas deixaram grassar na Petrobrás (e também Eletrobrás), dizem que “eleição sem Lula é fraude”. Como se eleições com Lula, Carta aos Brasileiros e possibilidades de vitória determinadas pelos monopólios empresariais que financiaram campanhas ao longo das décadas fosse algo legítimo e socialmente aceito.

Ignoram também que o partido do ex-presidente têm vínculos inequívocos com os representantes de diversos carteis econômicos, como dos próprios ônibus em São Paulo, cujos empresários são absolutamente desconhecidos da população.

“Essa é só mais uma maneira de governantes e seus parceiros empresários criminalizarem e atacarem qualquer ação de revolta e repúdio à tarifa abusiva que só explora ainda mais a vida da população que precisa se locomover pela cidade”, criticou o MPL, ainda sobre esta terça-feira.

Entre os que desejam a tarifa zero e esse empresariado sem nome, está claro de que lado uma suposta esquerda está. O estado democrático é de mercado e lhes agradece.

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- fotorreportagem da Ponte Jornalismo


Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.

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