Nicarágua conflagrada: entrevista com Mónica Baltodano
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- 07/06/2018
A Nicarágua vive uma situação de conflagração, caos e violência de Estado. Desde abril, quando começaram os novos e massivos protestos contra a reforma da Previdência Social, já foi contada mais de uma centena de mortos, decorrente de uma repressão policial brutal e sem precedentes, a mando do governo de Daniel Ortega.
Até o Papa Francisco, em 22 de abril passado, quando apenas começavam as mortes, veio a público pedir paz e expressar sua preocupação com a situação do país centro-americano. Como veremos nesta entrevista de Mónica Baltodano, guerrilheira, política e revolucionária nicaraguense - para o Informationsbüro Nicarágua e traduzida para o português pelo Correio da Cidadania –, a atual “convulsão social” (em suas palavras) que vive a Nicarágua não começou em abril.
De acordo com a ex-comandante guerrilheira da Frente Sandinista de Liberação Nacional (FSLN), hoje uma opositora radical ao regime Ortega-Murillo, o governo conseguiu a antipatia de toda a população trabalhadora por representar – apesar do discurso esquerdista – os interesses dos endinheirados. De camponeses a operários, de estudantes a aposentados, e sobretudo os trabalhadores informais que compõem 70% da força de trabalho do país, todos em algum momento recente saíram às ruas contra medidas do governo.
Mónica Baltodano participou de maneira destacada durante a etapa insurrecional na ofensiva final de 1978-1979 contra a ditadura somozista na Nicarágua. Fundadora do dissidente Movimento de Resgate do Sandinismo (MRS), foi deputada no período entre 2007 e 2011 na Assembleia Nacional da Nicarágua.
Nesta entrevista, que pode ser lida a seguir, Baltodano não esconde sua revolta com o atual governo e em como este contribuiu com o esvaziamento do sandinismo. Ela lamenta que a bandeira rubro-negra dos sandinistas tenha se transformado em um símbolo malquisto por boa parte da classe trabalhadora do país. Em tempo, de forma dinâmica, também faz uma análise sóbria dos últimos acontecimentos de seu país.
Mónica Baltodano. Créditos: Rel-UiTA
Informationsburo: A reforma da Previdência, por si só, foi a gota que fez explodir a crítica e os protestos dos últimos anos e contra outros problemas recentes como por exemplo o incêndio na reserva Índio-Maiz?
Mónica Baltodano: A reforma foi a faísca que acendeu a mecha do coquetel molotov, lançado sobre uma paisagem que já vinha ressecando há anos:
a) Pela falta de liberdade de expressão e mobilização, pois cada tentativa de manifestação foi objeto de repressão por parte das tropas de choque da polícia.
b) Porque as pessoas sabem que foram cometidas fraudes eleitorais de forma sistemática, afastando qualquer tentativa de construir forças de oposição, de qualquer signo, em particular de signo sandinista. Só permitem as forças “zancudas”, ou seja, as que fazem o jogo para aparentar democracia (o termo “zancudo” foi cunhado na luta contra Somoza, ainda nos anos 80, para os conservadores que faziam o jogo daquele governo).
c) Porque a justiça está totalmente controlada. Até os juízes mais sensatos passam por um crivo partidário.
d) Porque a corrupção não é castigada. O caso mais emblemático é o de Roberto Rivas, magnata com mansões na Espanha e Costa Rica, jet privado, a quem os Estados Unidos aplicou a Lei Global Magnitsky. O governo em vez de quitá-lo da presidência do Conselho Supremo Eleitoral, o manteve no cargo com privilégios e imunidade. Isso não foi visto com bons olhos por ninguém, nem pelos próprios orteguistas (*1).
e) Porque crimes absolutamente repudiáveis como o cometido na Comunidade de San Pablo, em La Cruz de Río Grande, onde o exército executou (assassinato extrajudicial) 6 pessoas, entre eles dois menores (um menino de 12 anos e uma menina de 15, a segunda inclusive foi violentada) ficaram em total impunidade. Nem sequer integra-se uma comissão de investigação que faça ao menos o teatro, como fazia Somoza. Os assassinados eram declaradamente contra o governo, que justificou suas mortes acusando-os de delinquentes (*2).
f) Porque na Nicarágua as organizações de mulheres, ambientalistas, de direitos humanos e outras são submetidas ao assédio e pressão por parte das instituições do Estado. As organizações de direitos humanos independentes sequem são deixadas ver os presos... E há presos políticos aos montes encarcerados sob falsas acusações de ditos crimes comuns, como no caso de Marvin Vargas, coordenador dos “Cachorros de Sandino”, que já está preso faz 7 anos. As organizações de mulheres sentem duas vezes, não só a pressão pela cooperação, que financiavam albergues para mulheres maltratadas e que tiveram de fechar, como também políticas governamentais assentadas em critérios religiosos, violentando o principio de laicidade do Estado. Também fecharam as Delegacias da Mulher, instrumento fundamental para a defesa de mulheres vítimas de violência.
g) Os estudantes se cansaram de que não ter liberdade de organização nas universidades, pois os reitores e muitos professores atuam como oficiais de polícia política para o governo. A Autonomia Universitária não existe. Todas as autonomias foram suprimidas, incluindo a municipal, a das regiões autônomas.
h) Porque o governo instalou como norma o Secretismo e não tem nenhuma interlocução com a sociedade. Somente fala com seus aliados (o grande capital) e com subordinados (a própria força), e se mantém em uma humilhante posição de dependência ou medo. Nem as próprias forças têm direito à palavra. Só Ortega e sua porta-voz, Rosario Murillo, podem falar e dar declarações. Não sei como aguentam lidar com esta humilhante situação os outrora combatentes heroicos (homens e mulheres).
i) Não existe liberdade de expressão. Os meios de comunicação, incluindo os do FSLN, foram quase todos privatizados a favor do regime. A maioria dos canais de televisão faz parte de um duopólio: ou são filhos do casal presidencial ou são do seu sócio, o empresário mexicano Juan Ángel González, e só transmitem novelas e enlatados.
j) Pelas repetidas mostras de intolerância: são tão intolerantes que se negam a felicitar Sergio Ramírez, que honra toda a região com seu prêmio Cervantes, para não mencionar a perseguição política contra o poeta e padre Ernesto Cardenal.
k) Porque o governo entregou o país através da Lei 840 (para concessão de canal) e outras concessões como minérios, florestas, oceano. Todas as iniciativas de discutir sobre a conveniência ou não destas concessões foram rechaçadas Eles dirigem o país sem escutar ninguém, nem os seus próprios sócios.
l) O povo apenas reparte migalhas através de programas assistenciais que não dão real dignidade e não tiram pessoas da pobreza. E ainda por cima jogam na mídia índices positivos de crescimento macroeconômico, sendo que o que cresceu foram as fortunas dos banqueiros, com as taxas de utilidade mais altas da região, suas próprias fortunas e a concentração da riqueza em poucas mãos. A Nicarágua continua sendo o país mais pobre da América Latina depois do Haiti. Os mesmos programas sociais vão sendo fechados porque eram artificialmente mantidos com parte da ajuda venezuelana, que entrava nas arcas da família presidencial sem nenhum tipo de controle. Ou seja, a diminuição da pobreza que tanto pregaram não é sustentável, porque não foi baseada em uma mudança estrutural, nem em reformas no sistema tributário.
Como vês, a lista é grande, e poderíamos superar o alfabeto.
Agora, como se construiu esta verdadeira convulsão social? Como se enlaçaram os eventos?
O ambiente começou a ficar tenso claramente faz quatro anos, com a Lei Canalera (840). E com o advento dessa lei, para enfrentar os perigos que afetariam diretamente milhares de famílias camponesas que tinham de ser desalojadas, construiu-se o movimento camponês mais forte que se pôde organizar nos últimos 20 anos. O movimento realizou quase 100 marchas. Todas foram reprimidas e as tentativas de marchas para Managua, impedidas brutalmente. Chegaram ao ápice de quebrar o chão das rotas com guindastes para que nenhum veículo pudesse transitar.
Neste contexto se realizaram eleições nacionais e logo as municipais. Ambas fraudulentas. Nas primeiras, Ortega se reelegeu com 70% de votos para ter uma Assembleia totalmente controlada e reformar a Constituição à sua maneira. Nas segundas, conseguiu o controle total dos municípios. Os protestos contra a fraude foram reprimidos e contabilizou-se uma dezena de mortos.
Em novembro de 2017 houve a chacina de La Cruz de Rio Grande, que já mencionei. Eu vi na marcha do dia dos Direitos Humanos (1o de dezembro), gente que nunca havia visto e que diziam que já não podiam tolerar mais. Ou seja, gente que marchava desgostosa com essa matança, e pelo cinismo do governo – que nem sequer deu as caras, menos ainda explicações. Na marcha do Dia Internacional da Mulher, participaram muito mais pessoas, mulheres e homens, desta vez motivadas pelo incremento dos feminicídios e a impunidade dos assassinos. De maneira subterrânea a raiva e o mal-estar foram também crescendo.
Quem foi para as ruas no princípio? Quem está protestando agora?
As mobilizações em torno do incêndio da reserva Indio-Maiz (3) foram protagonizadas por estudantes e militantes (não organizadas em nenhum partido), com um certo nível de consciência política, e por ambientalistas. A Reserva Biológica Indio-Maiz compreende 3180 quilômetros quadrados e é o lar de uma ampla variedade de animais e árvores. Já se havia denunciado a cumplicidade do governo com os colonos, gente que invade as reservas, ou as terras indígenas como as do Rio Coco. Grupos que aterrorizam as populações locais para tomar posse das terras. Há crimes denunciados e documentados diante da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. O governo, o poder judiciário, todos controlados pelo casal presidencial, não fizeram nada!
Nesta vez, diante do protesto dos estudantes por conta do incêndio, o governo montou uma contramarcha (grupos do governo e forças de choque) e militarizou a zona do incêndio, impedindo que jornalistas independentes e ONGs do Grupo Cocibolca (Fundação del Río y Popol Na) de irem até a região.
Dias depois, em um erro de cálculo, o governo impôs a Reforma do Sistema de Previdência Social e inconstitucionalmente elevou a quota patronal e a dos trabalhadores enquanto reduziu em 5% as aposentadorias. Mas já era público que os fundos da seguridade social foram usados em investimentos arriscados e que a instituição inflou valores e resultados. Havia incômodo pelas irregularidades na gestão da instituição. O anúncio foi sem discussão prévia. A decisão foi um balde de água fria. E foram os estudantes que voltaram a iniciar protestos quase de imediato.
Os estudantes desta vez com alguma presença dos aposentados foram objeto de brutal repressão, claramente dirigida a jornalistas e algumas lideranças mais visíveis, também em outras bandeiras como no movimento feminista. Grupos de choque armados com tubos os golpeavam sem misericórdia, enquanto tomavam suas câmeras e celulares. Tudo foi filmado e divulgado nas redes sociais. Esta repressão contra jornalistas afetou meios que haviam tido uma atitude moderada em relação ao governo, sem ruptura total, como o 100% Notícias e o Canal 23, dos Suárez. O Canal 12 e as emissoras locais foram tirados do ar. Estes fechamentos provocaram uma reação em novos setores, incluindo os da cúpula empresarial (COSEP) que nesta única vez haviam conseguido consenso com o governo.
Protesto de último sábado, 2 de junho, contra o presidente Ortega, em Masaya.
Créditos: Euronews em português
Uma violência sempre em ascensão?
Essa repressão rapidamente escalou o protesto a níveis até agora desconhecidos durante o governo Ortega-Murillo e se estendeu territorialmente, incorporando setores populares: aposentados, desempregados, trabalhadores autônomos, operários e principalmente estudantes e jovens das cidades. As marchas nos povoados mais distantes como Santo Domingo, Rancho Grande, Camoapa, Catarina, Niquinohomo – berço de Sandino –, foram totalmente pacíficas, porque a estas não alcançou a repressão policial. Em Niquinohomo cerca de mil manifestantes tiraram o pano rubro-negro da FSLN do monumento de Sandino e lhe puseram um pano azul e branco.
A multiplicação de focos de conflitos em León, Ocotal, Matagalpa, Masaya, Los Pueblos, Granada, Tipitapa, Estelí, Jinotepe, Diriamba etc. obrigou a polícia a reprimir diretamente. Os grupos de choque não resolviam a situação. Começaram os disparos de bombas de gás lacrimogêneo, balas de borracha e também balas de aço, de verdade.
Os estudantes da Universidade Agrária e de Engenharia depois de um par de dias foram desarticulados. A polícia penetrou nos sagrados locais (segundo a lei de autonomia universitária de 1958) e capturou dezenas. Mas não na UPOLI, universidade localizada entre bairros populares. Lá a população levantou barricadas para proteger centenas de estudantes que se refugiaram nas salas de aula e que mantiveram este lugar como um bastião de luta, até hoje.
A brutalidade da repressão foi incrementando. No segundo dia já havia mortos, no terceiro eram 15 e até agora estão fazendo a contagem, com nomes e sobrenomes de 30 jovens mortos e adolescentes assassinados, junto a dezenas de feridos e capturados. Outro fenômeno foi o da dificuldade do governo para massificar as contramarchas, porque parte da sua força não o está respaldando e rechaça a repressão. Mas é claro, é preciso ressaltar que as pessoas, para defenderem-se, rapidamente passaram das mobilizações para a construção de barricadas a fim de impedir a passagem da polícia e modalidades de protesto como a derrubada ou queima das emblemáticas “arvores da vida”, imensas estruturas metálicas, que fez proliferar Rosario Murillo, esposa de Daniel Ortega e espúria vice-presidenta.
Mas a maior parte dos que protestam são, como é lógico em um país onde a classe média é muito pequena, pessoas do povo trabalhador, artesãos, operários e trabalhadores informais – que é o maior contingente de trabalhadores na Nicarágua, cerca de 70% da força de trabalho. O interessante é que o movimento estudantil, que havia estado cooptado e controlado pelo governo, escapou de suas mãos e já podem ser ouvidos pronunciamentos conjuntos de estudantes reivindicando que as forças mobilizadas vêm de todas as tendências políticas. Há sandinistas, liberais, conservadores e a maioria, como sempre, sem partido.
É muito importante que as forças progressistas de esquerda, de centro-esquerda, e gente progressista de todas as partes entendam que nem Ortega é Chávez, e nem a Nicarágua é a Venezuela, e não deve ser feito uma tradução mecânica do movimento venezuelano contra Maduro e o que acontece hoje na Nicarágua. Aqui a direita econômica e política, o capital em uma só palavra, é quem governo junto a Ortega. É o Modelo de Aliança Publico Privada que aplaude a direita mundial, o FMI, o Banco Mundial e as grandes corporações e investidores do mercado financeiro.
Atualmente, 96% do PIB da Nicarágua vem do setor privado. Ou seja, o governo terminou de aniquilar o que restava da propriedade social, em forma estatal e de cooperativas, e assim deixou o país sem nenhuma riqueza pública.
Que não se engane a esquerda mundial com este governo. De esquerda, aliás, não sobrou nada. Por exemplo, as outrora impenetráveis relações entre as duas revoluções (Nicarágua e Cuba) são hoje para o governo Ortega-Murillo relações formais entre Estados amigos, limitadas à celebração de efemérides, saudações de aniversários e de baixo perfil protocolar.
Aqui a direita e o governo são a mesma coisa. Banqueiros e Ortega são a aliança que “governa” por mais de uma década. Aqui não há meios de comunicação “imperialistas”, pois assim não dizemos já que quase todos são de Ortega e seus sócios. Aqui a maior parte dos fundos estrangeiros são especialmente os que recebe o governo, por sua cumplicidade com a agenda de segurança de Trump, atropelando e reprimindo os imigrantes. As pessoas dos protestos estão se mexendo com seus próprios recursos, como ocorreu com o movimento camponês, que durante 4 anos se colocou em marcha.
Aqui tampouco há grandes partidos de direita liderando tudo isso. Porque o orteguismo governou com os partidos de direita tradicionais, e depois se viu reduzido, pois essa força assumiu a representação dos interesses dos setores endinheirados. Afinal, pra quê partidos de direita se é a direita que está no poder? Se banqueiros e empresários são os que legislam e governam o país? Aqui, os empresários têm sido e são os principais sócios do governo de Ortega. Governaram juntos, defendem Ortega. A eles, os milionários, não lhes preocupa que o governo se autoproclame de esquerda, socialista ou sandinista, sempre e quando lhes garanta a estabilidade dos seus mesquinhos interesses.
Quais são as principais reivindicações populares?
Já não se trata mais da previdência social, as pessoas querem que sejam destituídas as principais cabeças da polícia, que se restabeleça o princípio constitucional da livre mobilização e do direito ao protesto, que se reabram os meios de comunicação fechados, que se liberte mais de uma centena de presos. Que seja feita a justiça com os mortos e com os mutilados pelos conflitos. É claro que há aqueles que pensam que sendo o mandato de Ortega produto de uma fraude seria preciso desconhecê-lo como presidente e que o problema vai continuar enquanto não sejam convocadas eleições limpas.
Agora o governo conseguiu o decreto inconstitucional de reforma da previdência e compareceu com os donos de empresas de Zona Franca anunciando a abertura de um diálogo. Mas qual diálogo se o interlocutor que está propondo é seu sócio, são seus aliados do COSEP (organização patronal)? Logo passa a batata quente ao Cardeal Brenes e para a Conferência Episcopal. E desta forma trata de desconhecer os verdadeiros atores deste formidável movimento cidadão.
Por que esta reforma mobilizou os maiores protestos desde 2007?
O povo, e em particular a juventude, passou, em um só movimento, de uma exigência social para demandas de democracia e liberdades cidadãs e políticas. Foi resultado de um acúmulo de insatisfações que já mencionei, e da tremenda repressão que produziu jovens feridos, capturados e mortos, provocando tanta indignação que se perdeu o medo, e rapidamente se redescobriu o poder dos setores populares mobilizados.
Como disse Rosa Luxemburgo: “aquele que não se movimenta, não sente seus grilhões”.
Alguns me perguntam: “quem dirige?”. O anonimato do povo é quem dirige. De um povo sublevado que tem milhares de rostos. Aqui, hoje, e tomara que siga assim, não há dirigentes de partidos e nem caudilhos. Apenas o povo organizado. E para ilustrar devo contar o que vivemos na segunda-feira, dia 23 de abril deste ano.
Depois de quatro dias de protesto, o governo “concedeu” aos empresários o direito a fazer uma manifestação que não fosse reprimida. Olha que interessante! Portanto, os que ficaram apoiando esse protesto discutiram sobre ir ou não a uma marcha convocada pelo COSEP. Rapidamente a maioria disse que deveria ir, pois era importante transformar essa marcha em uma marcha popular, não na marcha do COSEP, já que percorreria o centro da capital Managua.
E o que aconteceu?
Mas os jovens, autoconvocados, de rostos anônimos, pressionaram para que a marcha fosse para a UPOLI (Universidade Politécnica), onde os estudantes, muitos deles adolescentes, haviam resistido valentemente já por 6 noites. O lugar da convocatória era o Metrocentro, a uma distância de 7 km da UPOLI. Parecia irrealizável levar a marcha até aquele lugar. Mas a juventude lançou suas convocatórias pelas redes sociais. “Todos para a UPOLI!”.
E assim foi: a maioria das pessoas chegou ao Metrocentro a pé, em carros, ônibus, motos. E seguiu caminhando sem parar até a rotatória, em direção à UPOLI, onde se formou um rio ingovernável de gente por 7km. Milhares de pessoas caminhando cada qual ao seu ritmo. Não me atrevo a dar uma cifra. Mas era uma marcha imensa, na qual quase a totalidade era composta por gente de Managua. Ninguém foi rebocado, não houve ônibus grátis. E ademais, simultaneamente, se realizaram marchas em León, Matagalpa, Ocotal, Masaya, Granada, Camoapa, Nueva Guinea, El Tule e outros municípios que agora não me lembro. Todas multitudinárias.
Nenhum governante sóbrio deveria desprezar esta potente expressão de cidadania. O chefe de polícia deveria já ter renunciado (morreram em mãos da polícia 28 pessoas em apenas 4 dias de protesto). Ortega deveria estar meditando sua renúncia. Mas quero dizer com a maior força possível: não estamos diante de gente que age com os bons valores da política. Não há racionalidade, nem razoabilidade. O poder e a riqueza os enlouqueceram, esse é o grande drama e perigo. O verdadeiro perigo de toda essa nação.
Legenda: Marcha para a UPOLI, 23 de abril de 2018. Crédito: Carlos Valle/HOY Foto
Como os afeta o nível de repressão da polícia e de paramilitares? Começou um novo nível de repressão que o governo pode vir a empregar?
Eu acredito que sim. Os níveis dependem do desenrolar dos acontecimentos. Os estudantes da UPOLI diziam que não sairiam sem garantia de suas vidas e de que não sofreriam represálias. Uma vez esgotada essa fase, se abrirão novas. Eu acredito que passaremos para a fase de organização, como dizia Rubén Darío, “dos vigores dispersos”, mas essa organização não será partidária. As pessoas não querem os partidos, não querem mais a política partidária porque a veem como equivocada. Por isso eu acredito que há um potencial de construção de movimento cidadão muito grande.
Alguns pensamos que é preciso restituir a subscrição popular, para que a cidadania possa ser representada nos municípios, nas regiões e no país sob formas não partidárias. A tendência do governo será, segundo o que já conhecemos, escalar a repressão. Forte, mas seletiva, encoberta. No descenso vamos experimentar a repressão dirigida. Temos de ser capazes de construir a solidariedade contra os que sofrem essa repressão. Isso é o mínimo que podemos esperar. Ainda que as pessoas queiram uma organização para tirar o poder deste casal presidencial, porque não aguentam mais.
Existem oportunidades de mudança que essas mobilizações podem abrir?
Claro que sim. Mas devemos ter claro que sempre os movimentos populares e mais ainda os espontâneos, se não conseguem um nível de organização e continuidade, tendem a ser disputados pelas forças políticas com propósitos eleitorais. Olhando os perigos para a vida, para a segurança de tanta gente, as diferentes forças que respaldam esse movimento devem depor interesses mesquinhos e trabalhar melhor no entorno de pontos mínimos que unam a todos os nicaraguenses. Uma agenda construída por nós mesmos, sem interferências externas. A política nicaraguense historicamente foi mediada pela ingerência, em especial dos estadunidenses. Os “políticos” historicamente disputaram o respaldo e a bendição dos gringos. Isso deve acabar, pois apenas males esta lógica deixou para a Nicarágua. Devemos ser capazes de desenhar nosso próprio país sem intervenções. Mas nem todos pensam assim.
Por isso é importante lutar junto com o povo e apostar que os resultados não sejam mais do mesmo: mais capitalismo, mais entreguismo e extrativismo, que acaba com os recursos e depreda a natureza. Que Nicarágua não seja o reino dos capitais estrangeiros, que seja para os nicaraguenses. Que sejamos capazes de construir uma massa crítica que não se conforme apenas com que se mudem as caras do governo, senão que se abram possibilidades de um modelo distinto de sociedade. É uma farsa que o progresso só seja possível com o mercado e o capital.
É possível que haja mudanças à esquerda?
Na Nicarágua a palavra está desprestigiada desde que Ortega e seus servos se autoqualificam como “esquerda, anti-imperialistas e revolucionários”. Lamentavelmente também o termo “sandinista” está por baixo pelo mesmo motivo. Por isso há jovens que queimaram a bandeira rubro-negra. Não porque não reconheçam Sandino, ou a heroica luta sandinista dos 60 e 70.
Para nós que desde a nossa adolescência estamos lutando sob os princípios, valores e programa do sandinismo de Carlos Fonseca não deixa de ser doloroso. Mas temos de entender que estes jovens identificam essa bandeira com o governo que abominam. Haverá um tempo de resgatar a integralidade de Sandino e de Carlos Fonseca, de fazer a leitura correta do seu ideário.
Já há muitos que entendem que para o orteguismo, o sandinismo terminou sendo só um nome para enganar uma parte do povo, uma bandeira eleitoral esvaziada de conteúdo real de mudança. Temos de resgatar a bandeira rubro-negra. A autêntica, a de Sandino, não para nenhuma outra força política partidária, mas para a nação inteira, já que Sandino é um dos símbolos mais importantes de nossa identidade. Enquanto isso, milhares de sandinistas, de distintas gerações, alguns já bem “velhinhos”, acompanham de distintas trincheiras estas lutas que nos enchem de esperança. Foi cumprido o sonho do padre Fernando Cardenal. “Eu sonho com o dia em que os jovens voltem para as ruas para fazer História”.
Notas:
*1: https://www.laprensa.com.ni/2017/12/22/politica/2350350-sancion-de-estados-unidos-aisla-a-roberto-rivas-presidente-del-cse
*2: https://www.laprensa.com.ni/2017/11/12/departamentales/2329642-enfrentamientos-muertos-la-cruz-de-rio-grande
*3: https://www.elnuevodiario.com.ni/nacionales/460801-ejercito-nicaragua-frena-avance-fuego-zona-sur-ind/
Entrevista feita pelo site Informationsbüro Nicaragua.
Publicada em espanhol por Ernesto Herrera (Correspondência latino-americana da revista francesa LÉncontre).
Traduzida para o português por Raphael Sanz, jornalista do Correio da Cidadania.