Três décadas de inoperância que podem custar a civilização
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- Alexandre Araújo Costa
- 20/07/2018
James Hansen, um dos pioneiros dos estudos de mudanças climáticas, prestando depoimento ao Congresso dos EUA há 30 anos. De lá para cá, as condições se agravaram de maneira bastante acelerada.
Há exatos 30 anos, em 23 de junho de 1988, um dos principais cientistas da NASA, o Dr. James Hansen, era chamado a depor no Congresso dos EUA sobre a questão climática. Anos mais tarde, numa palestra, diante de uma plateia surpreendida por um slide em que ele mostrava uma foto sua, algemado diante da Casa Branca num protesto promovido por entidades ambientalistas, ele proferia a frase que dá nome ao nosso blog (link ao final). Sim, ele acreditava que se as pessoas soubessem da gravidade da questão climática elas iriam se mobilizar com todas as suas forças, indo às ruas, pressionando governos e parlamentos, passando por cima até mesmo da possibilidade de serem presas.
Os avisos vinham de muito antes
A realidade é que se sabia da tendência ao aquecimento do sistema climático provocado pela queima de combustíveis fósseis muito antes desse depoimento histórico. Em 1896, o cientista Svent Arrhenius, com a física conhecida na época estimou que uma duplicação na concentração atmosférica de CO₂ seria suficiente para elevar a temperatura do planeta em vários graus e publicou seus resultados num artigo intitulado "On the Influence of Carbonic Acid in the Air Upon the Temperature of the Ground" e disponível neste link.
Há 80 anos, Guy Callendar já mostrava que o planeta estava aquecendo, como esperado em função das emissões de CO₂ da queima de combustíveis fósseis.
Pouco mais de quatro décadas se passaram e as previsões de Arrhenius deixavam de ser teóricas para encontras as primeiras evidências práticas. Em 1938, foi a vez de Guy Callendar apresentar as primeiras evidências observacionais do aquecimento global a partir da análise dos dados das estações meteorológicas de superfície coletados desde 1880.
Callendar chegou inclusive a estimar a efetiva contribuição antrópica para o aquecimento observado, separando-a da variabilidade climática natural, apesar de, naquele momento, subestimar não apenas os efeitos desse aquecimento, mas o próprio ritmo, nas décadas seguintes, da acumulação de CO₂ na atmosfera e, por conseguinte, de seus impactos sobre o Sistema Terra. No dia 16 de fevereiro deste ano, completamos 80 anos do trabalho de Callendar. 80 anos!
A famosa "Curva de Keeling", em homenagem ao cientista Charles David Keeling, que iniciou as pesquisas em Mauna Loa, que produzem um registro de medições de dióxido de carbono que já completa 60 anos.
As suspeitas de que estávamos de fato avançando com um experimento inadvertido e perigoso com o clima do planeta aumentaram quando a partir de 1958 medições da concentração atmosférica de CO₂ passaram a ser feitas operacionalmente no observatório de Mauna Loa. Os dados coletados desde então permitiram à comunidade científica verificar a elevação, ano a ano, dos níveis desse importante gás de efeito estufa que, por conta das gigantescas emissões humanas, acumula-se perigosamente na atmosfera terrestre. A elevação dessa concentração, que hoje domina completamente o ciclo anual associado ao crescimento e decaimento da folhagem da vegetação do hemisfério norte, é mostrada num gráfico muito famoso hoje em dia, a chamada Curva de Keeling.
A indústria de combustíveis fósseis estava atenta. E criminosamente escondeu o que sabia
Desde antes das medições de Mauna Loa, havia consciência por parte de cientistas ligados à antecessora da ExxonMobil, a Humble Oil, do potencial que o uso intensivo de combustíveis fósseis teria em contribuir para a elevação das concentrações de CO₂ e a indústria, que já era obrigada a controlar outros poluentes (como óxidos de enxofre e material particulado) estava antenada para a possibilidade de algum tipo de controle sobre as emissões de gases de efeito estufa aparecer. Há 60 anos!
Relatório produzido pelo Instituto de Pesquisa de Stanford em 1968 por encomenda da própria indústria de combustíveis fósseis já dizia que "não parece haver dúvidas de que o dano potencial [do CO₂] ao ambiente pode ser severo".
A prova de que especialmente a indústria petroquímica dos EUA estava de fato atenta à questão do possível efeito climático planetário de sua atividade está no fato de que em 1968 o Instituto Americano do Petróleo solicitou ao Instituto de Pesquisa de Stanford (Stanford Research Institute, SRI) a elaboração de um relatório para responder se de fato a exploração de petróleo e outras fontes de energia fósseis representaria uma ameaça à estabilidade do clima do planeta. Claro, em se confirmando essa "suspeita", a indústria petroquímica estava ciente de que mais cedo ou mais tarde regulações dessas emissões estariam sendo debatidas e possivelmente implementadas, afetando seus negócios.
O relatório, que só veio a público recentemente, é bastante taxativo sobre vários pontos. Afirma que "se a temperatura da Terra crescer significativamente, vários eventos são esperados, incluindo o derretimento do manto de gelo da Antártica, a elevação do nível do mar, o aquecimento dos oceanos e um aumento na fotossíntese", que "a humanidade agora está envolvida num vasto experimento geofísico com seu ambiente, a Terra", e que "mudanças significativas de temperatura quase certamente ocorrerão por volta do ano 2000 e estas poderão trazer consigo mudanças no clima".
Sobre a "dúvida" levantada pela indústria fóssil, o Instituto de Stanford responde que "os poluentes abundantes que geralmente ignoramos por terem pequeno efeito local, CO₂ e partículas submicrométricas podem ser a causa de sérias mudanças na escala planetária", que apesar das incertezas "não parece haver dúvidas de que o dano potencial ao ambiente pode ser severo". Há 50 anos!
Projeções de temperatura para o século 21 feitas por James Black, cientista da Exxon, e apresentadas em 1978 para seus superiores, sugerindo um aquecimento global de no mínimo 1°C ao final do século 20 e de no mínimo 1,5°C em meados do século 21. A indústria petroquímica sabia de tudo!
Uma década depois, estudos feitos internamente à Exxon, com recursos computacionais significativos para a época, trouxeram informações ainda mais sólidas sobre a dimensão do risco climático. Ao ponto de no dia 6 de junho de 1978, o cientista J. F. Black, da própria companhia, emitir um memorando aos seus superiores em que ele indicava o risco de um aumento de 1 a 3°C na média temperatura planetária em caso de duplicação do CO₂ atmosférico, mas com risco de esse valor, nos polos, chegar a algo como 10°C.
As conclusões do memorando falavam de uma "janela de 5 a 10 anos" para se coletar a informação necessária acerca desses riscos e adotar medidas coerentemente. Essa janela obviamente se encerrava em 1988, ano em que James Hansen depôs no Congresso dos EUA e em que o IPCC foi fundado.
O trabalho de J. F. Black chegava a analisar o efeito da acumulação antrópica de CO₂ na "escala interglacial", fazendo com que a temperatura quase certamente ultrapassasse o intervalo em que ela havia se mantido por pelo menos 150 mil anos (que eram os dados paleoclimáticos disponíveis na época).
Black apresenta, em anexo ao memorando, uma série de gráficos que impressionam. A projeção dele apontava para um aquecimento em torno de 1-2°C após o ano 2000 (em 2016 chegamos a 1,2°C de anomalia de temperatura em relação ao período pré-industrial) e um valor certamente acima de 1,5°C (mais provável em torno de 3°C) em meados deste século.
O trabalho apresenta aspectos da ciência bastante completos, incluindo a tendência de resfriamento da estratosfera (porção superior da atmosfera) acompanhando o aquecimento da troposfera (sua porção inferior) e a quase certeza de que o aquecimento atual iria ultrapassar os limites do interglacial anterior. Há 40 anos! Como sabemos, o que a Exxon fez a partir disso? Encerrou o programa de pesquisas em clima, engavetou tudo e passou a financiar grupos negacionistas, tendo transferido para eles mais de 30 milhões de dólares.
As projeções de Hansen se confirmam
Projeções de modelos usados por James Hansen em 1988, comparadas com observações. Essencialmente as projeções se confirmaram. O que é mais grave é que na realidade nada foi feito para resolver o problema, pelo contrário.
O testemunho prestado por James Hansen diante do Congresso Nacional era baseado tanto no que havia de mais avançado na época em termos de observações quanto nos progressos acelerados dos recursos de modelagem computacional, disponíveis na NASA. Colocando as projeções de Hansen num gráfico com as observações destes últimos 30 anos constatamos que o que ele considerava o "cenário mais plausível" (Scenario B) apresenta temperaturas apenas ligeiramente acima daquelas que estamos experienciando neste final de década.
Hoje os modelos são mais avançados, incluindo um conjunto de processos físicos e biogeoquímicos que não estavam disponíveis para os modelos usados naquela época. Ao mesmo tempo, os recursos computacionais de memória e processamento avançaram exponencialmente e hoje a resolução espacial horizontal e vertical dos modelos é mais fina, permitindo uma melhor representação de diversos processos (embora fenômenos de escala menor do que dezenas de quilômetros como a formação de nuvens individuais permaneça tendo de ser "parametrizada"). No entanto, aparentemente os modelos mais simples, de 30 anos atrás, já eram capazes de capturar a tendência geral das mudanças climáticas e fazer projeções bastante confiáveis.
Os negacionistas, de maneira inaceitável, seguem desdenhando dos modelos climáticos. Nada mais falso. Quem os conhece por dentro sabe do esforço concentrado da comunidade científica em assegurar que eles representem adequadamente o conjunto dos processos físicos e biogeoquímicos que regem o sistema climático terrestre e dos avanços nestas três décadas. Mais do que isso, trabalhando com modelos, fazemos incansavelmente testes desses modelos com situações para as quais há observações a fim de validá-los. Sim, os modelos funcionam!
Projeções de temperatura para diversos cenários até 2300. O número indica a quantidade de modelos que simularam cada cenário em cada período (certas simulações vão só até 2100). Fonte: IPCC AR5
Ora, se as evidências são de que eles já eram confiáveis há 30 anos, o que dizer dos dias de hoje? Não há nenhum cabimento em duvidar das projeções climáticas apresentadas nos relatórios da comunidade científica de clima, considerando a margem de incerteza que os próprios cientistas mostram! Ademais, a alternativa a simular o clima futuro com modelos é a tragédia que estamos assistindo. Ou seja, um experimento prático, real, com o único planeta que temos. Nas Terras simuladas em computador, eu não tenho nenhum problema em duplicar ou quadruplicar a concentração de CO₂, em desmatar por completo a Amazônia etc. Mas todas essas simulações apenas apontam o desastre que é repetir isso no mundo real.
Com efeito, como indicado no gráfico, o próprio relatório do IPCC coloca que, em relação ao período de referência de 1986 a 2005, as temperaturas devem subir, no intervalo de confiança de 90%, a depender do cenário, de 0.3°C a 1.7°C (RCP2.6, forte mitigação e remoção de carbono), 1.1°C a 2.6°C (RCP4.5), 1.4°C a 3.1°C (RCP6.0) ou 2.6°C a 4.8°C (RCP8.5, cenário sem mitigação). Lembrando que as temperaturas do período de referência já são cerca de 0,6°C acima dos valores pré-industriais.
A situação é muito mais grave hoje
Após 80 anos das evidências do aquecimento global mostradas por Callendar, 60 anos do início das medidas de Mauna Loa, 50 anos do relatório de Stanford, 40 anos do memorando de Black à direção da Exxon e 30 anos do depoimento de Hansen no Congresso dos Estados Unidos, em que pé estamos?
Há 30 anos, 79% da demanda energética era suprida a partir de fontes fósseis. Hoje, mais de 300 mil aerogeradores instalados depois, de possíveis 500 GW de capacidade solar fotovoltaica instalada ao final deste ano, sequer avançamos em termos relativos. Nada menos que 81% da energia, incluindo transportes, dos dias de hoje é obtida queimando petróleo, carvão ou gás. E isso é uma sentença de morte.
É algo que vai para além da sabotagem aberta da indústria fóssil, que escondeu o que ela sabia para financiar uma campanha orquestrada de negacionismo climático e com isso inviabilizou qualquer chance que por ventura houvesse de avanços, primeiro através do Protocolo de Kyoto e agora através do Acordo de Paris.
Sim, em ambos os casos o governo dos EUA atuou como um agente direto da indústria de combustíveis fósseis, com Bush não ratificando o primeiro e Trump retirando o país do segundo. Mas o buraco é mais embaixo. É sistêmico. Globalização, crescimento econômico, produção para consumo e descarte, obsolescência programada, tudo isso mais que anulou qualquer avanço que as renováveis possam ter trazido.
Como escrevi recentemente, o capitalismo declarou guerra ao Sistema Terra. Sua eterna lógica de expansão, que penetra inclusive em projetos políticos situados ideologicamente à esquerda, suas redes produtivas extremamente longas e em última instância globais, a cegueira imposta pelo lucro de curto prazo, a sua negação de valores coletivos e ecológicos o tornam incompatível com a solução da crise climática.
Poderíamos ter detido essa aeronave desgovernada se tivéssemos atuado há 50, 40 ou mesmo 30 anos atrás, certamente já com algum grau de dano, mas longe da irreversibilidade e em condições administráveis, num pouso razoavelmente suave. Hoje, provavelmente sem saldo nenhum restante para 1,5°C e com as forças do capital contando com captura de carbono para 2°C, é impossível falar de outra coisa que não um "pouso de emergência". E é preciso disputarmos o manche. Já.
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Alexandre Araujo Costa é cientista do clima.