Silêncios que matam
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- Raúl Zibechi
- 25/07/2018
Sem ética a esquerda não é nada. Nem o programa, nem os discursos, nem sequer as intenções têm o menor valor se não forem erguidas sobre o compromisso com a verdade e o respeito irrestrito às decisões explícitas ou implícitas dos setores populares, os quais diz representar.
Neste período em que todos os dirigentes da esquerda enchem a boca para ditar valores, acaba sendo muito significativo que fiquem apenas no discurso. A ética é posta à prova apenas em momentos em que temos algo a perder. O restante é retórica. Falar de ética ou de valores quando não existem riscos, materiais ou simbólicos, é um exercício oco.
Todos nos lembramos do gesto que o Che fez na Bolívia, quando em vez se manter a salvo retornou ao local de combate para resgatar um companheiro ferido, sabendo que era mais provável que perdesse a vida durante essa ação, sem nenhum sentido militar, mas com forte sentido ético.
Diante de nós, vemos a segunda oportunidade que a esquerda latino-americana tem de se redimir dos seus “erros” (entre aspas, pois abusa do termo para encobrir faltas mais graves), condenando os massacres que estão sendo perpetrados por Daniel Ortega e Rosário Murillo contra seu próprio povo. Digo a segunda, porque a primeira ocorreu duas décadas atrás, na denúncia de Zoilamérica Narváez, enteada de Ortega e filha de Murillo, de que o padrasto a abusava sexualmente.
O silêncio atual das principais figuras da esquerda política da região e da esquerda intelectual diz muito. Um extravio ético que anuncia os piores resultados políticos.
Culpar o imperialismo pelos próprios crimes é absurdo. Stalin justificou o assassinato dos seus principais camaradas porque, disse na época, faziam o jogo da direita e do imperialismo. Trotsky foi assassinado vilmente em 1940, quando suas ideias já não podiam mais oferecer nenhum perigo, de nenhum modo, ao poder de Stalin, que naqueles anos era visto como ‘bom’ pelas elites mundiais para que pudesse conter o nazismo. Como uma política dessa que se cala diante de tantos cadáveres e mentiras pode conquistar os corações dos jovens?
Como pôde José Mujica guardar silêncio durante tantos meses – enquanto na Nicarágua morriam centenas de jovens, e diante da carta aberta de Ernesto Cardenal – até pronunciar, enfim, alguma crítica a Ortega? Como podem alguns conotados intelectuais latino-americanos justificarem a matança com argumentos insustentáveis ou com um silêncio que os converte em culpados? O que os leva a pedir a liberdade de Lula sem perderem o sono com o governo da Nicarágua?
Neste período tão sombrio para o pensamento de esquerda – como aquele dos juízos de Moscou, que liquidou todo vestígio de liberdade na União Soviética – é necessário escavar até o fundo para encontrar explicações. Do meu modo de ver, a esquerda deixou de ser a força social e política que buscava uma mudança na sociedade para se resignar apenas como projeto de poder. Não um “poder para”, mas um poder a secas, do tipo que assegura a boa vida para a casta que o detém.
Foi através da luta pelo poder e a defesa deste que a esquerda se mimetizou com a direita. Hoje se argumenta com a luta contra o neoliberalismo como desculpa para não abrir fissuras no campo da esquerda, com a mesma leviandade que antes se argumentava a defesa da URSS ou de qualquer projeto revolucionário.
Poucos podem acreditar que em 1937 e 1938 houve um milhão e meio de russos aliados das potências ocidentais (todos membros do partido) – a cifra de condenados da grande purga de Stalin, dos quais quase 700 mil foram executados e o resto condenado a campos de trabalhos forçados. Se esse é o preço a pagar pelo socialismo, é preciso repensá-lo duas vezes.
Estamos diante de um período similar. Os progressismos e as esquerdas olham para outro lado quando Evo Morales decide não respeitar o resultado de um referendo convocado por ele mesmo, porque a absoluta maioria decidiu que ele não pode se candidatar a uma nova reeleição. Não querem aceitar que Rafael Correa é culpado de sequestro no “caso Balda”, executado pelos serviços de segurança criados em seu governo e supervisionados pelo presidente. A lista é muito longa e ainda inclui o governo de Nicolás Maduro e o de Ortega, entre outros.
O mais triste é que a história parece ter transcorrido em vão, já que não se extraem lições dos horrores do passado. Contudo, algum dia essa história cairá sobre nossas cabeças, e os filhos das vítimas, assim como os nossos próprios filhos, vão nos cobrar as contas, do mesmo modo que o fazem os jovens alemães que interrogam seus avós sobre o que fizeram ou deixaram de fazer durante os anos de nazismo, entrincheirados em um possível desconhecimento dos fatos.
Será tarde. São os momentos quentes da vida os que moldam atitudes e definem quem somos. Este é um desses momentos, que marcará o futuro ou a tumba de uma atitude de vida que há dois séculos definimos como ‘esquerda’.
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“Maior erro dos progressismos foi não ter tocado a riqueza; agora vemos avanço continental das direitas” – Entrevista com Raúl Zibechi.
Raúl Zibechi é jornalista e pensador uruguaio.
Artigo publicado em espanhol no semanário Brecha e no site Correspondencia de Prensa.
Traduzido por Raphael Sanz, para o Correio da Cidadania.