A intensa força das mulheres do deserto
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- Sayid Marcos Tenório
- 12/11/2018
Tive a oportunidade de visitar algumas vezes os acampamentos de refugiados saarauís em Tindouf, na Argélia, a convite da Frente Polisario. Em todas as cinco ocasiões em que visitei a região, impressionou-me muito a presença vigorosa das mulheres em tudo que se faz naquele deserto. Ouvi muitas narrativas sobre a luta contra o colonialismo espanhol, a guerra contra o ocupante marroquino, a estruturação dos acampamentos no deserto argelino e até como elas estão à frente do funcionamento de toda a vida no exílio.
Foi lá que pude perceber o quanto é essencial o papel daquelas mulheres na luta de resistência e pela conquista dos legítimos direitos à liberdade e a independência. Elas são um dos maiores símbolos da resistência do povo saaraui. É comum ouvir dos líderes e dos anciões que sem as mulheres, a luta não teria existido!
O papel das mulheres
É necessário entender as mulheres saarauís como um coletivo formado ao mesmo tempo por mulheres de origem berbere, de tradição beduína, africanas, árabes, de religião islâmica e refugiadas, vivendo sob a ocupação militar de um reino colonialista e que viola direitos humanos. Em um contexto com relevância geopolítica, religiosa, cultural e econômica, que cada um desses itens representa para a vida e as experiências dessas mulheres.
A presença da mulher saaraui antecede à fundação da Frente Polisario em 1973, quando o local ainda era uma colônia espanhola e desenvolviam uma guerra de guerrilhas contra o colonizador, aproveitando-se da vantagem do seu conhecimento do deserto. O objetivo estratégico era a independência nacional e a fundação do seu Estado próprio.
O discurso da Frente Polisario de chamamento das mulheres à luta tornou-se forte e conquistou adesões, porque pregava que elas eram e são agentes de transformação não apenas na luta de libertação nacional, como também na sua libertação como mulheres.
Quando a Espanha abandonou o Saara Ocidental e entregou seu território em mãos do Marrocos e Mauritânia, em 1975, e o rei Hassan II deu início à Marcha Verde para ocupar o território saaraui, a Frente Polisario deu início a um enfrentamento armado pela libertação do território ocupado, que durou 16 anos. A resistência mostrou-se eficaz e a Mauritânia optou por um acordo de paz e a retirada, ocasião que o Marrocos aproveitou para ocupar quase a totalidade do território.
Naqueles combates, os saarauís foram covardemente atacados pela aviação marroquina com bombas de napalm e de fósforo branco em suas cidades, o que obrigou o êxodo de milhares de homens, mulheres e crianças para se refugiarem no deserto, até que acabasse o conflito. Os ataques criminosos provocaram centenas de mortes, entre elas a da primeira vítima de uma morte injusta, a mártir saaraui Chaiaa Ahmed Zein, que se encontrava grávida.
Enquanto os homens lutavam no deserto contra a ocupação marroquina e da Mauritânia, as mulheres saarauis se encarregaram de construir e organizar os campos de refugiados no território cedido pela Argélia. Elas estavam presentes na vanguarda da luta revolucionária, mas também exerceram um forte papel na retaguarda, que garantiu a organização social e política dos acampamentos, fonte de sustentação do governo e do movimento de libertação no exílio.
A República Árabe Saharaui Democrática (RASD) nasceu em meio à guerra de libertação, articulada por comitês revolucionários formados com forte presença de mulheres. E na resistência contra a ocupação, nasceu também a União Nacional de Mulheres Saarauís, estruturada em Casas da Mulher, com uma sede em cada acampamento. A UNMS é uma organização feminista e de gênero, que atua dentro do esforço de união pelo direito à autodeterminação e para conscientizar e promover a presença e protagonismo das mulheres, a sua participação política, social, cultural e profissional na sociedade saaraui.
A UNMS propaga um discurso político eficiente e ao mesmo tempo complexo através do lema “Autodeterminação dos Povos, Autodeterminação das Mulheres”, numa dicotomia entre os direitos coletivos do povo saaraui e os direitos das mulheres, duas tarefas que ocorrem conjuntamente.
A escritora espanhola Dolores Juliano, em seu livro La causa saharaui y las mujeres (1990), afirma que “a participação massiva da mulher saaraui na sociedade, esta consideração e o respeito que goza dentro desta sociedade, não é nada nascido nos últimos anos, no que é a República Árabe Saaraui Democrática atual, mas é algo que trazem consigo na história do povo saaraui, a história da vida de nômades, em que a mulher era considerada, era respeitada e contribuía com a sociedade, como qualquer outro de seus membros”.
As saarauís são ativistas feministas que aproveitam qualquer oportunidade para expressar seu apoio e participação no movimento de resistência e para explicar aos visitantes como a ocupação rebaixa a vida do seu povo. Qualquer um que vá ao Saara ouvirá que os saarauís vivem naquelas condições porque o Marrocos nega sua dignidade, viola constantemente os direitos humanos e rouba suas riquezas naturais impedindo que seu povo possa usufruir delas.
As mulheres do deserto são vigorosas lutadoras pela paz, pelos direitos humanos e pela autodeterminação, conceitos pacificados na Carta das Nações Unidas, na Declaração Universal dos Direitos Humanos e em diversos tratados internacionais, cujos únicos dois membros da ONU que os desrespeitam vergonhosamente são Israel – que pratica apartheid genocida na Palestina – e o Reino do Marrocos.
Elas se destacam nos campos de refugiados, nos lares, na resistência diária nos territórios ocupados e também no cenário internacional como porta vozes do seu povo, denunciando os crimes do Marrocos, função que exercem com dignidade e profissionalismo, num contexto de guerra e de conflitos pela libertação da última colônia da África.
Uma sociedade à altura da modernidade
Esse engajamento nas esferas administrativa e política permite que as mulheres saarauís gozem de um estatuto político e jurídico muito avançado se comparado a outros países com condições econômicas e sociais semelhantes, bem como em relação a outros países de religião islâmica.
O Saara Ocidental como uma sociedade, é um exemplo vivo dentro do conjunto dos povos islâmicos, onde as mulheres sharauis realizaram um caminho muito coerente com uma cultura que é tão importante quanto a própria religião. No Saara o Islã é entendido e exercido como foi concebido em sua origem, ou seja, sem discriminação de gênero e com forte conteúdo político libertário e de enfrentamento às injustiças.
Entretanto, é comum interpretar essas mulheres e seu grupo como “bárbaros”, muito embora o feminismo decolonial tenha encontrado brechas para enxergar mulheres dos “outros”, como autônomas em sua própria constituição política e social. A colonialidade ocupou não apenas territórios, mas também corpos de suas mulheres, muitas vezes anexados pelas guerras. E é contra isso que essas mulheres resistem. A resistência faz parte do seu cotidiano estruturado entre a casa e a rua para usar uma categoria de Roberto Da Matta.
Tais condições desafiam o pensamento dominante no Ocidente sobre as mulheres muçulmanas, que segundo o senso comum difundido pela mídia, tratam-se de mulheres oprimidas e impotentes. As mulheres saarauís são a prova de que as mulheres árabe-muçulmanas não existem como um grupo homogêneo. E que os estereótipos difundidos pela mídia não são aplicados no Saara Ocidental.
As mulheres saarauís trabalham com afinco para obter avanços na organização da sociedade civil, especialmente a organização das mulheres, dos jovens e dos deficientes, cujos esforços merecem o máximo reconhecimento, uma vez que se trata de uma experiência desenvolvida no campo da democracia, igualdade e boa governança há mais de 43 anos, nas circunstâncias adversas do exílio no deserto.
Além de organizar os acampamentos por meio de comitês e subcomitês, as mulheres saarauís são as mais envolvidas e estão presentes em toda a vida social, econômica e política dos cinco campos de refugiados saarauís, onde se concentram mais de 200 mil pessoas em acampamentos desprovidos de infraestrutura adequada para enfrentar condições climáticas extremas, com fontes de água esparsas, num território impossível de se desenvolver agricultura ou pastoreio, e vivendo quase exclusivamente da ajuda humanitária internacional.
Elas são o motor de uma economia que se baseia na gestão exemplar da ajuda humanitária recebida pelos refugiados saarauís, bem como na promoção de pequenas iniciativas e autofinanciamento que permitem a autossuficiência, destinada a reavivar as economias das famílias.
Sob a direção de mulheres saarauís, os campos de refugiados foram transformados em núcleos urbanos organizados, limpos e solidários. São as mulheres saarauís que asseguram uma educação e convivência que permitem uma vida sem a incidência de chagas urbanas como a violência de gênero, machismo, abusos sexuais de crianças e adolescentes e sem idosos abandonados. Inspiradas pelo que se considerou chamar de feminismo islâmico, que se opõe neste caso ao eurocentrismo quase sempre racista/sexista. Essas mulheres se apropriam do conhecimento em defesa de seu território e de sua família.
Visitei vários acampamentos. Em Smara, convivi durante uma semana com uma família majoritariamente de mulheres. Falavam com naturalidade como o divórcio é encarado como algo normal na sociedade saaraui e até comemorado em festa pelas famílias, que permanecem amigas. E onde os filhos, em regra, ficam com a mãe e a sua família, exceto em casos específicos.
No saara não há nenhuma mulher encarcerada, ao contrário, as mulheres têm direitos iguais aos homens, de ir e vir. Os avanços da luta das mulheres saarauís ainda se depara com o poder dos colonizadores, que oprimem seu modo de vida, obrigando-as a encontrar novas formas de resistência.
Fortaleza política
A tradição saaraui, que ganhou relevância após o advento da Frente Polisario (1973) e a fundação da RASD (1976) foi muito positiva para as mulheres. Atualmente, um dos desafios mais interessantes da União Nacional das Mulheres do Saara (UNMS) é poder garantir legalmente a sobrevivência dessas tradições e desacreditar aquelas que impedem a emancipação das mulheres, como a forte pressão social sobre as mulheres grávidas não casadas e a necessária concessão de divórcio pelos homens.
As meninas saarauís frequentam a escola desde pequenas e quando terminam o ensino obrigatório, seguem seus estudos no exterior, principalmente em Cuba, Venezuela e Europa, onde cursam medicina, engenharia, direito, pedagogia etc. Muitas ficam nos países que se formaram, mas a maioria retorna ao Saara para aplicar seus conhecimentos nos campos de refugiados e servir ao seu povo. Quando perguntadas o que querem ser, respondem na lata: o que quiser!
Embora a maioria dos jovens se especializem no exterior, o Saara conta com centros de educação superior. A RASD está desenvolvendo projeto da sua primeira universidade, a Universidade de Tifariti, fundada em 2012 com a ajuda e solidariedade de numerosas universidades europeias, africanas e latino-americanas, que acolhe atualmente 450 alunos e funciona com quatro cursos: Enfermagem, Magistério, Informática e Jornalismo.
As saarauís estão à frente de várias organizações de resistência, entre elas a Associação de Familiares de Presos e Desaparecidos Saharauis (AFAPREDESA), que realiza marchas no deserto portando fotos de familiares e amigos desaparecidos, encarcerados e torturados pelo ocupante marroquino, para denunciar ao mundo a brutal repressão que sofrem as mulheres e homens nos territórios ocupados.
O Reino do Marrocos é responsável pela morte e desaparecimento de centenas de vítimas, incluindo dezenas de mulheres saarauís torturadas, perseguidas e presas, que continuam a ser o alvo principal da política de repressão marroquina nos territórios ocupados.
As mulheres presas pelo regime marroquino representam 25% do total dos desaparecidos saarauís, percentualmente o dobro das mulheres chilenas presas, que representam 12,6% do total de desaparecidos durante a ditadura do general Pinochet.
Embora algumas dessas violações tenham sido documentadas por organizações internacionais de direitos humanos, muitas outras continuam acontecendo longe do olhar internacional, devido ao bloqueio midiático e militar imposto para ocultar as violações massivas dos direitos humanos contra civis de todas as idades, incluindo mulheres, homens, crianças e idosos nos territórios ocupados.
Até mesmo no âmbito da ONU, a questão do respeito aos direitos humanos no Saara Ocidental é tratada com indiferença. A Missão das Nações Unidas para o Referendo do Saara Ocidental (MINURSO), criada em 1991 com o objetivo de realizar um referendo de autodeterminação, é a única Missão da ONU que não monitora violações dos direitos humanos, apesar das inúmeras recomendações ao Conselho de Segurança para estender as prerrogativas àquela Missão. A inércia para que a MINURSO monitore as violações dos direitos humanos tem deixado a população saaraui nos territórios ocupados vulnerável e desprotegida frente à brutalidade do regime feudal marroquino.
A última descolonização
A comunidade internacional está chamada a que não esqueça da última colônia da África. Que se inspire em suas mulheres lutadoras e pressione o Estado marroquino e a ONU, para que ponham fim às violações dos direitos humanos cometidas contra a população nos territórios ocupados do Saara Ocidental. Cada vez mais se faz necessário como pontua Herrera Flores (2009) uma interpretação das lutas pela dignidade que implique atitudes e aptidões que atravessem as diferentes formas de reagir, agir, intervir e ser no mundo.
Por isso, torna-se urgente o apoio internacional pela libertação de todos os presos políticos, bem como o fim do saque dos recursos naturais do povo saaraui e da eliminação do humilhante e vergonhoso muro marroquino que divide o povo saaraui nos seus 2720km de extensão, uma aberração que consome 2 milhões de dólares por dia, altamente militarizado e com mais de dez milhões de minas antipessoais, em toda sua extensão que, vez ou outra, provocam mortes entre os saarauis ou mesmo entre militantes internacionalistas que fazem periódicas marchas e manifestações contra a existência do muro.
A paciência do povo saaraui está se esgotando. Depois de mais de duas décadas desde o cessar fogo, a aplicação do Plano de Paz da ONU com a realização do Referendo de Autodeterminação, parece estar cada vez mais longe, devido às articulações e atitudes colonizadoras do Rei Mohamed VI do Marrocos, que põem em perigo uma solução pacífica do conflito. Situação que pode levar a um novo conflito militar cuja responsabilidade será do Marrocos e seus parceiros da França e Espanha, que o apoiam na escalada colonial e repressiva.
“Ainda existe um fio de esperança e a comunidade internacional tem plena capacidade de materializar uma solução justa e definitiva”, foi o que me disse o presidente da RASD, Brahim Ghali, numa entrevista que tivemos durante o Congresso da Frente Polisario que o elegeu com 94% dos votos em julho de 2016.
O Marrocos precisa aceitar uma solução pacífica para o conflito e pôr fim à ocupação do Saara Ocidental, antes que os jovens que cresceram nos acampamentos de refugiados e não sabem o que é uma vida livre – principalmente as jovens mulheres – cheguem à direção política da Frente Polisario e da RASD, porque já não poderão mais detê-los em seu sonho intenso por liberdade. Como bem pontua Herrera “os Direitos Humanos são produtos culturais e, portanto, não podem ser universais, dado que existem muitas formas diferentes de se buscar a dignidade”, é certo que o povo Saaraui buscará meios para impor sua dignidade.
Sayid Marcos Tenório é historiador e Vice-Presidente da Associação de Amizade e pela Autodeterminação do Sahara Ocidental – ASAHARA.