Novo governo não é retrocesso; é renovação ampliada da dependência brasileira
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- Maria Orlanda Pinassi
- 22/11/2018
De que serve dizer a verdade sobre o fascismo que se condena se nada se diz contra o capitalismo que o origina?
Brecht
Por tudo que está acontecendo e tudo o que ainda está por vir, é muito importante parar para refletir sobre o sentido da tragédia que desabou sobre nós neste último dia 28 de outubro.
Em primeiro lugar, salta à vista a rapidez com que se montaram as equipes técnicas que formam o governo de transição. A sintonia entre as pautas do novo governo e a gestão Temer dizem muito sobre o continuísmo do golpe palaciano.
Pelo Planalto circulam com desenvoltura velhas e novas figuras da política. O impávido empresário e superministro Paulo Guedes, o “imparcial” juiz Sérgio Moro conduzido “naturalmente” para a prestigiada pasta da Justiça, a escudeira da Monsanto e parceira da JBS escolhida a dedo para a Agricultura, a esperada superlotação de patentes ocupando ministérios, o “brilhantismo” do chanceler intelectual olaveano, bem como o desfile de iminências pardas, criacionistas, truculentas e “impolutas” formam a Babel presidencial. Daí surge a base de sustentação da plutocracia que já se realiza por exclusão.
O lado jocoso e raivoso da cena atrai e distrai a atenção, fornece o álibi ideológico e repressor para as decisões tomadas pelo núcleo duro e obscuro.
Ninguém esconde que a hora é dos ricos, os verdadeiros beneficiários do atual e do futuro governo, portanto, perdoem-me a deselegância, chegou a hora do fuck you às vacas de presépio e aos bois de piranha que elegeram o “mito”.
Por três décadas descuidamos dos perigos de viver sob o domínio do capital, de recordar que as soluções encontradas pelo sistema para suas crises mais agudas costumam ser ideologicamente obscurantistas e conduzidas por práticas violentas.
Demorou um pouco, mas a alta intensidade da crise que assola o país nestes últimos anos acumula décadas dos resíduos tóxicos produzidos pelo capital financeiro no controle de um crescimento predatório – agronegócio e extração mineral -, do desemprego e da precarização, da conversão de trabalhadoras e trabalhadores em consumidores passivos e no consequente enfraquecimento da luta de classes.
O momento brasileiro é a expressão até aqui máxima da crise estrutural do capital em todas as suas dimensões e vislumbra um horizonte tenso e socialmente indefinido.
Não nos preparamos para isso, nos pegaram de surpresa depois de aceitarmos o conforto de nossa discreta democracia burguesa, de crer que ela viera para ficar. A institucionalização das pautas reivindicativas acomodou-nos à linha de menor resistência. De repente, porém, tudo se modificou e não conseguimos atentar para a movimentação que invertia os sinais da equação político-ideológica em vigor.
Como num jogo de espelhos e de valores maniqueístas, tudo o que era sólido esboroou-se no ar, tudo o que era positivo negativo ficou, o bom virou ruim, o mocinho se tornou bandido, a idolatria virou ódio. No meio desse caldo, a testosterona da extrema-direita viralizou nas redes sociais.
Como num passe de mágica, o Brasil foi tomado por uma legião de belicistas, adoradores do Norte e da América Branca. Nossas instituições, já maltratadas por corrupção endêmica, são apossadas por fieis servidores de Trump e dos interesses econômicos que representa, todos muito ávidos na exploração de nossos recursos naturais e humanos, sem que nenhum entrave legal ou social impeça a satisfação de sua gula. A realidade política é sincrética, funde democracia eleitoral, fascistização e tecnocratização da estrutura societária.
O nome disso não é retrocesso e sim desenvolvimento, progresso, uma racional, arrojada e impiedosa forma de o capital liberar e potencializar forças de produção e de reprodução destrutiva. Não é unanimidade nem mesmo nos centros de decisão do capital. Mas fato é que, no mundo inteiro, as novas instituições ultraneoliberais tendem a extinguir regulações e direitos; nelas pouco resta de valores como tolerância, cidadania, diversidade, “empoderamentos” e outras prendas liberais, neoliberais.
Pelas mãos do ultraneoliberalismo, o Brasil será reconduzido ao seu lugar histórico, onde a burguesia se internacionaliza e enriquece mais ainda, e ainda mais indígenas, negras e negros, pobres e favelados são cercados e exterminados, sem terras e quilombolas expropriados, trabalhadores e trabalhadoras superexplorados e em situação de miséria absoluta.
O que fazer diante deste quadro absolutamente contemporâneo e devastador? Propor que as personificações do capital, insatisfeitas com os rumos tomados por Trump e seus colegas da Hungria, da Polônia, da Áustria etc. recuem, que acumulem menos e que, juntos, capital e trabalho tornem a fortalecer as instituições democráticas do sistema de metabolismo social do capital e para o capital? Já vimos esse filme, não?
A assim chamada acumulação primitiva é um dos mais contundentes escritos históricos de crítica à naturalização da democracia burguesa pela Economia Política. Nele, Marx ironizou o conceito de liberdade composto pelo liberalismo emergente. Denominou as famílias expulsas do campo para as cidades, a massa formadora da classe assalariada, de mulheres, homens e crianças “livres como pássaros”.
A “antítese” do trabalho livre acontecia simultaneamente nas colônias, muitas das quais pertenciam às mesmas metrópoles liberais que recriavam o imperativo da escravidão moderna. As duas faces do trabalho produtor da riqueza necessária à acumulação primitiva, separadas por territórios e por formações históricas desiguais e combinadas. Pois é desse roubo originário que se edifica a democracia burguesa.
Passados mais de 500 anos dos primeiros cercamentos e dos primeiros navios traficantes de escravos africanos, a liberdade liberal rompe com os supostos pactos e se converte ela mesma no caminho livre para a servidão.
Mas, antes de universalizar o pacto entre capital e trabalho, o Brasil, que há poucos anos serviu de exemplo de combate à pobreza e à domesticação do pobre, vem ensinando ao mundo a via da reconciliação entre democracia e autocracia e desse modo viabiliza a fusão do sujeito “livre como pássaro” com o escravo. Basta que se deixe o indivíduo sem CLT, sem férias, sem 13º, FGTS, sem previdência, sem o ministério que por mais de 80 anos mediou sua representação ante o patronato, basta que esse sujeito sobreviva sem terra, sem teto, sem saúde, sem educação, sem pátria, sem ideologia, sem consciência e sem alma.
Há quem acredite que todo esse desmonte seja atraso, que no dia 28 de outubro sofremos uma pesada derrota eleitoral, e que tudo haverá de se resolver de modo republicano e no âmbito da política parlamentar. Penso que imbróglio é muito mais sério e complexo; que nos jogaram num labirinto opressivo do qual ou saímos juntos todos os atingidos ou sucumbiremos.
Penso também que o combate deve partir das massas despossuídas com criatividade e sem saudosismos, pois as necessidades de ruptura apontam para outras formas de organização, mais radicais, não reivindicativas e certamente às margens da institucionalidade.
Nota:
1) Que os países de extração colonial padecem desde a gênese de profunda aversão aos princípios democráticos todos admitem. Difícil mesmo é reconhecer que também os países da via clássica para o capitalismo guardaram e ocasionalmente guardam incompatibilidade com eles. Foi assim na Inglaterra, cuja Lei dos Pobres, criada no século XV, só foi abolida no século XIX. Foi assim na França, onde em duas ocasiões a revolução burguesa traiu o apoio popular proibindo e reprimindo a organização da classe. As coisas só começaram a mudar quando as lutas se dividiram em luta política e luta sindical, se institucionalizaram e passaram para o controle do sistema. Só nesta condição a democracia foi tolerada.
Maria Orlanda Pinassi é socióloga, professora e colunista do Correio da Cidadania.