Ordem, progresso e fogo: a bolsonarização das políticas ambientais
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- Eduardo Gudynas
- 10/01/2020
A disseminação de incêndios no Brasil e seus países vizinhos desnuda a extensão e intensidade da crise ecológica que sofre a América do Sul. A obsessão com o progresso aparece de uma e outra maneira e chega a extremos sob o governo Bolsonaro. Mas em diferentes regimes políticos, hoje, o fogo afeta as maiores regiões ecológicas da América do Sul.
Novo Progresso é o nome do povoado no estado do Pará, centro da Amazônia, de onde se convocou para 10 de agosto de 2019 o dia do fogo. Pedia-se aos fazendeiros e colonos iniciarem simultaneamente suas clássicas queimas de selva e campos nesta data, como demonstração de protesto contra o governo. É que os promotores do fogo são ainda mais reacionários que o presidente e reclamavam mais liberdades para queimas e desmatamento. Suas ideias de um “novo progresso” não tinham novidade, mas apelavam ao primitivismo de destruir completamente a natureza para implantar sobre suas cinzas gado e cultivos. Uma cópia fiel das estratégias que se defendiam no século 19.
Os incêndios se espalharam pelo Brasil e em 25 de agosto superaram a marca de 80 mil focos. Aproximadamente a metade afetou a Amazônia; as queimadas seguiram pelas savanas e bosques secos do Cerrado (30%) e os restos na selva atlântica (10%). Todas as grandes ecorregiões do Brasil foram afetadas pelo fogo. Seus efeitos são um total e massivo aniquilamento da biodiversidade, emissões de contaminantes e impactos sobre indígenas e camponeses que perdem seus territórios.
O fenômeno não é novo, se repete todos os anos, mas a coordenação lançada desde Novo Progresso e as casualidades climáticas fizeram que a fumaça e nuvens cinzas chegassem às cidades da costa atlântica brasileira. Seus habitantes, que nem sempre atentam para o que acontece nas selvas de seu próprio país, repentinamente sofreram os impactos. O paulista entendia que estava ecologicamente ligado à sorte da Amazônia. Iniciou-se uma reação cidadã e a polêmica se intensificou dentro do Brasil e internacionalmente.
Toda essa situação resulta de um extremismo que pode ser qualificado como uma “bolsonarização” das políticas ambientais, que se apresenta em ao menos duas frentes. Por um lado, uma dura retórica contra a proteção ambiental, e contra os ambientalistas, indígenas e outros movimentos sociais. As exigências de proteção da biodiversidade, dizem Bolsonaro e associados, impediriam o progresso do país ou servem a complôs externos. Os ambientalistas, agregam, são potencialmente perigosos; Bolsonaro inclusive os acusou de ter iniciado os incêndios em Amazônia.
Por outro lado, o governo enfraqueceu e recortou o monitoramento e controle ambiental, também atacou a institucionalidade que deveria assegurar sua aplicação, e que em caso de descumprimentos, deveria punir os responsáveis. Por exemplo, foram cortadas 21 das 27 superintendências do IBAMA, desativou-se sua equipe de fiscalização de infrações ambientais, obrigou-se a renunciar quem dirigia o monitoramento de incêndios, respaldaram-se reformas normativas para permitir mineração e agricultura em áreas protegidas e assim sucessivamente. Tudo isso se acompanha da criminalização de organizações cidadãs e incentivo ao uso da violência. A bolsonarização significa impunidade ecológica.
O eixo da retórica é assegurar a “ordem” e o “progresso”. Deste modo, o governo apela a sensibilidades atávicas profundamente arraigadas, já que são as ideias que luzem na bandeira do Brasil e remontam a uma frase do positivista Auguste Comte. A ordem devia ser a base da sociedade e o progresso o fim, dizia ele no século 19. Este foi o incentivo da colonização territorial no Brasil, assim como nos países vizinhos, e que também animou muitos regimes totalitários. À ordem e ao progresso agora se soma o fogo. Não é um jogo de palavras, mas este fogo que se acendeu a partir da pequena Novo Progresso não tem nenhuma novidade; é senil.
A obsessão na ordem e conquista da Natureza também está por trás do retorno da ideia de militarizar a Amazônia. Neste sentido, Bolsonaro flertou com a retomada do programa “Caixa Norte”, a ser descortinado nas fronteiras amazônicas com países vizinhos. Já no Instituto de Conservação da Biodiversidade, muitos chefes foram removidos e substituídos por militares.
Neste contexto, tampouco pode passar despercebido o apoio do presidente da Colômbia, Ivan Duque, às posições de Bolsonaro. Isso porque o Plano de Desenvolvimento de Duque visa à militarização da gestão da natureza; no caso, apresenta a noção de “segurança ambiental como parte da segurança, autoridade e ordem para a liberdade”. Enquanto no Brasil a distorção opera para invocar a ordem para progredir, na Colômbia se insinua a necessidade de uma ordem militarizada para ser livre. Dessas formas, as palavras se desfazem de seus sentidos e tornam-se apenas slogans.
Por isso, não pode surpreender que Bolsonaro não duvide em se apresentar como nacionalista e anticolonialista para justificar a destruição amazônica. As reações de alguns países industrializados, como a França, por certo tem seus interesses, mas são aproveitadas como desculpas para continuar com a debacle ecológica. A defesa de um nacionalismo soberanamente ecocida tem velhos antecedentes no Brasil, que remontam ao menos aos anos 70. Naqueles anos, o governo militar rechaçava qualquer medida ambiental e proclamava o “crescimento a qualquer custo”.
Porém, o entrevero político se acentua nos países vizinhos do Brasil, onde há diversos regimes políticos e a Natureza também arde. A maior preocupação é nas selvas úmidas e secas da Bolívia (onde se duplicou o número de incêndios em relação a 2018, superando os 18 mil). A seguir, vem a Amazônia peruana, com 6 mil focos de calor (também dobrou) e no Paraguai, onde são afetados as florestas orientais e o Chaco (mais de 10 mil focos).
Portanto, estamos diante de uma situação onde todas as ideologias políticas parecem incapazes de evitar o fogo. Só mudam as reações, réplicas e discursos. O mais claro testemunho disso é que as florestas de Chiquitania, Bolívia, arderam mais ou menos nos mesmos dias aqui relembrados. Sem dúvida, o governo de Evo Morales estava num extremo oposto ao de Bolsonaro, mas de toda forma se permitiu uma desordenada expansão da fronteira agropecuária sobre algumas de suas florestas, infratores que desmataram foram perdoados e os mecanismos de controle sempre foram precários.
Isso explica a recente declaração da Coordenadoria Indígena Amazônica (COICA), responsabilizando tanto Bolsonaro como Morales como genocidas, uma afirmação incômoda para muitos.
Chega-se, assim, a uma triste situação: esquecendo por um momento as fronteiras políticas e colocando foco nas grandes ecorregiões dos trópicos e subtrópicos, pode-se concluir que todas estão açoitadas pelo fogo. Há incêndios nas selvas, nas florestas secas, nas savanas e pradarias, e até no Pantanal.
A sombra da “ordem e progresso”, e agora fogo, se estende por toda a América do Sul. Em todos os casos as causas de fundo do desmembramento das políticas ambientais, a perseguição a ambientalistas, indígenas e camponeses e a violência rural partem do agronegócio para favorecer monocultivos e pecuária. Nesses fogos também arde a evidência de que as posturas políticas baseadas no sonho da “ordem e progresso” do século 19 já não podem responder aos desafios sociais e ambientais do século 21.
Traduzido por Gabriel Brito, editor do Correio da Cidadania.