Arrancando os recursos naturais com violência: as extraheções
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- Eduardo Gudynas
- 06/08/2020
As múltiplas crises que vivemos com a pandemia fizeram com que novamente se propusessem extrativismos, seja na mineração, hidrocarbonetos ou monoculturas, como uma desesperada solução para as economias. Esse vício não apenas não resolverá os problemas, mas os agravará, já que tais empreendimentos, na atualidade só podem ser levados adiante quebrando as salvaguardas dos direitos e exercendo a violência.
Durante muito tempo, boa parte dos debates se enfocava em entender se esses tipos de problemas eram consequências ocasionais. Por exemplo, em distintos países se alertava que as perfurações petroleiras violavam o direito à saúde pela contaminação, ou bem se denunciavam os espancamentos da polícia nas marchas dos camponeses que protestavam diante de um enclave mineiro.
As empresas e políticos sustentavam que eram “acidentes”, “falhas” ou ações não consultadas levadas adiante por empregados desbocados aos quais rapidamente culpavam, como ocorreu diversas vezes no Brasil (nota do Correio: os famosos ‘casos isolados’ que acompanhamos todo santo dia). Mas a situação é muito mais complexa.
Com efeito, o vício extrativista avança graças a continuados descumprimentos das salvaguardas dos direitos e dos crescentes usos da violência. Não são nem acidentes, nem falhas, nem descumprimentos. São elementos próprios dos extrativismos de terceira e quarta geração que se vive na América Latina. Um recente estudo para a Bolívia, que por várias razões é o primeiro de seu tipo na América Latina, mostra essa situação.
Diferente de muitas outras abordagens, se consideraram ao mesmo tempo as relações entre extrativismos, direitos e violência. Partindo do grande leque de direitos reconhecidos na Constituição Política do Estado (aprovada sob o primeiro mandato de Evo Morales), foram selecionados 20 deles por estarem enfocados em questões diretamente ligadas com a qualidade de vida e o meio ambiente, e por isso de relevância diante dos extrativismos.
São os direitos que por exemplo asseguram a água ou a saúde, a autonomia e o autogoverno indígena para gerir os recursos naturais em seus territórios, um ambiente são e protegido, ou as liberdades e garantias essenciais para que as pessoas possam proteger tudo isso.
Ao examinar o que ocorreu na Bolívia entre 2006 e 2019, verificou-se que todos esses vinte direitos são violados nos extrativismos em hidrocarbonetos, dezoito naqueles ligados à mineração e 11 nos agropecuários. Ao redor das infraestruturas de apoio que esses extrativismos precisam para se reproduzirem foram descumpridos pelo menos 16 desses direitos.
Reordenando os direitos fixados pelo texto constitucional, incorporando aqueles que derivam dos convênios internacionais assinados pelo país e os direitos da Natureza (tomando como exemplo o Equador), chega-se a um novo total: 32. A revisão dos casos arroja resultados similares: todos esses direitos são violados nos extrativismos mineiros, trinta em empreendimentos de hidrocarbonetos e 28 para agropecuários.
Do mesmo modo, em todos esses setores aparece algum tipo de violência. Desde aquela que afeta as comunidades locais, como a hostilidade a grupos e pessoas que denunciavam a situação, desde o uso das forças policiais para ingressar em territórios indígenas até a recordada repressão de uma marcha indígena que defendia seu território (a área protegida conhecida como TIPNIS).
Estamos diante de uma dramática constatação: não existe nenhum tipo de extrativismo no qual não se tenha violado algum direito e pelo qual não tenha sido exercido algum tipo de violência.
Esses achados se baseiam em uma revisão de um amplo número de situações, e a partir dos testemunhos dos próprios afetados. Com efeito, se consideraram 20 casos, a maior parte relatados pelos participantes na Alianza por los Derechos Humanos y el Ambiente que criou um núcleo de umas 50 organizações (desde a Assembleia Permanente dos Direitos Humanos da Bolívia a grupos locais).
Quando esses casos se complementavam com um exame do que ocorre nos demais países da América Latina, se confirma a associação entre os descumprimentos dos direitos e a violência. Nenhum país está a salvo dela, e em alguns é ainda mais grave, como sucede no Brasil.
Essa avaliação, junto a muitos outros dados complementares, acaba de ser publicada no livro Direitos e violências nos extrativismos, que compartilhei com Oscar Campanini e Marco Gandarillas, a cargo da editora La Libre, de Cochabamba (BOL).
Extraheções
No estudo se aplicou um novo conceito: extraheções. O termo deriva do latim, extraher, e significa arrancar com violência.
Tendo isso presente, as extraheções são os extrativismos que ocorrem descumprindo os direitos das pessoas e da Natureza, e que se levam adiante com violência. Apelar ao novo termo não é uma mania acadêmica, senão algo necessário precisamente para obrigar a abordar essa íntima relação da violência, a ruptura dos direitos e os extrativismos. São três aspectos intimamente vinculados entre si, que não podem separar-se, e todos eles demarcados em “arrancar” os recursos naturais.
Existem situações esmagadoras, como a contaminação pela mineração no Lago Poopo, o segundo maior lago da Bolívia, já que ali se violam todos os direitos a saúde e qualidade de vida. Outros descumprimentos são insidiosos, e avançam pouco a pouco, como vêm sendo os recortes nas medidas de proteção das áreas naturais, como os parques nacionais, para permitir ou tolerar a entrada dos extrativismos, como foi indicado para Bolívia, Peru, Equador, Colômbia e, é claro, Brasil.
Também foi constatada que a violação de direitos discorre em dois planos diretamente associados. Por um lado, estão os descumprimentos que são gerados nos enclaves extrativistas, e pelo outro se violam os direitos das pessoas que denunciam essas situações ou defendem a saúde e o meio ambiente. São os casos da repressão a protestos locais ou as intimidações a líderes comunitários. Em vários casos desta situação sobretudo padecem as mulheres. Por tudo isso o descumprimento é duplo, tanto pelos impactos dos extrativismos como por afetar aos defensores do meio ambiente.
A violência sempre está presente e nela se cristalizam as extraheções. Existe uma violência física, como ocorre quando dão uma surra em um camponês que defende seu território, mas também há sociais, religiosas ou psicológicas, tal como define a Organização Mundial da Saúde ao incluir as afetações na saúde, no bem-estar psicológico ou desenvolvimento pessoal. Seguindo essa definição, aceita por todos os governos, a violência não ocorre só quando se concretiza em uma ação, mas também se configura na intencionalidade e no amedrontamento.
O conceito de extraheções mostra uma mutua alimentação, já que a medida que se descumprem direitos, se agudiza o uso da violência, e isto por sua vez desencadeia novas violações de outros direitos. Começa, por exemplo, negando o acesso à informação ou à participação, o que é tolerado por muitos e denunciado por poucos. Essa impunidade permite passar a violações mais agudas e assim sucessivamente. Segue, por exemplo, a intimidação das organizações sociais e comunitárias, seguida da criminalização de pessoas e grupos. E assim se chega a extremos como a repressão de mobilizações cidadãs, como voltou a ser tão comum na América Latina, para a partir disso seguirem-se assassinatos dos líderes que denunciem os extrativismos, um drama que acossa sobretudo a Colômbia e o Brasil.
Segundo dados mais recentes da Global Witness, em 2019 a Colômbia ocupou o primeiro lugar mundial no número de assassinatos de defensores da terra (64), seguida por Filipinas (43) e Brasil (24). O Brasil sempre esteve entre os países mais perigosos; em 2017 ocupava o primeiro posto e em 2018 foi o quarto. Em 2019 se registrou um aumento do número de assassinatos em todo o planeta em comparação com o ano anterior; a principal causa é a resistência aos extrativismos, especialmente ligados à mineração. Na América Latina, ademais, é claro que estas extraheções golpeiam sobretudo as comunidades camponesas e indígenas.
O novo livro é o primeiro estudo detalhado que se faz sobre a extraheções na América Latina. As situações revisadas em detalhes para a Bolívia e a informação complementar para os demais países mostra como se aceitou e naturalizou que a apropriação dos recursos naturais seja feita com violência e descumprindo direitos. Não são casos isolados, nem sequer consequências indesejáveis ou acidentais. São uma condição prévia, necessária e repetida. Recortam-se e debilitam as salvaguardas de direitos para impor extrativismos de terceira e quarta geração que, por seus impactos, não seriam aceitáveis, nem toleráveis. Quando se contamina ou destrói a natureza, é ocultado; se a população resiste, é aplicada a violência para que se cale.
Essas são as extraheções, as que, em suma, são muito mais que os impactos locais, já que ali se expressam a debilidade da justiça e uma democracia incompleta submersa na violência. Sob a atual pandemia, como os governos mais uma vez buscam nos extrativismos o remédio para a crise econômica, as extraheções se multiplicarão em toda a América Latina. Por essas razões devem ser identificadas e enfrentadas o quanto antes.
A versão em espanhol deste artigo foi publicada no jornal boliviano Página Siete, em 31 de julho de 2020. O estudo completo foi publicado pela La Libre (www.lalibrelibreriasocial.com) na Bolívia.
Traduzido por Raphael Sanz para o Correio da Cidadania.