Correio da Cidadania

Cai Uribe, o mito colombiano

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No dia 4 de agosto, a Suprema Corte de Justiça ordenou a prisão domiciliar do senador Alvaro Uribe, para a investigação do seu papel no suborno e manipulação de testemunhas, ex-membros de esquadrões da morte de paramilitares.

Foi um grande choque para os partidários deste mito da direita colombiana, visto por eles como o salvador da pátria na luta implacável que moveu contra as guerrilhas, desde o período 1995/1997, quando governou o estado de Antioquia. No desempenho dessa função, Uribe apoiava abertamente grupos civis de “autodefesa”, o Convivir, que entidades de direitos humanos posteriormente acusaram de assassinar civis e guerrilheiros, igualmente (New York Times, 08-04-2018).

Em 2002, já aclamado como mito, Uribe concorreu e venceu as eleições para presidente do país. Uma vez empossado, não perdeu tempo em iniciar uma repressão extremamente violenta, porém tão eficaz que os guerrilheiros aceitaram pela primeira vez negociações de paz, as quais não deram certo porque os chefes das FARCs, o grupo mais forte, rejeitaram as duras condições impostas pelo governo. Mas, o povo colombiano, aprovou integralmente a ação de Uribe contra as FARCs, vistas como responsáveis pela situação caótica no campo, gerada por uma guerra civil, que a essas alturas, já durava vários decênios.

Amparado no apoio popular, com as pesquisas mostrando 95% favoráveis a seu governo, Uribe conseguiu mudar a constituição, garantindo sua reeleição para o período 2006/2010.

O prestígio do líder direitista continuou nas alturas, embora com tendência de baixa, devido a numerosas denúncias sobre envolvimento com os paramilitares, de assassinatos impunes de ativistas de esquerda e sindicalistas e da revelação pública dos “falsos positivos”, episódio em que militares matavam camponeses e apresentavam seus corpos vestidos com uniformes de guerrilheiros para conseguir promoções, gratificações e outros benefícios. Calcula-se que as vítimas chegaram a 4 mil.

Em 2010, findo o prazo do seu mandato, Álvaro Uribe tentou novamente alterar as leis para chegar ao poder pela terceira vez. Não deu certo, sua pretensão foi barrada pela Corte Constitucional.

Uribe ainda surfava na admiração da maioria das pessoas. Com 75% de opiniões favoráveis nas pesquisas, ele foi fator determinante na eleição do seu candidato, Juan Manuel Santos.

Mas como o novo mandatário adotou posições conciliadoras em relação às FARCs, de olho numa negociação de paz realista, Uribe rompeu sua aliança com ele.

Em 2014, Juan Manoel Santos foi reeleito. No primeiro turno, perdera para Oscar Zuluaga, candidato lançado e fortemente apoiado pelo onipresente Uribe, mas no turno decisivo venceu.

Chegara a hora de o presidente realizar seu projeto de paz com as FARCs, pondo o ansiado fim à guerra civil.

Para bloquear seu objetivo, grupos de extrema-direita, liderados por Uribe (que se elegera senador) lançaram uma campanha, contestando os termos do acordo e provocando grande impacto na população colombiana.

Empenhado em resolver o grave problema, que assolava a nação, o novo presidente submeteu seu plano de paz ao parlamento, obtendo aprovação.
Levado a plebiscito, a paz com a guerrilha foi rejeitada por pequena maioria da população, apenas 50,6%, em outubro de 2016.

Santos e Timochenko, o líder das FARCs, acertaram alguns pontos e em dezembro de 2016 assinaram o acordo final, que segue valendo até hoje, sempre combatido por Uribe e as forças de direita.

A essas alturas, embora em declínio, acentuado por uma série de novas acusações, que o colocavam próximo aos paramilitares, o senador direitista continuava reverenciado, e não apenas pelos setores mais radicais do público.

Sua atuação ainda pesou na eleição do seu seguidor, Ivan Duque, em 2018, contra os candidatos centrista e da esquerda. Mas o processo de queda rolava implacavelmente.

Culminou com a ordem de detenção imposta agora pela Suprema Corte de Justiça. Uma semana depois, em 12 de agosto deste ano, pesquisa da Daxtesco, publicada por El Espectador mostrou que a maioria do povo estava abandonando Uribe: 69% se disseram críticos do senador, enquanto apenas 29% o favoreciam; 64% acharam justa sua prisão, contestada por não mais de 30%.

Uribe parece estar afundando sob o peso de novos depoimentos prestados no processo, por ex-paramilitares, atestando suas ligações com ele.

A democracia genocida

A origem desses grupos vem dos tempos em que EUA e União Soviética disputavam a hegemonia em todo o mundo. Em um desdobramento da chamada Guerra Fria, experts americanos em contrainsurgência foram enviados à Colômbia para estruturar o enfrentamento das guerrilhas marxistas, que cresciam no país. Entre fins de 1981 e princípios de 1982, eles se reuniram em Puerto Boyacá com congressistas, militares e ex-militares, membros do Cartel de Medellín, pequenos empresários e fazendeiros, e fundaram uma organização paramilitar, a Morte aos Sequestradores, cujo objetivo inicial era defender seus interesses políticos e econômicos, prejudicados pelos ataques, extorsões e punições efetuados pelos guerrilheiros.

Possivelmente, Álvaro Uribe não seria estranho a estes “pioneiros” Em 1991, relatório do serviço de inteligência do Departamento de Defesa dos Estados Unidos informava: “Álvaro Uribe Vélez, político colombiano, dedicou-se à colaboração com o Cartel de Medellín em níveis elevados do governo. Uribe trabalhou para o cartel e é amigo próximo de Pablo Escobar Gaviria (Cofina, 05-08-2004)”.

Grupos de paramilitares foram se formando rapidamente, integrados por ex-militares e ex-policiais, desempregados e mesmo por delinquentes. Sendo uma força irregular, não estavam sujeitos a regulamentos, nem ao controle das autoridades, podendo pintar, bordar e matar sem restrições.

Continuaram combatendo as guerrilhas marxistas, porém ampliaram seus objetivos, matando também meros suspeitos e ativistas de esquerda, tomando à força terras de camponeses, sequestrando e funcionando tanto como uma força auxiliar do exército colombiano como quadrilhas a serviço de latifundiários. A exemplo das guerrilhas, dedicavam-se ao tráfico de tóxicos. Com bastante sucesso, já que, a certas alturas, detinham 40% dos negócios de exportação de cocaína e outras drogas similares.

Acredita-se que de 70% a 80% das 220 mil vítimas da guerra civil podem ser creditadas aos “paras”, sendo que o restante foi obra do exército e das guerrilhas. Estas duas forças estavam em muitos casos conectadas, com a primeira protegendo a segunda. Numerosos políticos também mantinham ligações perigosas com paramilitares. Diz o padre Javier Giraldo, em “A Democracia Genocida”, que pelo menos 40% do legislativo colombiano chegou a ter laços com eles.

Diante da divulgação pela imprensa dos delitos dos “paras”, criou-se na opinião pública um movimento exigindo a destruição desta societas sceleris. Parlamentares de centro e de esquerda também participaram. E em sua cruzada internacional contra as drogas, os EUA pressionaram no mesmo sentido.

Finalmente, em 2005, o Congresso aprovou a lei 975, chamada Lei de Justiça e Paz, sancionada pelo então presidente Uribe, que estabelecia punições aos paramilitares que praticaram crimes daqueles que bradavam aos céus.

Na verdade havia sérias lacunas quanto à justiça presente na denominação desta lei: os combatentes da AUC (Auto Defesas Unidas da Colômbia- principal grupo paramilitar) recebiam amplas concessões como a de poder conservar os lucros provenientes de ações ilegais durante seu tempo de serviço na organização; limitação das penas a 8 anos, que poderiam ser cumpridos em fazendas particulares, em lugar de prisões; permissão para manter as estruturas de poder do seu grupo.

Àqueles que tivessem uma ficha criminal não muito aterradora, ofereceu-se a reintegração na sociedade e o perdão desde que entregassem suas armas e confessassem suas ações delituosas.

Dos cerca de 31 mil paramilitares, 20 mil aceitaram a desmobilização, enquanto mil foram condenados à prisão, extraditados para os EUA ou simplesmente sumiram. Os 10 mil restantes formaram novas gangues ou se associaram às existentes. E não pararam de delinquir.

Segundo Luiz Gallon, presidente da OAB local, em depoimento ao embaixador norte-americano, John Creamer, eles continuavam na senda do crime anos depois da desmobilização.

A Human Rights Watch denunciou que a polícia nada faz para combater esses paramilitares renitentes. Uribe foi acusado de ser excessivamente leniente na elaboração e aplicação de uma lei que, em si, já era leniente.

O Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU e a Comissão Inter-Americana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos) acusaram a lei 975 de desrespeitar as normas internacionais sobre os direitos das vítimas buscarem justiça e reparações e de conceder impunidade a violadores de direitos humanos.

O começo da mudança

Em maio de 2006, a Corte Constitucional da Colômbia modificou essa lei, derrubando vários dos seus artigos originais e corrigindo alguns dos problemas apresentados. Passou-se a exigir confissões completas, devolução dos bens adquiridos ilegalmente e possibilidade das sentenças com penas reduzidas serem revogadas caso se apurassem mentiras, além de se eliminar os limites de tempo para as investigações.

Em 2010, um relatório da ONU diz que, no governo Uribe, a vasta maioria dos paramilitares responsáveis por violações dos direitos humanos foram desmobilizados sem investigação.

Dois anos depois, já no governo Juan Manuel Santos, o senador esquerdista Ivan Cepeda começou a apresentar testemunhos sobre o patrocínio de Álvaro Uribe a grupos paramilitares, autores de crimes brutais contra os direitos humanos.

Por sua vez, Uribe contra-atacou, em 2014, processando Cepeda sob alegação de ter pressionado paramilitares presos para deporem contra líder direitista.

Em 2018, o tribunal absolveu Cepeda das acusações do adversário e, numa reviravolta, mudou o foco da sua ação: investigaria pressões e subornos sobre depoimentos de paramilitares, sim, mas não por Cepeda. Os indícios da prática desses delitos apontavam para Uribe. Como por exemplo testemunhou o paramilitar Luiz Adrian Palácio que, antes das eleições presidenciais de 2002, membros do notório Bloco Metro, reuniram-se com os prefeitos de Carolina del Principe, Gomez Plata, Yolombo, Amalfi, Yali, Cisneros e Segovia, para interferir nas eleições em apoio de Álvaro Uribe.
Estas ligações perigosas também foram percebidas pela NSA (National Security Agency).

No último dia de agosto deste ano, ela tornou público memorando em que Peter Rodman, alto funcionário do Pentágono, informava a Donald Rumsfeld, então secretário de Defesa do governo Bush, que estava quase certo de haver conexões entre a AUC e Uribe, quando governava o estado de Antioquia (El Tiempo, 31-8-2020).

Mas, para os EUA, os sucessos de Uribe na guerra às guerrilhas minimizaram esse fato um tanto comprometedor. Ele foi considerado um herói, honrado em 2009 pelo então-presidente George W. Bush com a “Medalha Presidencial de Liberdade”, o que faz supor que os conceitos de Bush sobre valores éticos eram um tanto bizarros.

Não surpreendeu ninguém quando Mike Pence, o vice-presidente de Trump, chamou Álvaro Uribe de herói e publicou no seu twitter: “Nós respeitamos as instituições colombianas e sua independência, mas, com o antigo presidente Uribe preso, pedimos às autoridades colombianas a permissão para ele se defender como um homem livre (US NEWS, 14-08-2020)”.

Livre ou preso, Álvaro Uribe já foi inculpado pelo povo, ao qual há mais de 20 anos vinha enganando.

Frustrar grandes expectativas populares costuma ser decisivo, Uribe dificilmente recuperará sua aura de mito que hoje parece perdida.

 

Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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