Correio da Cidadania

Estados Unidos: ideias anarquistas ganham força nos movimentos populares

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Nota: Nas últimas duas décadas os princípios de autogestão e horizontalidade proliferaram ao redor do mundo e se tornaram parte do padrão de procedimentos operacionais de mobilizações sociais nos EUA. Recentemente tivemos diversos exemplos desses princípios colocados em prática nas ruas de Nova York, Seattle e outras cidades, o que assustou as autoridades e gerou reações de criminalização, principalmente por parte do governo Trump. Neste artigo, pesquisadores simpatizantes das ideias em questão explicam o que propõe este anarquismo do século 21, como atua e por que tem atraído a atenção de tantas pessoas, não apenas jovens, e não necessariamente anarquistas com o ‘a maiúsculo’.

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Os anarquistas assustam as elites privilegiadas e seus súditos autoritários não apenas porque os objetivos primários do movimento visam abolir as fontes do poder da elite – o Estado, o patriarcado e o capitalismo – mas porque o anarquismo propõe uma forma alternativa de organização social e política baseada em coletivos de trabalho, assembleias de bairro, federações de baixo para cima, escolas gratuitas centradas na criança e uma variedade de organizações culturais que operam com base na cooperação, solidariedade, ajuda mútua e democracia direta e participativa. Opostos a todas as formas de hierarquia, dominação e exploração, os anarquistas trabalham para criar uma cultura baseada no acesso igual aos recursos, tornando possível o exercício genuíno da liberdade, ou seja, atrelada à igualdade em direitos, de acesso aos recursos e à emancipação de todos os seres humanos, sobretudo os pobres e trabalhadores, os que mais sofrem com o ônus do atual estado de coisas.

Durante o último século e meio, e particularmente nas últimas duas décadas, os princípios de autogestão do anarquismo proliferaram ao redor do mundo e também se tornaram parte do padrão de procedimentos operacionais de protestos e mobilizações sociais. Visto que as elites perderiam esta condição em uma sociedade pautada por essas ideias, não é de se admirar que os governantes tremam ao pensar em ‘jurisdições anarquistas’, como pudemos observar recentemente nos EUA.

As duras realidades da crise climática, a pandemia de coronavírus e a violência policial sempre em curso revelaram as inadequações da liderança atual e do sistema de governo existente, ao mesmo tempo em que proporcionam oportunidades, como todas as crises, de criar mudanças significativas. Alcançar ou não um pivô histórico para uma sociedade fundamentalmente diferente vai depender em parte de manter a pressão política militante e criativa nas ruas, enquanto simultaneamente constroem-se formas de contrapoder, contrainstituições e organizações que pré-figuram a visão anarquista de uma sociedade livre.

Este é um momento de significativa agitação cultural em relação às questões que giram em torno da raça, enfrentadas por severa reação política e a tentativa de redução do poder patriarcal branco. Em contraste com o primeiro movimento Black Lives Matter, há vários anos, em resposta aos assassinatos de Trayvon Martin e Mike Brown, está crescendo a compreensão dos brancos sobre como as formas históricas de opressão continuam a moldar nossas vidas.


Mudança de era

O Black Lives Matter pode ser o maior movimento de protesto social da história dos Estados Unidos. Nos primeiros dois meses depois que a polícia assassinou George Floyd em Minneapolis, aproximadamente 15 a 26 milhões de pessoas (até 8% da população) participaram de um protesto Black Lives Matter.

O presidente emprega estereótipos para deslegitimar o movimento nas ruas, alegando que anarquistas e Antifas (antifascistas) são elementos sinistros por trás desses protestos, mas na verdade a vasta maioria dos participantes são pobres, trabalhadores negros e seus aliados brancos. Essa é em grande parte uma revolta espontânea. De fato, os anarquistas estão nas ruas em solidariedade, exigindo justiça, assim como estiveram desde que clamaram pela abolição do capitalismo e do Estado no processo de criação de um movimento de massa da classe trabalhadora na década de 1860, mas as táticas usadas no levante atual são uma combinação de métodos historicamente comprovados, aprimorados ao longo de décadas de luta e novas adaptações a uma polícia cada vez mais militarizada e brutal.

Os anarquistas de hoje não estão liderando nem instigando os protestos atuais. O papel dos anarquistas nas ações, porém, vai muito além de estar nas ruas com os manifestantes. Desde o ressurgimento do anarquismo na década de 1990, quando os princípios de organização anarquista foram usados para encerrar as reuniões da Organização Mundial do Comércio em Seattle, o anarquismo permeou os movimentos de oposição contemporâneos. A ênfase anarquista na ação direta e na militância de rua ajuda a definir os movimentos de hoje, assim como o uso de grupos de afinidade e táticas black bloc. O horizontalismo militante é o padrão de protesto na atualidade.

O significado dos protestos sustentados contra a violência policial, ingrediente-chave para uma mudança bem-sucedida, é a ruptura militante da vida cotidiana, como vimos em Portland, Louisville, Rochester e muitas outras comunidades em todo o território dos EUA. Sabemos, por meio de estudos de 323 movimentos violentos e não violentos em todo o mundo, que protestos que mobilizam pelo menos 3,5% da população podem produzir mudanças de regime.

Embora os protestos de hoje não sejam sobre mudança de regime, mas sobre mudança social e política mais ampla, há motivos para esperança de que os protestos atuais criarão uma inflexão histórica que será muito mais significativa do que simplesmente mudar o ocupante do Salão Oval da Casa Branca. Como nossa sociedade e seu estabelecimento político continuam atolados no caos, o anarquismo oferece uma saída viável, uma forma de se organizar de forma livre e cooperativa fora do processo eleitoral e institucional que tanta rejeição provoca nas novas gerações. Em parte por essa razão, as elites difamam os anarquistas.

Caricaturas grotescas do anarquismo sempre foram utilizadas pelos políticos para amedrontar os cidadãos e justificar o descrédito, o assassinato, espancamento, deportação e prisão de anarquistas, muitos deles imigrantes recentes, cujo único crime era a crença na possibilidade de um mundo melhor. Que irônico, então, que os anarquistas sejam percebidos como violentos, quando na verdade a vasta maioria da violência foi perpetrada por aqueles que trabalham para os capitalistas e o Estado, em particular pelas forças armadas e policiais. No entanto, os anarquistas fizeram grandes contribuições para a nossa história, criando espaço para novas possibilidades no processo de “exigir o impossível.” O anarquismo hoje mudou muito desde suas origens no século 19, mas os princípios básicos permanecem os mesmos e podem ser vistos em ação nas ruas e no trabalho, em andamento nos bairros das grandes e pequenas cidades.

Há mais de cem anos, em seu livro Ajuda Mútua: um fator de evolução, o pensador russo Piotr Kropotkin argumentou contra a interpretação de Charles Darwin por Herbert Spencer, apontando que a evolução não é impulsionada pela competição dentro das espécies, mas sim entre as espécies e aquelas espécies que mais cooperam são as mais adequadas para a sobrevivência. No caso da nossa espécie, a cooperação social permite que os humanos cuidem uns dos outros e trabalhem juntos para superar as adversidades. É exatamente assim que as pessoas responderam à pandemia do coronavírus, como Jia Tolentino observou no The New Yorker: “Coletivos informais de cuidado infantil, grupos de apoio a transgêneros e outras organizações ad-hoc operam sem a liderança de cima para baixo ou o financiamento filantrópico de que depende a maioria das instituições de caridade. Não existe um diretório abrangente de tais grupos, a maioria dos quais não busca ou recebe muita atenção. Mas, de repente, eles pareciam estar em toda parte”.

A penetração na sociedade

As pessoas estão respondendo com cuidado, cooperação e ajuda mútua em meio à calamidade da pandemia do coronavírus, ao furor da brutalidade policial e aos recentes incêndios florestais devastadores na costa oeste dos Estados Unidos. Em Portland, no estado de Oregon, as pessoas estiveram nas ruas protestando por mais de cem dias consecutivos em apoio à vida dos negros (Black Lives Matter) e contra a polícia, apenas fazendo uma pequena pausa durante os incêndios florestais. Inúmeros coletivos, organizações, grupos de afinidade e blocos foram formados. Como observa Roger Peet, da Cooperativa de Artistas Justseeds: “Houve um grande florescimento de pequenos núcleos fornecendo uma variedade eclética de serviços para a população protestante: lanches, lava-olhos, capacetes, escudos cuidadosamente construídos, cuidados com feridas, panfletos, água, comunicação e muito mais. Essas redes de ajuda mútua e pequenas estruturas fornecem uma infraestrutura de melhoria para o contexto noturno de protesto, mas também fornecem uma coisa coerente para um participante fazer, fora do objetivo nominalmente vago de simplesmente protestar”.

Clínicas foram organizadas para fornecer cuidados posteriores aos manifestantes, para ajudar com os efeitos físicos e emocionais dos traumas de força bruta e exposição à guerra química usada pela polícia. E com a qualidade do ar da Costa Oeste, recentemente a pior do mundo devido a grandes incêndios florestais, os militantes mudaram por um tempo para fornecer ajuda humanitária. De médicos de rua nas linhas de frente de protestos e ajuda humanitária em desastres a organizadores no Brooklyn que levam mantimentos para as pessoas durante a pandemia, a ação direta e a iniciativa de pessoas comuns estão fazendo uma diferença material na vida cotidiana das pessoas.

Também existe um reconhecimento generalizado nos EUA do fracasso do Estado como meio viável de organização social. Começando décadas atrás, com a desilusão com a guerra dos EUA no Vietnã, o escândalo Watergate e revelações sobre o papel do FBI na supressão de movimentos sociais, a inadequação do Estado é atualmente ilustrada pela inepta resposta federal à pandemia do coronavírus, uma rede de segurança social que protege muito pouco, um meio ambiente em colapso e racismo sistêmico imposto pela polícia militarizada. Está cada vez mais claro que o governo não pode resolver essas crises múltiplas. Os anarquistas apresentam alternativas fundamentais e urgentes ao poder hierárquico e a uma sociedade baseada na exploração e dominação.

A perturbação nas ruas muda a conversa política

Assim como o movimento Occupy Wall Street mudou a conversa política para se concentrar na desigualdade econômica, os protestos de hoje mudaram a conversa para se concentrar no racismo sistêmico. À medida que a conversa muda, os valores mudam, as prioridades são alteradas, novas alianças surgem e possibilidades antes inconcebíveis tornam-se alcançáveis. Também sabemos que haverá uma reação inevitável. O fator mais importante para limitar a reação será a força das comunidades de resistência que emergem como resultado do fato de as pessoas se verem no movimento. Outra proteção para os movimentos sociais é ter o apoio da população ao lado dos manifestantes. Conseguimos ganhos significativos na luta política pela opinião pública, e é por isso que os ataques a Black Lives Matter, Antifa e anarquismo aumentaram dramaticamente. A direita está se mobilizando para proteger o privilégio e o poder branco, patriarcal e capitalista. Um benefício importante da participação em protestos é o sentimento de pertencer a um poderoso veículo de mudança social e o conhecimento de que você não está sozinho em sua indignação. O senso de identidade resultante fortalece a vontade de resistir no momento e também prepara a pessoa para batalhas futuras.

Não importa quem seja eleito em novembro, essa construção de agitação e movimento deve continuar. Apesar da demonização da administração atual, os anarquistas de hoje trabalham para criar uma sociedade livre não apenas por meio de manifestações de rua militantes, mas se engajando na organização do local de trabalho, projetos de ajuda mútua e a criação de organizações democráticas e contrainstituições. Precisaremos de uma proliferação de ataques arriscados, como aqueles realizados por jogadores da NBA em apoio à vida dos negros, e a generalização da política de oposição em toda a sociedade. Os anarquistas estão criando uma cultura que modela o desafio à supremacia branca, valoriza a vida dos negros e defende aqueles de nós sob ataque porque somos vulneráveis, quer sejamos homoafetivos, pessoas trans, mulheres, da classe trabalhadora ou em situação de rua. Todos nós.

Uma força motriz da história é a ação direta dos movimentos sociais de baixo para cima. As principais mudanças nas democracias ocidentais acontecem quando a legislação tenta acompanhar e responder à pressão dos movimentos sociais, como os motins e o movimento pelos direitos civis das décadas de 1950 e 1960. O mundo de hoje está longe dos ideais anarquistas e exigirá mudanças sociais fundamentais em todas as áreas da vida, desde como nos organizamos economicamente até como decidimos as prioridades sociais e políticas. As elites políticas existentes e as classes dominantes têm interesse em manter as coisas como estão, mesmo que isso signifique o contínuo assassinato de negros pela polícia, intervenção militar estrangeira e uma crise climática perigosamente crescente. Eles não abrirão mão do poder voluntariamente e compartilharão a riqueza, como tem sido demonstrado ao longo da história. Em outras palavras, jamais permitirão por exemplo a taxação das suas fortunas como pregam aqueles que creem nas reformas impostas de cima para baixo.

Um movimento social nas ruas, locais de trabalho, bairros e cidades é essencial

Um movimento militante leva as pessoas comuns ao diálogo com os tomadores de decisão de elite. Isso nos torna difíceis de ignorar. À medida que as pessoas alcançam vitórias concretas, o movimento continua e se constrói até um momento decisivo em que profundas mudanças sociais, econômicas e políticas tornam-se não apenas possíveis, mas inevitáveis. Nesse processo, os anarquistas são motivados a capacitar as pessoas para compartilhar o poder coletivamente, em vez de permitir que as elites acumulem este poder para si mesmas.

Os movimentos sociais também precisam de uma visão de futuro e o anarquismo se propõe a oferecer uma sociedade na qual ninguém fica de fora e nenhuma necessidade básica permanece não atendida e, o mais importante, uma cultura igualitária onde ninguém fica acima ou abaixo, ou no caminho do exercício genuíno da liberdade e dos direitos. Por isso tamanha adesão.

Compartilhamos a necessidade desesperada de uma sociedade fundamentalmente diferente. Uma que não destrói o meio ambiente em busca de lucros, onde a polícia não mata mais pessoas de cor para preservar a supremacia branca, livre da exploração do trabalho das pessoas e da violência misógina, uma sociedade onde as pessoas afetadas pelas decisões políticas são as que tomam essas decisões. Uma sociedade diretamente democrática, principalmente oposta à dominação e exploração são aspectos do que o anarquismo busca oferecer e, por isso, é considerado tão perigoso para os detentores do poder estabelecido.


Dana Ward é professor emérito de Estudos Políticos no Pitzer College, onde fundou e mantém o Anarchy Archives.

Paul Messersmith-Glavin é um organizador anarquista de longa data e membro do Institute for Anarchist Studies (IAS) e Perspectives on Anarchist Theory (twitter @ PaulMessersmit4).

Traduzido por Cássio Aquino.

Originalmente publicado em inglês aqui.

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