Correio da Cidadania

Acabou a parceria Trump-Bolsonaro. E o Brasil com isso?

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A parceria Trump-Bolsonaro nos faz lembrar outras duplas famosas, como Alvarenga e Ranchinho, Cosme e Damião, Pelé e Coutinho, Bud Abbot e Lou Costello, Arrelia e Pimentinha, Butch Cassidy e Sundance Kid, Batman e Robin... Mas ao contrário do que acontecia em todas essas, um dos integrantes da dupla de presidentes babava-se de admiração por seu colega, para ele um modelo de virtudes políticas, de quem se orgulhava de ser um irrestrito apoiador, gratificado pela dádiva de sua amizade.

Muitos acreditavam (e ainda acreditam) que nosso país teve muito a ganhar com isso: já que o relacionamento entre os dois líderes era tão especial, o Brasil também teria sido especial para os EUA. O que não seria pouco, veja-se a torrente de mercês que o governo norte-americano despeja sobre Israel, seu tradicional aliado especial.

Agora, com a queda de Trump, a parceria acabou, irremediavelmente. Inconformado, nosso presidente nega a realidade. Reconhecer a vitória de Biden, através de um parabéns burocrático, seria admitir o inaceitável.

Triste pra ele, né? Mas, e quanto ao Brasil? Será que acabarão também as eventuais vantagens que Trump concedeu ao país do seu efusivo admirador e parceiro?

Outra dúvida cruel: o que nosso país pode esperar da nova administração dos EUA, que já se mostrou hostil a nosso presidente?

Como se sabe, durante a campanha presidencial, Joe Biden ameaçou o governo da “nova era”, por conta das suas iniciativas na Amazônia. E Bolsonaro respondeu duro, até ameaçou apelar para o uso da pólvora, caso o futuro presidente dos EUA não entrasse em acordo conosco.

Suspeitamos que dá pra dormir sossegado.

As relações Brasil-EUA não vão ser menos vantajosas para o Brasil do que durante a parceria Trump-Bolsonaro.

Simplesmente porque, nesse período, perdemos muito mais do que ganhamos. Para ser mais exato, o Brasil concedeu muito e recebeu muito pouco. A verdade é que os frutos da amizade Trump-Bolsonaro foram amargos para o nosso país.

Esse desagradável sabor começou a ser sentido no começo do ano passado, quando o governo de Brasília renunciou à exigência de vistos para os cidadãos norte-americanos entrarem no país.

Com isso, renunciamos aos 60 milhões de dólares em taxas que os turistas da land of the braves nos pagavam anualmente.

Mas o governo Trump continuou exigindo visto dos viajantes brasileiros. Afinal, bons amigos não devem esperar reciprocidade dos presentes que oferecem.

Logo em seguida veio a cessão da base de Alcântara para os EUA poderem lançar seus satélites de um ponto privilegiado, que lhes garantiriam 30% de redução no gasto de combustível.

E tudo que o Brasil cobrava era 10 milhões de dólares por ano. Preço de pai para filho. Ou melhor, de filho para pai.

Trump ficou tão feliz que usou a rede social para celebrar um negócio que vai economizar saudáveis quantias aos cofres de Washington.

Ainda em 2019, os produtores de etanol dos EUA estavam sofrendo efeitos devastadores da guerra comercial que Trump deflagrou contra a China. Casualmente, eles eram uma das principais base de apoio ao projeto de reeleição do morador da Casa Branca.

The Donald não teve dúvidas: voltou-se logo para seu protegé, Jair Bolsonaro.

Atendendo ao ídolo, nosso presidente não hesitou em isentar de impostos a importação do etanol. Foi a salvação da lavoura estadunidense. Como os EUA são, de longe, os maiores exportadores de etanol para o Brasil, os ruralistas trumpistas lavaram a égua. Aliviado do imposto, o preço do etanol norte-americano foi puxado para baixo, enquanto suas vendas fizeram movimento contrário.

Quem não gostou da generosidade presidencial foram os sucroalcooleiros brasileiros, produtores de etanol.

Atenta a seus reclamos, a base ruralista do governo no Congresso subiu nas tamancas. Chegou a ameaçar derrotar o Planalto nas discussões das reformas de grande interesse do ministro Paulo Guedes. E soltou uma nota afirmando que “os interesses norte-americanos não podem se sobrepor aos dos brasileiros”.

Podem sim, como se viu posteriormente.

Bolsonaro manteve a isenção, mas deu uma colher de chá aos reclamantes: a dádiva não era para sempre, duraria só um ano, até 31 de agosto do ano seguinte.

Desde os primeiros meses de 2020, os nossos produtores de etanol não viam a hora desse dia chegar. Sob o ataque do coronavirus, a economia brasileira estava fazendo água e o consumo de etanol vinha minguando, dia a dia, debilitando a saúde financeira dos sucroalcooleiros.

Com a volta do imposto, o etanol norte-americano perderia competitividade, e os produtores brasileiros poderiam aproveitar a oportunidade para aumentarem suas vendas e assim ganhar um certo alívio.

Doce ilusão.

Trump apelou de novo para a amizade e Bolsonaro não resistiu ao charme do então presidente dos EUA, prolongando a isenção de impostos até dezembro. Comtemplados justamente nos meses decisivos da campanha eleitoral norte-americana, os ruralistas ianques tiveram um poderoso incentivo para votarem e trabalharem pela vitória do seu líder.

Mas, e o Brasil com isso?

Seria a reeleição de Trump uma necessidade vital para nosso país, que justificasse as perdas da receita de impostos do país e de vendas dos sucroalcooleiros pátrios?

Os produtores estadunidenses de trigo e de suínos também não foram esquecidos pelo generoso governo do Brasil.

Os primeiros receberam uma quota de 750 mil toneladas para suas exportações, e o que é mais importante, isentas de taxas, vantagens até então exclusivas dos nossos irmãos do Mercosul.

E o mercado brasileiro foi aberto aos produtores de suínos norte-americanos. Os nossos produtores não ficaram propriamente satisfeitos. O Brasil é autossuficiente em suínos e ainda exporta 20% de seu rebanho. Não precisa importar porcos. Nem quer. Teme-se que os animais norte-americanos importados contaminem os brasileiros com doenças ignoradas entre nós.

Em retribuição às concessões do Brasil na área agropecuária, os EUA voltaram a permitir importação de carne bovina do nossos país, depois de verificarem não mais existirem os problemas sanitários que causaram a proibição anterior.

Não foi divino maravilhoso, não. Os EUA são os maiores produtores mundiais de carne bovina. Importam muito pouco, através de cotas distribuídas a grupos de países. O Brasil disputa uma quota de aproximadamente 64 mil toneladas/ano com diversas outras nações latino-americanas.

Não é grande coisa. Os maiores clientes da carne brasileira são os chineses, cujas compras deixam as exportações norte-americanas muito, muitíssimo atrás. “Para termos de comparação, somente em dezembro do ano passado, o Brasil exportou 185 mil toneladas de carne bovina, sendo a maior parte para a China, países árabes, Irã e outros (Jornal do Comercio, online, 29/09/2020)”.

Os resultados da aliança especial dos dois presidentes se fez sentir também na área industrial.

Em fins de agosto, o governo norte-americano anunciou o corte de 80% nas importações do aço brasileiro.

O objetivo imediato foi reduzir radicalmente a participação do aço semiacabado brasileiro no mercado dos EUA, em benefício da produção local.

O aço estadunidense é fabricado pelas siderúrgicas do chamado cinturão da ferrugem. O nome diz muito, são empresas decadentes, que não têm condições de competir com produtos importados, inclusive do Brasil.

Trump prometeu recuperar estas siderúrgicas, trazê-las de volta aos bons tempos. Como não conseguiu, e as eleições estavam aí, ele preferiu seguir o caminho mais fácil: barrar a entrada dos concorrentes internacionais. Sejam ou não aliados especiais do presidente.

O governo brasileiro não criticou a medida, o que foi visto por analistas como mais um indício do apoio de Bolsonaro à reeleição do republicano.

Inicialmente, o governo Trump pretendia taxar o aço brasileiro em 25%. Graças à ação do nosso ministro das Relações Exteriores, ele aceitou trocar a taxação pelo corte de 80% nas exportações de aço brasileiro.

Foi um caso clássico de “pior a emenda do que o soneto. Para o setor produtivo, dizem os especialistas, pôde ser uma solução ainda pior que a tarifa, já que na prática impede a exportação pelo Brasil (BBC NEWS, 16/09/2020)”.

Talvez para economizar a tinta da caneta com que assinou a redução da quota de aço brasileira, o presidente Trump assinou aumentos galopantes nas tarifas de importação de alumínio; 18 países foram atingidos, inclusive o aliado especial, o Brasil, do parceiro Bolsonaro.

Segundo a Casa Branca, as siderúrgicas desses países estavam se comportando muito mal, fazendo dumping no alumínio. Ou seja, vendendo esse produto a preços inferiores aos valores do mercado. Seria um pecado contra a livre iniciativa local, que estaria prejudicada pelas práticas desonestas dos concorrentes estrangeiros.

Para se ter uma ideia do tamanho da paulada no Brasil, a tarifa pulou de 48,33% para 135,63%. Quase triplicou.

O alumínio brasileiro tinha mercado certo nos EUA. Em 2019, de acordo com o Departamento de Comércio dos EUA, as importações de chapas de alumínio dos 18 países supertarifados somaram 1,6 bilhão de dólares, sendo que 97 milhões vieram de empresas brasileiras.

Neste ano, elas contavam faturar bem mais. Vai acontecer o contrário devido ao aumento do imposto com que Trump nos regalou.

Os exportadores do nosso país acharam injusta a acusação da prática de dumping, uma mera desculpa para agradar as siderúrgicas norte-americanas e fortalecer as chances eleitorais do então presidente no cinturão da ferrugem.

Disse Milton Rego, presidente executivo da Associação Brasileira do Alumínio (ABAL): “A Abal e suas associadas estão se defendendo nos fóruns adequados. A atitude de estipular taxas, antes mesmo de concluída a investigação sobre uma suposta prática de dumping, prejudica enormemente o Brasil, uma vez que os EUA são o principal mercado comprador das nossas chapas de alumínio (6 MINUTOS, 10/10/2020)”.

Para a Confederação Nacional da Indústria (CNI), as medidas anunciadas por Trump “vão afetar US$ 3 bilhões em exportações brasileiras de ferro e aço e US$ 144 milhões em exportações de alumínio” (Jornal do Comercio SGS, 16/11/20).

Muy amigo...

Mas Trump não deixou sem retribuição todos estes sacrifícios que o Brasil teve de aceitar, muitos deles pelo sonho de reeleição do amigo do nosso presidente.

Além da já mencionada (e pequena) quota nas exportações de carne aos EUA, compartilhada com diversas nações latino-americanas, ganhamos a garantia de que os norte-americanos promoveriam a entrada do Brasil na OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico).

Em contrapartida, nosso país teria de renunciar ao tratamento diferenciado nas negociações da OMC (Organização Mundial do Comércio), de que fazemos parte. Com isso, não mais poderíamos gozar de certos benefícios previstos para países emergentes em negociações com países ricos.

Valeria a pena, segundo a propaganda oficial, pois integrar a OCDE - a organização dos países ricos, seria um verdadeiro maná, que certamente traria para o Brasil a confiança e os mais volumosos investimentos internacionais.

De fato, Trump indicou o Brasil para se tornar país-membro na reunião do Conselho da entidade. “Os EUA querem que o Brasil se torne o próximo país a iniciar o processo de adesão à OCDE”, disse, em nota, o Departamento de Estado dos EUA.

Só que essa indicação não basta, exige-se a aprovação de todos os 37 países-membros, o que costuma levar de 3 a 5 anos.

Fazendo um breve resumo de todos estes infaustos fatos: o Brasil sofreu uma série de taxas pesadas nas suas exportações aos EUA e fez concessões concretas atendendo interesses de Trump, recebendo em troca a promessa de algo que poderá acontecer daqui a uns 3/5 anos, caso o presidente Joe Biden, ou um eventual sucessor, mantenha o ato de Donald Trump.

Por enquanto, o suposto benefício não passa de uma abstração, como parece ser outra das vantagens de termos um presidente amigo do peito de Donald Trump: o título de “amigo extra da OTAN,” o que nos permitirá adquirir armamentos modernos norte-americanos em condições especiais.

No entanto, essa promessa pode ser mais uma ação de marketing para promover a venda de armamentos made in USA.

Não é certo que as condições especiais dos EUA serão sempre melhores do que as de outros países. Isso não aconteceu quando a Turquia preferiu o sistema antimíssil russo S-400, em relação ao norte-americano Patriot. O negócio com Moscou foi mais vantajoso, apesar dos turcos, como membros da OTAN gozarem de condições especiais.

Quanto à segunda dúvida, a que versa sobre os efeitos do mal estar existente entre Bolsonaro e Biden, acho que o presidente estadunidense não levará divergências pessoais para o relacionamento Brasil-EUA.

Pelo seu passado, ele parece ser um político que tem a cabeça no lugar. Tudo indica que seu relacionamento com Bolsonaro será de chefe de Estado com chefe de Estado.

O Brasil deverá ser respeitado por ser o maior país da América do Sul e por seu imenso potencial geoeconômico. Não pelas qualidades (ou falta delas) do seu presidente.

Claro, sendo presidente dos EUA, Biden vai querer firmar-se como líder mundial. Já durante a campanha eleitoral, ele demonstrou disposição de defender uma questão do maior interesse da comunidade internacional que é a preservação ambiental. E o fez, dirigindo-se a Bolsonaro, até agressivamente, com ameaças de sanções, caso persistisse em sua passividade diante da derrubada das florestas e das queimadas na Amazônia.

Depois de assumir a presidência, espera-se que Biden pressione o presidente do Brasil para melhorar seu mau comportamento, lembrando-o de que o ambiente exige respeito.

Acreditamos que nosso presidente, apesar de suas bravatas, ceda ao poder do mais forte. Mesmo porque o Brasil já se alinhou incondicionalmente aos EUA, e não apenas por causa da amada liderança de Donald Trump.

Ernesto Araujo, o bizarro ministro de Relações Exteriores da “nova era”, esboçou uma teoria para justificar a política externa do governo.

O mundo se dividiria em dois blocos. O Ocidente civilizado e terrivelmente cristão, ameaçado pelo Oriente bárbaro, auxiliado por grupos de globalistas marxistas que, infiltrados nos regimes ocidentais unilateralistas, tentam solapar suas bases.

Cabe ao presidente dos EUA liderar a luta dos países do Bem contra as forças do Mal: China, Rússia, Irã, Coréia do Norte, Cuba, imigrantes islâmicos e centro-americanos.

O papel do Brasil nesse mundo de fantasia seria seguir fielmente o comando do líder supremo do Ocidente, o presidente dos EUA.

Dificilmente Biden tratará mal um país cujo governo se coloca tão gentilmente sob suas ordens.

Claro, Bolsonaro precisa dar provas inequívocas de que realmente tornou-se um defensor das árvores e dos ares brasileiros.

Talvez demitindo aquele que se tornou um símbolo da destruição do meio ambiente, seu ministro, Ricardo Salles.

Se o fizer, todos nós passaremos a respirar tranquilos.

Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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