Correio da Cidadania

O lado feio do louvado programa de vacinação de Israel

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Pressionado pela ONU, Israel enviará 5 mil vacinas a palestinos -  CartaCapital
Dias a fio, a imprensa brasileira em peso derramou-se em elogios à eficiência de Israel na aplicação em massa das vacinas anti-Covid 19. Merecidos, Israel oferece o maior índice per capita de doses aplicadas em todo o mundo.

Contrastando com sua abundante e entusiástica cobertura, nem a TV, os jornais, as rádios ou as revistas deram o espaço devido a uma falha, que mancha a gloriosa imagem alcançada pelo feito israelense: a negativa israelense de vacinar os palestinos da Cisjordânia ocupada e do estreito de Gaza.

Em 15 de fevereiro, enquanto 46% dos israelenses, inclusive colonos judeus nos assentamentos, já tinham sido vacinados - quase 5 milhões de palestinos continuavam excluídos dos programas de vacinação de Israel. Indefesos no fragor da pandemia, mais de 2 mil palestinos já haviam morrido até metade do mês de fevereiro, vítimas da Covid 19 e da indiferença do governo Netanyahu, retratada nas sarcásticas explicações do ministro da saúde, Yuri Edelstein.

Biopolítica contra o inimigo

“Se é responsabilidade do Ministério da Saúde de Israel cuidar dos palestinos, o que exatamente é a responsabilidade do Ministro da Saúde da Palestina, cuidar dos golfinhos no Mediterrâneo (BBC, 26/01/1011)”?

Na verdade, como país ocupante da Cisjordânia, Israel é responsável, sim, de acordo com o art. 56 da 4ª Convenção de Genebra: “os Estados que detêm poderes de ocupação tem a responsabilidade de manter hospitais, médicos e serviços, a saúde pública e a higiene nos territórios ocupados, com particular ênfase na adoção e aplicação das medidas preventivas e profiláticas necessárias para combater a propagação de doenças contagiosas e epidêmicas”.

O governo de Jerusalém tenta se justificar: no Acordo de Oslo entre Israel e palestinos (várias vezes violado por ele) esta função no território palestino caberia à Autoridade Palestina, uma entidade com escassos poderes, assim mesmo sobre menos de 30% da Cisjordânia.

Seja como for, sendo lei internacional, a Convenção de Genebra sobrepõe-se a um simples acordo regional, por sinal leonino. Ele visava avançar gradativamente a partir de 1993, até se chegar à criação de um Estado Palestino soberano. Esse objetivo até retroagiu depois que, em dezembro último, o premier Netanyahu anunciou que iria anexar a Israel cerca de 30% do território habitado pelos palestinos.

A ilegalidade da recusa israelense não modificou nada.

Afinal, desrespeitar o Direito Internacional tem sido prática habitual do regime sionista, o qual jamais foi punido por essas transgressões. Cada vez que isso é proposto no Conselho de Segurança da ONU, os EUA pressurosamente vetam.

Neste século, a única vez que os EUA não agiram assim foi quando, no fim do governo Obama, Washington ousou ficar neutro diante de uma decisão que mandava Israel cessar a expansão dos altamente ilegais assentamentos na Cisjordânia.

Como se sabe, não adiantou muita coisa. Até hoje Netanyahu continua estabelecendo novos assentamentos.

Há ainda um imperativo ético a se levar em conta, pelo menos na órbita dos países civilizados. Acompanhe meu raciocínio.

A Autoridade Palestina não tem recursos próprios para vacinar seu povo.
Israel tem de sobra. Adquiriu um volume tão grande de imunizantes que quase metade da sua população já foi vacinada somente por um deles (da Pfizer). E estão ainda sobrando muitas doses dessa vacina.

Não foi necessário usar doses da outra vacina comprada (da Moderna). Estima-se que, provavelmente, irá demorar muito tempo para que se comece a vacinar com a Moderna.

Como disse o pragmático ministro Yuri Edelstein: ”Quando tivermos atendido todos os cidadãos, então focaremos a atenção nos vizinhos”.

Uma vez que devem sobrar muitas vacinas, por que Israel não começa as aplicar agora nos seus vizinhos palestinos? Com isso, muitos deles, principalmente idosos do grupo de riscos, não precisariam esperar semanas até que todos os israelenses fossem vacinados, conforme o friamente delineado pelo ministro Edelstein?

Caso não mude a orientação atual, o Covid contaminará e matará um número ponderável de palestinos, desnecessário, porém evitável.

Note, porém, que o regime sionista não pretende deixar todos os palestinos indefesos para sempre.

Em algum momento, os que ainda não forem contagiados deverão ser vacinados pois, conforme o ministro da Saúde Edelstein explica: “não é nossa obrigação legal, mas é nosso interesse garantir que os palestinos tenham a vacina, para que não tenhamos a propagação da covid-19”.

Ou seja, só iremos vacinar palestinos para que eles, quando contagiados, não acabem passando o Covid para os cidadãos israelenses.

Não é uma motivação rigorosamente ética. Mas ética, para o governo Netanyahu, só é considerada quando países adversários desrespeitam seus princípios.

Mais um vexame global

O procedimento ilegal e antiético do regime sionista provocou a repulsa internacional entre organizações de direitos humanos, governos, intelectuais, cientistas e políticos, principalmente.

Transcrevo a seguir algumas manifestações, eu diria moderadas, que foram expressas nos EUA.

Representante democrata Jamal Bowman, que derrotou nas primárias o favorito, Eliot Engel, conhecido político pró-Israel:

“Netanyahu precisa garantir que tanto israelenses quanto palestinos tenham acesso à vacina contra Covid. Essa (sua) crueldade é um outro alerta do porquê a ocupação deve acabar (Middle East Eye, 16/02/2021)”.

Representante democrata Joaquin Castro, político progressista, candidato vencido na eleição de presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara:

“Eu elogio Israel por liderar o mundo na vacinação do seu povo, mas estou desapontado e preocupado pela exclusão, pelo governo sionista, dos palestinos que vivem sob ocupação, apesar das vacinas anti-Covid estarem disponíveis aos israelenses assentados na Cisjordânia”.

JStreet, organização liberal judaico-americana, invocando o art.56 da 4ª.Convenção de Genebra: “Israel deve cumprir sua obrigação moral e legal para trabalhar com a Autoridade Palestina, garantindo que todos os residentes no território que governa – não apenas os cidadãos israelenses - recebam os serviços médicos necessários”.

Diante das duras críticas que explodiram em várias nações, o governo Netanyahu acabou se comprometendo a enviar 5 mil vacinas à Cisjordânia.

Serão suficientes para proteger apenas 2.500 palestinos, numa população de 3 milhões de habitantes (Middle East Eye, 17/02/2021). Não se pode dizer que se tratou de um excesso de generosidade.

Até 17 de fevereiro, a Cisjordânia recebeu 12 mil doses, sendo 10 mil da Rússia e 2 mil das 5 mil prometidas por Israel.

Segundo o coronel Eyal Zeevit, membro da coordenação de atividades israelenses nos territórios, seu governo deverá enviar doses suficientes para atender 18 mil palestinos da Cisjordânia e da faixa de Gaza, região habitada por 2 milhões de pessoas.

Não se sabe quando. Israel não tem muita pressa em libertar palestinos da ameaça do vírus. Espera-se, com ansiedade, a chegada da colaboração da Organização Mundial de Saúde, que deverá representar vacinas para 20% da população, além de 2 milhões de doses, oferecidas pela Astra Zeneca.

Mahmoud Abbas, chefe da Autoridade Palestina, conseguiu espremer o esquálido tesouro da entidade para comprar uma quantidade substancial de vacinas. Diversos países estão ajudando, com a oferta de recursos.

Considera-se que é dever de Israel cuidar também da vacinação do povo de Gaza, segundo o disposto no mesmo art. 56 da Convenção de Genebra.

Embora a faixa tenha um governo próprio, o Hamas dispõe de meios limitados para administrar Gaza, pois Israel exerce controle total do território, incluindo portos de entrada, espaço aéreo, estradas e outras infraestruturas necessárias para a importação, distribuição e aplicação das vacinas.

Algumas autoridades israelenses não estão propriamente felizes com a obrigação de proteger a vida de um povo, cuja maioria, expulsa de suas propriedades em Israel nas guerras de 1948 e 1967, pleiteia sua volta ao país onde vivia.

Talvez por isso, um pacote de 2 mil doses enviadas pela Autoridade Palestina para vacinar os médicos e demais profissionais envolvidos no combate ao Covid-19, foi barrado na fronteira pelo exército de Israel, em 15 de fevereiro. Os militares alegaram necessitar aprovação do seu governo (Haaretz, 16/02/2021).

Na mesma ocasião, Zvi Hauser, chefe do comitê de Relações Exteriores do Knesset (parlamento israelense) aprovou a ação militar de forma ardente: “eu não vejo Yanya Sinwar (líder do Hamas) oferecendo sua vacina misericordiosamente para uma enfermeira. Assumo que (as vacinas) irão primeiro para os líderes do Hamas, os caras responsáveis pelo sequestro de israelenses”.

Mas, a pressão internacional pesou mais do que o radicalismo do político. As 2 mil vacinas acabaram recebendo autorização para entrarem em Gaza.

Por enquanto, muito a contragosto, Israel vai enviando em conta-gotas as vacinas prometidas à Cisjordânia e à faixa de Gaza.

Como disse a jornalista Shanon Torrens: apesar dos elogios, não é possível ver o programa de vacinação israelense como um êxito se não vacinar um grande número de pessoas – os palestinos – que Israel tem obrigação de vacinar. Na verdade, isso representa o grande fracasso do programa de vacinação israelense.

Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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