Correio da Cidadania

Até aqui chegou o meu amor: a tensão entre Bolsonaro e os generais

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Fernando Azevedo e Silva / Foto: Fernando Camargo, Agência Brasil

“Do cerco do Congresso, dos tribunais superiores, dos diplomatas, dos médicos, dos enfermeiros, dos ambientalistas, dos economistas, dos advogados, dos banqueiros e dos grandes empresários, foi gerado um grito unânime em Brasília: Basta! Basta de desgoverno, basta de delírios ideológicos e ameaças golpistas, basta de fundir o país no cenário internacional”, escreveu esta terça-feira a especialista em assuntos castrenses Eliane Cantanhêde no jornal mais conservador do país [O Estado de S. Paulo, 30/03/21]. Todos os analistas coincidem que o presidente Jair Bolsonaro tentou subordinar as Forças Armadas a uma iniciativa própria contra a ordem institucional. Incluindo o general Sérgio Etchegoyen, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) de Michel Temer, que foi enfático em se distanciar do oficialismo em uma entrevista à Rádio Gaúcha, também na última terça, na qual declarou: “as Forças Armadas estão maduras e não serão um fator de instabilidade”.

Segundo a colunista Thaís Oyama, “o que fez o presidente foi pedir a cabeça do comandante do Exército, Edson Pujol, pela negativa do general a se manifestar contra a decisão judicial que anulou as condenações do ex-presidente Lula no começo do mês” [UOL, 30/03/21]. O ex-capitão e atual mandatário exigia, desse modo, uma iniciativa militar similar a que teve o comandante do Exército Eduardo Villas Boas em 2018, quando, às vésperas do pronunciamento do Supremo Tribunal Federal sobre um habeas corpus que podia haver habilitado Lula a se apresentar como candidato nas eleições daquele ano, tuitou que o Exército “repudiava a impunidade”, exercendo pressão sobre a Justiça para que vetasse o dirigente petista.

Na ocasião atual, o general Fernando Azevedo e Silva, ministro da Defesa até a última segunda-feira, se negou a seguir a cartilha de Bolsonaro e alinhar seus pares, incluindo Pujol, com os desígnios do presidente. O problema, como aponta Cantanhêde, é “a mania de exigir submissão incondicional” a seus ministros e cargos de governo, que agora parece haver encontrado um limite preciso.

Rechaço militar

Azevedo insiste em sua carta de despedida: “durante este período [sob o comando da pasta] preservei as Forças Armadas como instituições de Estado”. É uma mensagem indireta ao que havia feito o presidente ao querer usá-las para seu projeto político pessoal. De fato, na manhã de terça (30), os três chefes das Forças Armadas entregaram suas demissões ao novo Ministro da Defesa, o general Walter Braga Netto.

Segundo afirma O Globo, com base em fontes palacianas, se trata de uma mensagem do alto comando militar de que “não cederá ao golpismo” (O Globo, 30/03/21). Para a colunista Cantanhêde, Braga Netto “encontra o ambiente militar contaminado pela política, dividido e polarizado”. Mas a dúvida maior, estima, radica em saber se o general (que até agora era chefe de gabinete do Bolsonaro) assume o cargo “para fazer o jogo sujo que seu predecessor teve a dignidade de rechaçar”.

O certo é que a solidão levou o presidente a buscar apoios que não deveria. Não teve outro caminho senão aceitar a reforma ministerial que abre ainda mais as portas do seu governo para o centrão (formalmente o centro político do Congresso, mas, realmente, o que os brasileiros chamam de ‘deputados de aluguel’, que se prestam a qualquer aliança a fim de assegurar seus cargos). Dois dos novos ministros vêm diretamente desse setor, mas ao menos cinco das seis mudanças ministeriais dessa semana formam parte de uma necessária coalizão de um presidente que assumiu discursos contra a velha política, mas que na metade do seu mandato teve de render-se a ela. “A reforma ministerial reflete o debilitamento político do presidente Bolsonaro, que aumenta sua dependência do centrão e perde o apoio militar”, estima o analista Kennedy Alencar (Folha, 30/03/21).

Alguns estimam que esta crise representa o fim do governo Bolsonaro, já que não poderia lidar com tantos adversários ao mesmo tempo, em particular com os militares. A renúncia dos três comandantes não tem precedentes no país, o que reflete a profundidade dos desacordos. Divergências que, a rigor, se arrastam desde novembro, quando uma reunião dos ministros militares com o vice-presidente Hamilton Mourão provocou a ira do presidente.

Inimigo das quarentenas, Bolsonaro afirmou em 19 de março: “meu Exército não vai cumprir o lockdown nem por ordem do papa”, afirmou quando consultado se as tropas poderiam auxiliar os governadores e prefeitos para reforçar as medidas sanitárias de restrição da mobilidade (El País, 30/03/21). Agora, os uniformizados decidiram abaixar-lhe a voz.

China, empresários e sociedade

“Aos chineses não interessa que os países mantenham sua liberdade, já que não a têm ali”, espetou faz dois anos o chanceler Ernesto Araújo em uma entrevista para a Revista Piauí. Mas o ministro mais ideológico do gabinete de Bolsonaro teve de renunciar na última segunda (29) diante de pressão do Congresso e, sobretudo, de representantes do poder econômico, o que mostra os novos ventos que sopram no Brasil e em todo o mundo.

Segundo o El País Brasil, Araújo é “um fervoroso anticomunista e trumpista, considerado o maior responsável de que o país não tenha conseguido comprar doses suficientes para uma vacinação em massa, que permitisse, por sua vez, vislumbrar um horizonte para uma recuperação econômica” (El País Brasil, 29/03/21). À crise causada pelo transbordamento dos hospitais e das UTIs se somou na semana passada o fato de que dez senadores pediram sua renúncia e que no final de semana circulou uma carta apoiada por 300 diplomatas de carreira que pediam sua demissão.

Araújo não atuava como Chanceler, mas como propagandista, como estima boa parte dos analistas brasileiros. Seu rechaço à China chegou ao extremo de denominar o coronavírus como “comunavírus”, na mesma sintonia em que Donald Trump o chamava de “vírus chinês”. Dado que a China é o principal mercado para as exportações brasileiras e seu principal parceiro comercial desde 2013, a ideologia de Araújo se transformou em um obstáculo para a economia brasileira. A pressão empresarial resultou ser a mais pesada para sua sobrevivência. Em 21 de março foi difundida uma carta pública assinada por mais de 1500 economistas, líderes empresariais e banqueiros que aponta que é ilusório imaginar uma economia em auge com a pandemia fora de controle. A missiva foi decisiva para a renúncia de Araújo.

A carta exige respeito pela ciência e uma adequada gestão governamental, sugere um fechamento da atividade não essencial e o passo a uma tomada de decisões coordenada “para por fim à deterioração que está experimentando a nação” (El País Brasil, 21/03/21). O ponto central do documento é a rejeição ao dilema entre o fechamento e a manutenção da atividade econômica.

“De fato, os dados preliminares sobre mortes e desempenho econômico sugerem que os países com o pior desempenho econômico tiveram mais mortes por covid-19. A experiência demonstrou que inclusive os países que inicialmente optaram por evitar o bloqueio terminaram adotando-o, de diversas formas, diante do agravamento da pandemia”, apontam – citando o caso do Reino Unido – os líderes empresariais e economistas afins.

Raul Zibechi é cientista político uruguaio.
O artigo foi publicado em espanhol pelo semanário Brecha e pelo site da Correspondencia de Prensa Al’Encontre, ambos uruguaios.
Traduzido por Raphael Sanz para o Correio da Cidadania.

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