Um mestre da conciliação de classes na periferia do capitalismo?
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- Potiguara Lima
- 12/04/2021
O discurso de Lula na segunda semana de março de 2021, após decisão do STF que lhe restituiu os direitos políticos, gerou esperança em setores importantes da população brasileira. A decisão de um dos ministros da Suprema Corte expôs os casuísmos e inconsistências que marcaram a retirada de Lula das eleições presidenciais de 2018 e criaram uma empatia com a situação vivida pelo ex-presidente. Para muitos, só o fato de voltar ao xadrez político uma liderança de peso que reafirme princípios civilizatórios básicos, como a importância da vacinação e o respeito a mulheres, negritude e população LGBTQIA+, já traz um alento importante.
Afinal, vivemos no país uma crise humanitária em que já estão na casa das centenas de milhares as mortes causadas pela política bolsonarista de busca ativa da imunidade de rebanho diante da pandemia. O bolsonarismo é a expressão no contexto brasileiro de um fenômeno mais amplo de degradação política. Esse fenômeno é expresso no mundo todo através de variantes neofascistas que procuram sustentar à base de violência aberta padrões intensos de espoliação classista, racista, sexista, além de manifestarem desprezo em relação às consequências drásticas da destruição ambiental.
No Brasil, com propostas do tipo “ou trabalho ou direitos”, “reforma da previdência” e “autonomia do Banco Central”, o candidato Bolsonaro foi calorosamente acolhido pelas classes dominantes. Se pensarmos com calma, o presidente tem entregado o que prometeu e não terá nenhum problema em atender todos os desejos das classes dominantes brasileiras que, por trás de uma retórica liberal completamente fora de lugar, se sustentam em um padrão ultrarregressivo de exploração dos trabalhadores e do povo.
É notável a influência fascista no bolsonarismo. É um movimento de massas que incentiva e mobiliza toda sorte de ressentimentos sociais que se mostram úteis à manutenção das desigualdades de classe, gênero e raça e mantém inquestionável e intocada a hegemonia do grande capital sob a organização da sociedade.
Para aqueles que creem na linearidade do progresso social, é inacreditável ver como presidente da República de um país continental um sujeito cujo histórico e valores remonta à defesa da tortura e do extermínio como política de Estado, à misoginia mais asquerosa, que dá ao homem o “direito ao estupro” ou a manifestações de desprezo e intolerância a negros e gays. Mas uma visão mais acurada da história revela facilmente que o desenvolvimento do capitalismo não tem relação com progresso social. Por isso, não são raras as circunstâncias em que as classes dominantes, os detentores do capital, lançam mão das estratégias mais vis para garantirem a elevação de suas taxas de lucro.
Bolsonaro é dos instrumentos políticos mais abjetos com que a burguesia brasileira pode contar para manter a espoliação do povo e sustentar seus privilégios. Sua obstinação é tanta nesse sentido que ele se dispôs a promover o extermínio de parte expressiva da população brasileira sob o pretexto de “salvar a economia”, quando na verdade as medidas tomadas visam exclusivamente garantir o lucro de alguns poucos especuladores e grandes empresários. Não há como não rechaçar veementemente a política bolsonarista.
E a deterioração econômica, social e política provocada pelo bolsonarismo é tamanha que mesmo setores das classes dominantes avaliam se não caberia um padrão de dominação política com um pouco mais de mediações. Lula é a liderança aparentemente mais cacifada ao papel de organizador dos interesses das classes dominantes sem propor ou defender abertamente a violência social contra pobres, mulheres, negros, indígenas, gays etc. Pelo contrário, Lula defende em seus discursos tolerância e oportunidades a qualquer pessoa. E sente imensa alegria quando observa trabalhadores se alimentando, e com prazer, o que é bem representado com o acesso à picanha aludido em sua fala de 10 de março.
Baseado em sua crença no amor entre os seres humanos independentemente de classe social, Lula propõe, por um lado, calma e esperança para milhões e milhões de brasileiros, a maioria dos quais em condições de vida bastante degradantes; por outro lado, Lula exorta as classes dominantes a se sensibilizarem com o sofrimento do povo. “Eu preciso conversar com os empresários. Eu quero saber aonde é que está a loucura deles de não perceberem que, se eles quiserem crescer economicamente, se eles quiserem que a bolsa cresça, se eles quiserem que a economia cresça, é preciso garantir que o povo tenha emprego, que o povo tenha renda, que o povo possa viver com dignidade, senão não há crescimento”.
Se Lula conseguirá convencer as classes dominantes brasileiras a assumirem um papel “minimamente” civilizatório e conseguirá convencer o povo de que o melhor é esperar pela volta de um crescimento econômico que permita a mais gente comer picanha e andar de avião, caberá à história dizer. De nossa parte, entendemos que o agravamento dos nunca-enfrentados problemas estruturais do país, sintetizados na dupla articulação “dependência externa-segregação social”, tornam os objetivos de Lula bastante frágeis.
Do ponto de vista do povo brasileiro, não há caminho para uma vida digna para todos que não passe pelo enfrentamento e derrota daqueles que baseiam seus lucros e privilégios sobre a especulação financeira com o orçamento público e sobre a economia dependente da exportação de alguns poucos produtos primários.
É preciso acabar com o subdesenvolvimento endêmico e a concentração de renda e fundiária associadas à atual dinâmica econômica brasileira. Construir a verdadeira saída histórica, que é mudar profundamente o país, será muito mais duro que depositar as esperanças nas habilidades conciliadoras de um líder carismático.
O futuro que precisamos depende de muita organização e luta popular por comida, água, casa, trabalho, terra, indústria, saúde e educação. Esse é o único caminho para garantirmos dignidade para o povo e soberania nacional.
Potiguara Lima é professor da rede pública estadual.