Correio da Cidadania

Brasil: pibinho faz fumaça e acelera ingovernabilidade

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Por que o tão temido golpe de Jair Boçalnaro anunciado para a Semana da Pátria acabou não acontecendo? Por vários motivos. Um deles, talvez o menos importante, porque Boçalnaro não tem capacidade política nem para ser ditador.

É claro que qualquer boçal pode ser um ditador. Até generais como Mourão, Pazuello etc. reúnem todas as credenciais para o distinto cargo. Como era o caso dos Médici, Figueiredo e outros intelectualmente desclassificados da pátria amada Brasil.

O problema é que Boçalnaro não é um boçal qualquer. Ele é um boçal especial. Vejam, por exemplo, o seguinte fato: ele passou quase 30 anos como deputado na Câmara Federal e nunca comandou nenhuma Comissão de qualquer assunto relevante da Casa. Inércia total.

Ficava amoitado em seu infecto gabinete, onde quase ninguém especial entrava nem dava qualquer importância para aquela obscura criatura.
Passava o tempo todo fazendo requerimentos para beneficiar policiais, famílias de militares, paramilitares, milicianos, antigos torturadores na ditadura e outras sinistras figuras do submundo policial. Esta sempre foi sua base social e eleitoral. Garantia de reeleições e mandatos sucessivos.

Nas grandes questões da Câmara seguia bovinamente as decisões das lideranças do “baixo clero”, rebatizado atualmente como “centrão”, ao qual sempre pertenceu. Sempre passivo, medíocre, silencioso, traiçoeiro. Corpo e alma de torturador. Útil apenas para cumprir as tarefas mais inglórias e sujas dos seus patrões burgueses.

Agora, quando é empurrado não pela burguesia, mas pela sua base de delinquentes sociais para tomar uma atitude e comandar um golpe militar tradicional, ele fracassa. E a ingovernabilidade burguesa se aprofunda um pouco mais no território do inusitado e do imprevisível.

Mas poderia alguém melhor preparado politicamente que Boçalnaro ser um ditador como todos estão acostumados a imaginar? Uma ditadura militar old fashioned seria adequada para as necessidades atuais da administração burguesa da luta de classes no Brasil? Tudo indica que não.

Portanto, a seu favor pode-se argumentar que o golpe da semana da pátria não vingou simplesmente porque uma ditadura meia boca, fora de moda, inadequada, deste desclassificado ou de qualquer outro aventureiro, seria absolutamente insuficiente para enfrentar os inauditos desafios que a classe dos empresários e demais parasitas enfrentam neste momento.

A realidade material

Faz sentido. Afinal, as condições de funcionamento do sistema capitalista mudaram notavelmente nos últimos sete ou oito anos. Como cristalização de um processo mais largo conhecido como “globalização”, “neoliberalismo”, e outros imprecisos adjetivos do pensamento vulgar.

Como resultado destas mudanças reais o descontrole político burguês evoluiu para níveis a que não se assistia há muito tempo na maior economia do mundo ao sul do equador.

Esse corrosivo descontrole das instituições do Estado brasileiro é impulsionado em primeiro lugar por determinantes materiais. Sem novidade. Não é assim que as coisas funcionam? Observemos, inicialmente, esses determinantes em suas manifestações mais imediatas.

No início do mês, por exemplo, o IBGE informou que o Produto Interno Bruto (PIB) caiu no 2º trimestre abaixo de zero (- 0,1%) frente ao trimestre anterior.

Forte abalo na narrativa triunfalista dos capitalistas e seus economistas de mercado de que a economia havia retomado o crescimento. Nada mais ilusório.

A primeira vítima foi Paulo “Ipiranga” Guedes. Em um movimento incrivelmente sincronizado e orquestrado, “investidores” e Globo News iniciam no mesmo dia a fritura do seu até a véspera amado ministro da Economia.

O “pibinho” dos empresários brasileiros voltou com pompa e circunstância. Aliás, nunca deixou de ser “pibinho” nos últimos anos. O que aparecia como “retomada” era mistificação barata.

Passadas as turbulências estatísticas ocorridas com a pandemia, nos últimos quatro ou cinco trimestres, a situação fica menos embaçada: ao invés de uma imaginária “recuperação em V”, a produção e o produto nacional se apresentam com a mesma cara lavada e abaixo daquele já trágico nível de antes da pandemia.

Segundo relatório publicado pela OCDE, a economia brasileira é a única das grandes “emergentes” que apresentou queda no 2º trimestre deste ano. A economia que antes da epidemia (2019) já estava no fundo do poço depois da pandemia continua afundando. E deve continuar.

Marque esta conclusão. Para a análise das perspectivas políticas brasileiras devem-se tirar as todas as consequências do seguinte diagnóstico: o renitente “pibinho” que assombra há quase dez anos o país com mais de 210 milhões de habitantes para serem reproduzidos fisicamente não dá sinal de recuperação e de volta do crescimento econômico. Ao contrário, continuará afundando.

Burguesia incapaz

Esta anemia produtiva é histórica. Tem razões mais profundas que uma mera variação do PIB. Porém, o mais importante é saber como ela se apresenta agora. Há que se isolar e analisar o estado atual desta anemia.

Por isso é importante observar no mesmo relatório do IBGE de 1º de setembro que outras cruciais variáveis econômicas caíram muito mais catastroficamente que o PIB – que foi sustentado por um monte de penduricalhos improdutivos contabilizados em atividades no setor de serviços etc.

Nos setores produtivos da economia, a Agropecuária (o famigerado “agronegócio”) caiu 2,8%, enquanto a estratégica Indústria de Transformação – núcleo regulador da totalidade da economia – também amargou queda de 2,2%.

E, mais importante que tudo, a chamada Formação Bruta do Capital Fixo, que, embora grosseiramente, mede os investimentos produtivos na economia, caiu 3,8%!

Os empresários brasileiros formam uma classe de proprietários dos meios de produção social marcada geneticamente pela preguiça e passividade. Têm a mesma cara cultural e cognitiva dos diversos capitães do mato que instalam alternativamente na presidência da República.

Os empresários brasileiros constituem uma classe de “boçalnaros” da indústria. De “capitães da indústria” portadores de uma má formação mental geneticamente constituída que os torna irreversivelmente despreparados para agir, modernizar e aumentar as forças produtivas no país.

Assim, sem novos investimentos para a reprodução ampliada do capital, a produtividade da indústria brasileira de transformação caiu por três trimestres consecutivos.

No segundo trimestre de 2021, de acordo com o boletim Produtividade na Indústria, da Confederação Nacional da Indústria (CNI), a produtividade do trabalho caiu 1,6% em relação aos três meses anteriores. Voltou ao nível próximo ao do segundo trimestre de 2020, quando começaram as turbulências da pandemia.

Economia real afundando e gravíssimos problemas sociais aumentando. Mais de 32 milhões de trabalhadores desempregados, classificados como “população subutilizada”.

Todo mundo sabe que no regime capitalista de produção se o cidadão desprovido de qualquer meio de produção ou reserva não conseguir vender por longo período sua força de trabalho no mercado para ser consumida nas linhas de produção de capital, ele e sua família morrerão de fome.

Atualmente, a miséria e a fome explodem a olho nu nas ruas, avenidas e semáforos das grandes cidades do país. E vão continuar aumentando. Isso enquadra rigidamente as perspectivas políticas atuais da burguesia brasileira.

Porém, a população em geral só toma conhecimento dos atuais impasses e responsabilidades dos empresários e demais parasitas do sistema pela atual situação social quando a explosão dos preços ameaça diretamente o poder de seu rendimento (salário) para pagar pela comida, aluguel, luz, gás, transporte, remédios e outros meios básicos de reprodução e sobrevivência física.

A carestia está de volta. Misturada com o desemprego nas nuvens tudo muda na paz de cemitério dos empresários brasileiros. Resta saber se ela veio para ficar. Ou de que modo esta brusca elevação dos preços é apenas uma das manifestações de uma correspondente e não menos catastrófica desaceleração da produção de capital no país.

O fato é que a inflação oficial do país, medida pelo IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo), alcançou a maior taxa para um mês de agosto (0,87%) em 21 anos e, com o resultado, encostou em 10% no acumulado de 12 meses (9,68%).

É o que apontam os dados divulgados na quinta-feira, 9, por outro relatório do IBGE. Vejam o tamanho do estrago no gráfico abaixo.

Segue a inflação

Em agosto de 2020 a inflação nos últimos doze meses era de civilizados 2,44%. Agora, um ano depois, ela subiu para indecentes 9,68%. Esta fulminante elevação de preços é praticamente inédita. E letal para uma economia dominada da periferia que não tem moeda nacional reconhecida no mercado cambial internacional.

Quem não tem “moeda forte” só pode fazer política econômica fraca, inócua. Este é o destino dos governos de economias dominadas e seus impotentes economistas.

Ao chegar a praticamente 10% no acumulado de 12 meses, o IPCA ampliou a distância frente ao teto da meta de inflação (5,25%) estabelecida pelo Banco Central (BC). No acumulado até julho, a variação estava em 8,99%.
Estimamos que o IPCA se elevará para a faixa de 10,5 a 11,5% no mês de dezembro. Isto forçará necessariamente (e inutilmente) a elevação da taxa básica de juros (Selic) para pelo menos 10%.

Este já é um cenário conservador, pois supõe uma contenção e estabilização da tendência atual dos preços, considerando cenário altamente improvável de recuperação da economia global etc.

Na data de ontem o Boletim Focus, do BC, com previsões do mercado, indicava IPCA de 8,5% e taxa Selic de 8% em dezembro de 2021. Não é tão diferente do nosso cenário. De todo modo, ambos significarão forte desorganização de todas as variáveis fiscais e do orçamento do governo. E forte pressão também para maior desvalorização do real frente ao dólar. O Brasil é um ser cada vez mais inválido na ordem capitalista mundial.

O resultado de agosto do IPCA também mostrou um aumento mais generalizado nos preços. Quer dizer, a inflação se espalha como agressiva metástase para a maioria dos setores econômicos. Esta alta de preços mais disseminada pode ser medida pelo “índice de difusão” do IPCA.

Conforme o IBGE, o indicador, que analisa o percentual de itens contaminados com aumentos nos seus preços de mercado, passou de 64% em julho para 72% em agosto.

Quanto maior essa contaminação, mais difícil a reversão do processo. Indica fatores básicos muito fortes se manifestando na superfície e impulsionando o processo.

Por isso, da mesma forma que para explicar a volta do “pibinho”, os economistas estão perdidos na explicação da volta da carestia e da sua irmã gêmea, a desvalorização cambial da moeda nacional.

Não sabem dizer qual o remédio monetário e fiscal capaz de reverter o processo de inflação e de desvalorização cambial. Isso acontece porque eles não levam em conta em seu raciocínio limitado de comerciantes práticos o que determina o valor de uma moeda nacional, e, consequentemente, da taxa de câmbio.

Diferentemente do que se passa nas economias dominantes do centro do sistema, tanto o travamento do PIB quanto a elevação de preços internos no Brasil derivam fundamentalmente de uma baixíssima produtividade do trabalho e de uma estrutural fragilidade tributária e fiscal do governo. As duas coisas estão ligadas. E se retroalimentam.

Mas não se trata aqui das lições econômicas que cercam este problema da determinação do valor de uma moeda nacional, que já tratamos em inúmeros boletins passados.

Aqui se trata apenas de afirmar que os dados atuais da produção e da produtividade industrial no Brasil, que vimos de passagem acima, permitem antever um agravamento das condições econômicas e sociais no país.

E, se não podem receitar o remédio para os problemas atuais da economia, a única coisa que os capitalistas e seus economistas podem dizer com certa exatidão é que tudo que já está ruim pode ficar pior ainda.

Foi exatamente isso que eles andaram dizendo. Se há algumas semanas estimavam uma alta acima de 2% do PIB (Produto Interno Bruto) para 2022, agora eles já avaliam que o crescimento pode ficar abaixo de 1%.

O Banco JP Morgan, por exemplo, que antes projetava 1,5% de crescimento para o ano que vem, revisou a expectativa para 0,9%.

A MB Associados, outro respeitado núcleo de consultores de mercado, trouxe cenários mais precisos para o ano que vem. Antes, trabalhava com crescimento de 1,4% para o PIB de 2022, na última semana revisou as estimativas para 0,4%.

Para o ano que vem, a consultoria prevê coisas mais importantes que uma mera retração do PIB. Prevê - corretamente, diga-se de passagem - uma queda de 1,4% da produção industrial, com destaque para a indústria de transformação (-1,9%) e para a construção civil (-2,1%).

O Itaú Unibanco é outro que projetava um crescimento de 1,5% e revisou o avanço para 0,5% em 2022. E outra coisa muitíssimo importante: do mesmo modo que a maioria dos demais economistas da Faria Lima e Avenida Paulista os analistas do Itaú Unibanco também alertam para uma desaceleração da economia global no ano que vem.

Este cenário de crise global impactaria ainda mais fortemente a economia brasileira. Os economistas já detectam que os preços de commodities agrícolas e minerais pararam de subir, e alguns deles estão caindo, como o minério de ferro, milho etc.

As características e grau de profundidade da crise global, que devem começar a se materializar nos próximos trimestres no mercado mundial – economias dos EUA e China como detonadoras do processo – é o que dará régua e compasso da crise política e social brasileira.

O que será de nós?

Resta observar que um agravamento destas condições nacionais de reprodução do capital, com a profundidade que se anuncia nas breves observações acima, não acontece impunemente. E que estes ventos contrários de magnitude inédita dos determinantes materiais, muda também a qualidade do processo político.

São cruciais as consequências desta mudança de qualidade de uma crise política de governo, mais comumente observada, para uma rara crise de Estado. De uma crise institucional para uma crise revolucionária.

Assim, é no meio do caminho para esta incrível e tão esperada metamorfose de ingovernabilidade burguesa no Brasil que se pode entender melhor os motivos daquela impotência de Boçalnaro de aplicar um golpe militar convencional na Semana da Pátria.

O golpe seria bem sucedido, apesar da notória e particular boçalidade do seu executor, se fosse uma garantia de que os lucros continuassem a jorrar e a catástrofe social pudesse ser controlada pelas armas. Não convenceu as classes dominantes.

Mas não é só o fracassado golpe de Boçalnaro que não pode dar esta garantia. Tamanha façanha de salvar o capital e assassinar impunemente dezenas de milhões de trabalhadores da “população subutilizada” também não poderá mais ser obra de novo presidente legitimamente escolhido pelas confiáveis e auditáveis urnas eletrônicas do Supremo Tribunal Eleitoral.

Nenhum ditador mais articulado com o combate às desigualdades ou qualquer amigo do povo e suas inefáveis políticas públicas de combate à pobreza serão mais eficientes que Boçalnaro no enfrentamento da crise de ingovernabilidade do Estado capitalista brasileiro, que se aprofundou um pouquinho mais nas últimas semanas.

José Martins é economista e editor de Crítica da Economia, onde este artigo foi publicado.

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