Correio da Cidadania

Mil noites no Brasil

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Faça o que fizer nada vai impedir que o país sangre até o final deste mandato. Negacionismo, descaso, perversidade. O governo em tela passou por uma pandemia dizendo que era uma gripezinha. Não preparou o combate. Milhares morreram por isso. Não havia leitos, nem oxigênio, nem remédios, nem respiradores. Na Amazônia e no pantanal, a vida ardia em labaredas criminosas, abrindo caminho para o latifúndio jagunço. E quando a vacina chegou, o mandatário foi à televisão e às redes sociais dizer que não era para tomar, porque as pessoas iriam virar jacaré. Para os que queriam a vacina restou a espera e a confusão. Sem um sistema eficiente de compra e distribuição, cada estado teve de se virar como pode.

A produção de remédios, que sempre foi ponta de lança no país, vai minguando. O governo federal retirou a verba. Danem-se os doentes de doenças graves que dependem do público. Não há mais produção de remédio para o câncer, por exemplo. Milhares de pessoas foram entregues à própria sorte. Que paguem aos laboratórios privados, na farmácia, se puderem. Se não puderem, bem, morrer faz parte. Testes de Covid, vacinas e remédios de toda ordem mofam nos depósitos, trazendo prejuízo de milhões aos cofres públicos. Responsabilidade de quem? De ninguém. Ou quem sabe de algum funcionário de décimo escalão.

Ministro da Saúde vai à televisão dizer que não é pra vacinar adolescentes, que “estudos” dizem que não é seguro. Todas as entidades de saúde do país desmentem o ministro e os governadores decidem seguir com a vacinação. Dias depois o mesmo ministro viaja com a comitiva presidencial para a ONU e infecta deus e o mundo, com Covid. Fica de quarentena em Nova Iorque, enquanto o interino aqui volta atrás e diz que pode vacinar os adolescentes, sim.

É um deus nos acuda, um caos sem fim. As pessoas ficam perdidas sem saber em quem acreditar. O presidente segue dizendo que não é pra vacinar, mas a primeira-dama se vacina em Nova Iorque. De certo acredita que a vacina nos EUA é mais vacina que aqui. Aqui, o Instituto Butantan continua sendo atacado e vilipendiado. É brasileiro, é público.

Os preços do gás, da gasolina e da comida dispararam. A culpa de tudo foi repassada aos governadores, os vilões da hora. Tudo de ruim é coisa do governador e o que pode haver de bom, se é que há, o governo federal é o responsável.

A fome volta a assombrar o país e as mortes seguem em disparada. Já vamos chegar aos 600 mil óbitos, só de Covid, sem contabilizar as demais mortes que sobram com o descaso. Muita gente não quer se vacinar, seguindo o mito, impedindo assim a imunidade coletiva.

Na CPI da Covid, levada pela Câmara dos Deputados, os horrores se acumulam. Provas e mais provas da sistemática política de morte não provocam qualquer efeito. Os depoentes falam, contam os crimes e saem lépidos e soltos. Há os que nada dizem, mas as provas falam. E o depoimento da advogada dos médicos do plano de saúde (?) Prevent Senior escancara mais um trem dos horrores. Velhos sendo usados como cobaias do tratamento precoce, com remédios inúteis, sendo privados do oxigênio, para não gastar. E sem consentimento.

Nas comunidades empobrecidas a força policial segue matando gente negra. Os indígenas são assassinados à luz do sol, não há emprego, as universidades amargam cortes de orçamento e o presidente diz que “há professores demais”. Ainda assim, tudo parece seguir normal na Gottam City. Batman morreu de Covid.

Toda essa montanha russa de terror deveria levar as gentes ao protesto, à luta. Mas, não. As movimentações populares ainda são poucas e esporádicas. Os apoiadores da morte saíram às ruas no dia 7 de setembro saudando o mito. Os trabalhadores estão prometendo um ato bem grande agora, no dia 2 de outubro. Mas, ainda assim, ao que parece, seguiremos sangrando até 2023, quando finalmente terminar esse governo. Os partidos políticos, liberais de esquerda, apostam nas eleições de 2022, e esperam por elas, ainda que ao redor se queimem as vidas das gentes, clamando por socorro.

Enquanto isso, o ministro da Economia, intocável, segue fazendo suas trapalhadas de morte, elevando as taxas de juros, com o dólar a quase seis reais e passando as pautas meninas dos olhos da classe dominante, como a reforma tributária e o fim do serviço público. Tudo com o apoio da maioria do Congresso Nacional, cujos legisladores, saltitantes, aprovam sem pejo as propostas.

É inacreditável que tenham se passado mil dias, mil noites... Inacreditável que tenhamos tolerado isso.

No mundo das histórias de fada, quando se fala em mil e uma noites está se querendo dizer para sempre. No Brasil, passaram-se mil noites, passarão mil e uma?

Elaine Tavares

Elaine Tavares é jornalista e colaboradora do Instituto de Estudos Latino-Americanos da UFSC

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