Correio da Cidadania

Negociando as mudanças climáticas (2)

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Clique aqui e leia a primeira parte do artigo.

Quase todos os governos tergiversam

Enquanto os governos estavam reunidos em Glasgow, uma revisão dos informes que cada país apresenta sobre suas emissões de gases estufa viu a luz (*10). Ficou em evidência  algo que muitos suspeitavam: vários governos colocam armadilhas nesses informes.

Analisando os informes de 196 países foram encontrados muitos que não aportavam dados atualizados (como ocorre com várias nações petroleiras; por exemplo a Argélia que não reporta desde o ano 2000, e há outros 45 países que não o fazem desde 2009). Em outros casos, os dados são inquestionáveis porque não contabilizam adequadamente as emissões (por exemplo, o Canadá não incorpora os gases de efeito estufa emitidos pelo desmatamento ou a Austrália que não conta os que são gerados nos seus enormes incêndios). Finalmente, estão os países que exageram nas capacidades de absorver gases estufa para assim melhorar seus balanços finais (como faz a Malásia, apresentando seus bosques nativos como incríveis máquinas de capturar carbono).

A soma das emissões de gases estufa dos informes nacionais oficiais totalizam aproximadamente 44,2 bilhões de toneladas de CO2 equivalentes. Contudo, essas emissões não reportadas são estimadas de 8,5 a 13,3 bilhões de toneladas de CO2 e, ademais, há ao menos outro bilhão produzido por aviões que não são contabilizados por nenhum país. Portanto a cifra total real está na ordem dos 55 bilhões de toneladas de CO2. A situação é, portanto, ainda mais grave.


Legenda: Queimadas no Acre, em agosto de 2020. Créditos: S. Vae / F. Pontes.

No mesmo sentido, há países que oferecem programas de redução de emissões de gases estufa que ao final de contas lhes permite emitir ainda mais. O fazem prometendo uma redução das emissões ponderada contra um indicador econômico, por exemplo o Produto Interno Bruto. Em forma simplificada pode-se dizer que propõem que por cada milhão de dólares que movam uma economia nacional se baixarão as emissões de gases; este é o caminho escolhido por exemplo pelo Uruguai. Mas nisto há uma falácia, porque mais além da eficácia, se a economia cresce pode haver também um aumento do volume líquido dos gases emitidos (*11).

Deste modo navegamos uma situação onde tanto os inventários sobre os gases que cada país produz, assim como seus planos para mitigar essa emissão, estão repletos de problemas, blefes, exageros, omissões e manobras.

As limitações das clássicas divisões norte-sul

As clássicas divisões entre um “norte rico, industrializado e contaminador” e um “sul mais pobre, em vias de desenvolvimento que é contaminado pelo norte” nem sempre são úteis para analisar o que ocorre com as mudanças climáticas.

É certo que os Estados Unidos e as nações da Europa Ocidental, estiveram por longo tempo nos primeiros postos de emissões de gases estufa. Mas na atualidade a China é a primeira contaminadora global, emitindo quase o dobro que os EUA, que o ocupa o segundo posto, sendo seguido por Índia, Rússia, Indonésia, Brasil e Japão (*12). Como podemos observar, os países do sul e do norte aparecem intercalados na lista dos maiores contaminadores. Há países, como a China, que às vezes se apresenta como parte do “sul” imaginado em vias de desenvolvimento e outras vezes é claramente integrante do “norte”, também imaginado como industrializado e contaminador.

Outras ponderações confirmam que todos os países são responsáveis, onde os do “norte” e do “sul” se revezam e intercalam. Considerando as emissões por pessoa, no lugar dos aportes totais, ao topo do ranking se contarão por exemplo as nações petroleiras do Oriente Médio, mas logo estão todos intercalados. As emissões per capita dos Estados Unidos estão na ordem de 17,74 toneladas de CO2 e as de um boliviano estão em 11,12; um uruguaio apresenta 9,97 toneladas e um alemão 9,37 – já um argentino seria responsável por 8,89 toneladas enquanto um chinês está na casa das 8,4 toneladas (*13).

Também há os que consideram que a abordagem deva ser histórica. É certo que os países industrializados têm um enorme papel nessa situação, mas uma vez mais a situação não é tão simples. Considerando os gases emitidos entre  1850 e 2021, o primeiro responsável são os Estados Unidos com 20% desse total (*14). Seguido por China (11%), Rússia (7%), Brasil (5%) e Indonésia (4%). Há países europeus, como a Alemanha (4%) e Inglaterra (3%), que seguramente estão subvalorizados porque deveriam somar em seus quadros as emissões originadas no passado a partir das suas colônias. Mas como podemos ver, mais uma vez há responsáveis tanto no sul como no norte.


Legenda: Emissões históricas acumuladas de 1850 a 2021 de CO2 (milhões de toneladas). Baseado no reporte de S. Evans, em Carbon Brief (mais informações ao longo do artigo).

Estas particularidades mostram que uma divisão entre “norte” e “sul” já não tem os mesmos significados que no passado e deve ser manejada com cautela. Sem dúvida os clássicos representantes do “norte” têm maiores responsabilidades em vários sentidos, mas isso não deve levar a um simplismo de entender que o “sul” não contribui com as mudanças climáticas e que pouco ou nada deveria fazer para reduzir suas emissões.

Todos somos responsáveis

Como vários dos governos do “sul” insistem que não são responsáveis pela situação atual, ou que o sejam em uma pequena proporção, utilizam esse argumento para justificar ações que seguem contribuindo com as mudanças climáticas. Nessa posição se situam não apenas os governos, senão boa parte dos atores político partidários, mas também muitos atores na academia e em organizações cidadãs.

Esse raciocínio pode ser ouvido repetidamente na América Latina. Um dos exemplos mais conhecidos é expressado por Brigitte Baptiste, que da direção do instituto estatal dedicado a temas ambientais e de conservação, insistia que a Colômbia devia extrair e vender até a última gota de petróleo (*15). Seu raciocínio se baseia na ideia de que a Colômbia representa uma baixa proporção das emissões de gases estufa planetárias e que o país necessitaria do dinheiro que chegaria pelas exportações de hidrocarburetos. Ao mesmo tempo, essas posturas reclamam que a reconversão energética deveria estar financiada pelo “norte endinheirado”. Essas são posições muito comuns em diversos setores latino americanos.

Mas esse raciocínio exibe muitos problemas. Omite-se que os hidrocarburetos ou o carvão que se exporte a partir de países como a Colômbia, a Venezuela, a Bolívia, o Peru e o Equador, finalmente se queimarão em algum canto do planeta, e será daquele lugar que serão emitidos os gases estufa. Também se esquece da importância que têm suas emissões por desmatamento, agropecuária e outras mudanças no uso da terra (sobretudo no que se refere a emissão de metano). Finalmente, se minimiza que todos são responsáveis, mesmo o país que emita 0,01% do total mundial, porque cada um desses aportes se soma. Portanto, todas as nações devem reduzir suas emissões de gases estufa.

Contudo essa questão voltou a estar presente na COP26. Diante de um rascunho muito avançado do Pacto de Glasgow, a seção dedicada à mitigação das emissões de gases foi rechaçada por um grupo de 21 países (incluindo China, Cuba, Índia, Indonésia, Malásia, Irã, Bolívia, entre outros), por exigir que todos os países incrementassem seus recortes em emissões de gases. O negociador da Bolívia, Diego Pacheco, em nome daquele grupo, defendeu esse rechaço afirmando que não se podiam impor as mesmas exigências aos países “em desenvolvimento” porque não eram historicamente responsáveis e que para muitos seria impossível alcançar zero emissões em 2050 (*16). Pacheco entendia que aquela exigência era uma forma de “colonialismo do carbono”, e que se espera que para os países “em desenvolvimento” assumirem maiores compromissos, deveriam receber financiamento.

Como podemos ver, esse tipo de argumento aparece uma e outra vez nas negociações a respeito das mudanças climáticas. Existem várias simplificações nas posições desse grupo porque como se mostrou acima as responsabilidades históricas também são compartilhadas. Ao mesmo tempo, no caso da Bolívia se repete essa contradição entre uma retórica sobre as mudanças climáticas e a gestão governamental que subsidia e apoia o setor petroleiro; uma das últimas medidas foi destinar 400 milhões de dólares para 20 projetos de exploração de hidrocarburetos enquanto se flexibilizam regulações sociais e ambientais para fazer algumas dessas atividades dentro de áreas protegidas ou territórios indígenas (*17).

Ensimesmados com o dinheiro

As negociações sobre mudanças climáticas atolam ainda mais porque sempre sofrem pelos dribles e arremessos econômicos. Por momentos pareceria que os países desse “sul global” dedicam boa parte dos seus esforços em reclamar mais dinheiro às nações do “norte”, que prometem ajudas, as quais logo parecem escassas ou quase desaparecem.

Os governos haviam acordado ajudas financeiras que deviam alcançar os cem bilhões de dólares por ano em 2020. Esse montante devia ser aportado sobretudo pelas economias mais ricas.

De todos modos em Glasgow os governos tiveram de reconhecer que esse objetivo não foi cumprido. As nações que deviam dar os maiores aportes, começando pelos Estados Unidos, não o fizeram (*18). Ao mesmo tempo é possível que o volume de assistências financeiras que foram outorgadas também tivesse inflado de diversas maneiras, e que nos fatos foram todavia menores.

É necessário deixar claro que é indispensável um aumento da assistência financeira para lidar com as mudanças climáticas, tanto para reduzir suas emissões (o que implica apoiar alternativas energéticas) como na adaptação aos problemas que já estão em marcha. Essa ajuda em dinheiro deve ser provista sobretudo pelos países mais ricos. Os países do “norte” não podem argumentar que não contam esses fundos, senão bastaria que reorientassem suas massivas ajudas econômicas aos combustíveis fósseis.

Nesses assuntos se insinua outra estratégia que deve despertar preocupação já que consiste em apelar ao financiamento privado. Esta postura é liderada por Joe Biden a partir dos EUA, concebendo o empresariado como um grande financiador de ações contra as mudanças climáticas. Isto implica inevitavelmente uma privatização que translada às corporações do “norte” a gestão de múltiplos setores, tais como podem ser equipamentos para energia eólica ou solar, mineração de lítio etc.. Elas, a sua vez, se estendem sobre as nações do “sul”, e desse modo se produzem os conhecidos mecanismos de subordinação. A sua vez, algumas dessas opções empresariais que no “norte” são apresentadas como alternativas amigáveis com o meio ambiente, no “sul” têm severos impactos ecológicos e sociais (como ocorre com a mineração de lítio).

Uma expressão concreta foi a criação da Aliança de Glasgow para as emissões zero, que é uma coalizão de grandes bancos, fundos investimento, seguradoras e analistas de risco financeiro, que prometem mobilizar  130 bilhões de dólares (*19).

Ao mesmo tempo, algumas posições de governos do “sul” também merecem ser ponderadas. São os casos de fazer pouco ou nada para reduzir as emissões de gases até não receber dinheiro em troca. Isto se voltou muito comum, e possivelmente o caso mais estridente ocorreu em Glasgow quando os delegados da Índia reclamaram mais ajudas financeiras enquanto defendiam o uso do carvão (*20).

Há múltiplas contradições em pedir dinheiro quando ao mesmo tempo um governo do “sul” oferece subsidios aos combustíveis fósseis ou alenta o desmatamento. Por exemplo, a Argentina participa desses reclames para enfrentar as mudanças climáticas, e em Glasgow, seu presidente, Alberto Fernández, chegou a insinuar que parte do pagamento da dívida externa em vez de regressar ao credor fosse utilizado em medidas de mitigação das mudanças climáticas. Contudo, seu governo tem um enorme programa de subsídios econômicos para a exploração de hidrocarburetos (*21). De modo análogo, o governo do Peru anunciou em Glasgow que declarará a “emergência climática”, e ao mesmo tempo defende uma massiva disseminação do consumo de gás natural dentro do país a partir dos próprios depósitos. Isso implicaria ainda mais emissões em escala nacional e possivelmente uma violação do Acordo de Paris (*22).

Tanto as nações do “norte” como as do “sul” compartilham uma contradição essencial entre os massivos subsídios que outorgam aos combustíveis fósseis e suas promessas de compartilhar a mudança climática, o que requereria abandonar os subsídios que, em sua maior parte correspondem aos custos por impactos ambientais, representam 6,8% do PIB global, e aumentarão em 7,4% em 2025 (*23). São estimados em 11 milhões de dólares por minuto. Se fossem desmontados e se aplicassem preços adequados a esses combustíveis, as emissões de CO2 poderiam cair em 36%.


Referências

1-9: Parte 1

10. Veja Countries’ climate pledges built on flawed data, Post investigation finds, C. Mooney e colaboradores, Washington Post, 7 noviembre 2021.

11. Esto se analiza por ejemplo en Uruguay aumentará sus emisiones en cumplimiento del Acuerdo de París, G. Honty, La Diaria, Montevideo, 9 setiembre 2017.

12. Países ordenados por suas emissões de gases estufa totais (incluindo CO2 como outros gases, tais como metano); dados para 2018; basado en CAIT (WRI) em Climate Watch Data.

13. Valores em toneladas de CO2 equivalentes; dados de 2018; baseado em CAIT (WRI) em Climate Watch Data.

14. Which countries are historically responsible for climate change?, S. Evans, Carbon Brief, 5 octubre 2021.

15. Entrevista en Crudo Transparente, Bogotá, 14 diciembre 2017, video en: https://www.youtube.com/watch?v=D-ij-wOrKBk

16. India, China & 20 other nations are dead set against COP26 draft on climate mitigation. Here’s why, News 18, Nueva Delhi, 12 noviembre 2021.

17. YPFB estima inversión de $US 400 millones en 20 proyectos de exploración, El Deber, Santa Cruz, 8 marzo 2021.

18. The broken $100-billion promise of climate finance — and how to fix it, J. Timperley, Nature, 20 octubre 2021.

19. Financial firms announce $130 trillion in commitments for climate transition, but practical questions loom, J. Stein, Washington Post, 3 noviembre 2021.

20. Need more money to fight climate change: At COP26, India bats for Paris Agreement rulebook, India Today, 1 noviembre 2021.

21. En el caso de las explotaciones en Vaca Muerta, uno de los últimos paquetes de ayudas alcanzaría un costo fiscal de US$ 5 062 millones; El gobierno lanzó un subsidio a la producción de gas en Vaca Muerta para evitar la importación y la salida de más dólar, D. Cayón, Infobae, Buenos Aires, 15 octubre 2020.

22. Gobierno aprobará declaratoria de emergencia climática, Minam, Lima, 25 octubre 2021.

Presidente Castillo anuncia masificación del gas natural en todo el Perú, Andina, Lima, 10 noviembre 2021.

23. Still not getting energy prices right: a global and country update of fossil fuel subsidies, I. Parry, S. Black y N. Vernon, IMF Working Paper, setiembre 2021.



Eduardo Gudynas é analista do CLAES (Centro Latino Americano de Ecologia Social) em Montevidéu.

Publicado na íntegra em espanhol no blog do autor.

Tradução de Raphael Sanz, para o Correio da Cidadania.

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