Masterclass de fim do mundo: conflitos sociais no Brasil em pandemia
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- 28/03/2022
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“O Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa. Desfazer muita coisa. Para depois nós começarmos a fazer. Que eu sirva para que, pelo menos, eu possa ser um ponto de inflexão.” Com estas palavras, Jair Bolsonaro abriu o jantar oferecido pela embaixada brasileira durante sua primeira visita a Washington em março de 2019 (*1).
Exatamente um ano depois, era confirmada a primeira morte por covid-19 no Brasil. O panorama apocalíptico anunciado pelas notícias da pandemia no estrangeiro ainda contrastava, por aqui, com a continuidade inalterada da rotina. A indefinição do cenário criava uma atmosfera de apreensão, maior a cada dia. A aglomeração obrigatória em locais de trabalho fechados como fábricas, shoppings e escritórios, assim como em ônibus e vagões invariavelmente lotados, fornecia a imagem angustiante da disseminação de uma doença ainda desconhecida. Foi numa empresa de telemarketing da Bahia que a tensão transbordou primeiro: os operadores abandonaram seus postos e saíram à rua exigindo medidas de quarentena. Em poucas horas, a cena se replicava em call centers de Teresina, Curitiba, Goiânia e outras cidades do país. Os vídeos das paralisações, que viralizaram em grupos de operadores no WhatsApp e no Facebook, indicavam uma solução bastante concreta para aquela situação desesperadora: literalmente, sair!(*2)
O coronavírus deu ares premonitórios aos termos da carta anônima – mais exatamente um “último grito de socorro” – que funcionários de uma rede de livrarias haviam divulgado em fevereiro de 2020, após uma sessão avassaladora de assédio moral. É sintomático que, antes mesmo da pandemia, eles descrevessem a experiência no interior da empresa como uma “masterclass de fim do mundo”. Mas “o grande problema do fim do mundo”, concluíam, “é que alguém vai ter que ficar depois pra varrer” (*3). De fato, quando nos vimos diante de uma calamidade biológica, poucas semanas depois, os “empregos de merda” continuaram fazendo reféns (*4) para manter os negócios em dia.
A comparação das centrais de telemarketing com senzalas e prisões, tão comum no repertório de piadas dos operadores, encontrava agora uma confirmação brutal. Para muitos deles, a fuga do trabalho (*5) apareceria como último recurso para não morrer no posto de atendimento. A despeito do decreto presidencial que incluiu o setor entre os serviços essenciais logo após as paralisações, o que se viu nas semanas seguintes foi um esvaziamento dos call centers. Enquanto muitos trabalhadores passaram a apresentar atestados (reais ou fraudados), faltar sem justificativa ou pedir as contas, as empresas responderam com soluções precárias de trabalho remoto, férias coletivas e demissões (*6). A pressão dos protestos se diluiu na desagregação que já era tendência no ramo e foi acelerada pelo vírus (*7).
Tão rapidamente quanto a pandemia erodia as condições de trabalho nas mais diferentes áreas, a vida se conformava ao “novo normal”. Assim assistimos operários retornarem do lay-off para se expor à infecção, mas agradecidos por ainda terem emprego num cenário de fechamento de fábricas; professores que contestavam o ensino à distância engajarem-se de maneira proativa na nova rotina; e boa parte dos remanescentes da avalanche de demissões no setor de serviços submeter-se ao programa de redução de jornada e salário, feito sob encomenda pelo governo federal (embora, na prática, a jornada na empresa não se alterasse). E se greves de motoristas e cobradores de ônibus fizeram-se mais recorrentes ao redor do país a cada mês de 2020, é porque esta foi a única forma que restou para garantir o salário num contexto de redução do número de passageiros e crise no setor (*8).
O poder destrutivo do coronavírus combinou-se, por aqui, com a onda de devastação que já estava em curso. Saída de emergência acionada pelo capital em resposta à revolta social deflagrada em 2013, esse “movimento de destruição de forças produtivas” encontrou nas eleições de 2018 uma personificação na figura incendiária de um capitão reformado (*9). Na impossibilidade de gerir a crise, é a crise que se torna método de gestão. Onde se poderia ver um governo ineficiente, nosso autoproclamado agente da desconstrução revela uma eficiência negativa: o caos já constitui um método (*10) e “não governar é uma forma de governo” (11). Ao criar sistematicamente entraves às recomendações científicas para o controle da pandemia, Bolsonaro nunca foi propriamente “negacionista”; pelo contrário, “é antes um vetor do próprio vírus, a identificação dele com o vírus é integral” (*12). “Sou capitão do Exército, a minha especialidade é matar, não é curar ninguém”, bradava ele ainda em 2017 (*13).
Em agosto de 2020, quando o Brasil ainda se aproximava da cifra de cem mil mortes registradas por covid-19, pesquisas alertavam para outro índice preocupante, ao revelar que menos da metade da população em idade para trabalhar estava trabalhando (*14). Se a queda da taxa de ocupação aos patamares mais baixos da história recente poderia ser vista como uma aceleração da eliminação de trabalhadores descartáveis, sob outros olhos, porém, o mesmo quadro devastador estava produzindo algo novo… “Já enxergávamos no Brasil um cenário promissor para essa nova forma de trabalhar e a pandemia fez com que mais pessoas buscassem outras maneiras de exercer suas atividades e gerar renda”, explicava a vice-presidente de expansão internacional de um aplicativo usado por empresas para contratar freelancers em 160 países, que agora chegava ao Brasil (*15). Depois do apocalipse, o Uber?
O Brasil tá on (*16)
“Queremos trabalhar!”, reivindicavam dezenas de marreteiros que em fevereiro de 2020 invadiram os trilhos da Estação da Luz, no centro de São Paulo, em protesto contra a operação da nova empresa de segurança terceirizada para reprimir o comércio ambulante nos trens – atividade que, pelas normas da ferrovia, é irregular (*17). Dali a algumas semanas, com a chegada do novo vírus, a mesma palavra de ordem voltaria a ecoar em meio às buzinas das carreatas convocadas por bolsonaristas para exigir a reabertura do comércio. Ao se contrapor às políticas de isolamento implementadas por prefeitos e governadores, Bolsonaro não só atendia aos anseios dos pequenos patrões, como também jogava com a situação de “quem depende da correria diária atrás de bicos para sobreviver e não tem outra perspectiva senão a miséria diante da pandemia” (*18).
Se a perspectiva de luta apontada nos call centers não se generalizou, é porque a reivindicação da quarentena não assumiria facilmente ares de greve ali onde o trabalho já escapou, há muito, dos limites físicos da empresa. Entre as profissões mais qualificadas, não demoraria para que a rápida transição ao home office transformasse o “fique em casa” em uma deixa para trabalhar dobrado. Por outro lado, conforme as ruas se esvaziavam, o mesmo slogan passava a soar como uma ameaça de prejuízo e fome àqueles cujo sustento depende do movimento diário da cidade: camelôs, manicures, garçons, flanelinhas, motoristas etc.
As medidas de contenção do coronavírus lançaram ao centro do debate a condição do trabalho sem forma definida, informal, imbróglio político recorrente, mas fundamental na composição da economia capitalista no Brasil. Bicos, gambiarras, mutirões e trambiques de todo tipo compensaram, ao longo da nossa história, a precariedade dos serviços urbanos e da infraestrutura necessária para a acumulação de capital. Os “jeitinhos” improvisados pelos de baixo para se virar nas margens da cidade, da formalidade e da legalidade foram o combustível do “milagre” da industrialização e da urbanização por aqui. Decifrada pela sociologia brasileira na década de 1970, (*19) essa fórmula mágica alimentava a esperança de um desenvolvimento nacional em direção a uma sociedade salarial estável; modelo que, na mesma época, já dava sinais de esgotamento no coração do sistema. De lá pra cá, foi o resto do mundo que se aproximou da flexibilidade do trabalho à brasileira (*20) – e ela já não aponta para futuro algum. Também no centro do capitalismo se dissolvem as “formas socialmente estáveis, contratualizadas, reconhecíveis” do trabalho, que definem o que é e “o que não é tempo de trabalho, o que é local de trabalho, remuneração, custos do trabalho” (*21).
Mesmo em seu auge, durante os governos petistas, o trabalho formal não alcançaria muito mais da metade da população ocupada no Brasil, numa expansão baseada em vagas de baixa remuneração que – à revelia da ladainha neodesenvolvimentista de plantão – expressava menos uma tendência à universalização do emprego de carteira assinada do que sua redução a uma dentre outras estratégias de “viração” (*22). Ao afirmar que a legislação trabalhista “tem que se aproximar da informalidade”, (*23) Bolsonaro finalmente ajusta o parâmetro e reconhece o desregulado como regra.
Seria apenas com a calamidade econômica provocada pelo coronavírus que o trabalho informal receberia, pela primeira vez na história do país, uma definição legal – e foi a mais ampla possível, delimitada na negativa: informal é qualquer trabalhador sem carteira assinada, “seja empregado, autônomo ou desempregado” (*24). Durante o breve período de tramitação da lei que instituiu o “auxílio emergencial”, era difícil antecipar com precisão a real abrangência daquele critério. Sancionado no início de abril de 2020, o benefício alcançaria quase 68 milhões de pessoas – cerca de 32% da população brasileira –, das quais 38 milhões estavam até então fora do raio de alcance dos programas de transferência de renda. A devastação abria subitamente uma oportunidade histórica de “inclusão”:
Chamados pelo presidente da Caixa Econômica Federal de “invisíveis”, grande parte dessas pessoas não tinha um ou mais meios para acessar a específica visibilidade social determinada pelo Estado: CPF ativo, celular (com internet) e conta bancária. Essas pessoas não são aquelas já cadastradas no Bolsa Família (...), que chegou aos rincões do país tornando visíveis ao governo cerca de 30 milhões de pessoas. Dessas já se sabia da existência. Invisível, por incrível que pareça, estava parcela significativa da população cujo metabolismo social estava estruturalmente ligado ao metabolismo urbano. É a tal parcela que sobrevive da “viração”, não dos benefícios públicos (...). São pressupostos na sua consequência, mas invisíveis na sua existência. Quando a cidade para, essa parcela reivindica visibilidade estatal por meio da inscrição no Cadastro Único. A pandemia a revela, mas também a submete, pois define as regras para a sua visibilidade (*25).
É claro que todo esse contingente invisível já estava incluído até o pescoço – isto é, as consequências de seu trabalho sem forma são pressupostas pelo funcionamento da economia como um todo –, mas agora pode ser submetido a mecanismos que permitem um controle mais completo sobre sua existência. Conta no banco, smartphone com internet e cadastro em um aplicativo: que os meios para receber o auxílio emergencial sejam os mesmos para criar uma conta na Uber, é sinal de que estamos diante de peças fundamentais dessa “nova forma de trabalhar”. Anos atrás, já era possível identificar no Bolsa Família, cujas dimensões ficaram pequenas diante do benefício de 2020, o objetivo de conformar uma força de trabalho unificada e mais profundamente submetida às relações capitalistas (*26). A bancarização promovida pelo programa contribuiu para ampliar o alcance dos sistemas de microcrédito, num processo de financeirização da informalidade – que se aprofundou, nos últimos anos, com a disseminação das maquininhas de cartão e pagamentos digitais cada vez mais ágeis e fáceis, como o Pix (*27). Com o auxílio emergencial, o fenômeno atinge uma intensidade inédita: a Caixa Econômica Federal absorveu 30 milhões de clientes em dez dias, no que representou possivelmente o mais veloz movimento de bancarização da história mundial, (*28) fechando 2020 com lucro recorde.
O acesso ao crédito é fundamental para a emergência de uma força de trabalho precarizada para a qual se transferem custos e riscos do capital, enquanto as taxas de juro cobram um novo nível de produtividade à velha viração, diretamente conectada ao mercado financeiro global. O centro dessas políticas de renda estaria, assim, menos na ampliação da capacidade de consumo dos beneficiários (como no modelo distributivo keynesiano), e mais na ampliação da sua capacidade de investimento, financiando a aquisição dos instrumentos de trabalho e “autovalorizando” seu “capital humano” (*29). É o que afirmam abertamente entusiastas desse tipo de programa: “o colchão financeiro que a renda básica fornece pode representar a estabilidade suficiente para que as pessoas possam gastar suas próprias economias ou outro capital na abertura de um negócio” (*30). Como se lê numa reportagem que entrevistou moradores de algumas capitais do Nordeste, “em muitos casos o dinheiro [do auxílio] serviu como capital de giro para negócios informais”: terminar de construir um puxadinho para alugar, refazer estoques para o comércio ambulante, abrir uma pequena loja ou comprar “uma bicicleta usada do vizinho para fazer entregas por meio de aplicativos” (*31). Ora, nos grandes centros urbanos, o benefício não cobre o custo de vida de muitas famílias, que precisam se virar para manter outras fontes de renda. “O dinheiro iria embora só no aluguel. Teriam outras contas e a comida”, explica um desempregado forçado a dormir na rua (*32). Antes mesmo de cogitar voltar a alugar um cômodo, ao receber as primeiras parcelas do auxílio, outro entrevistado conta que comprou um celular. Quando não foi investido em meios de produção, o dinheiro se converteu em meios de reprodução: pagou reformas em casa e eletrodomésticos. Bem no meio destes dois campos, o celular (*33).
Ao concentrar funções de lazer, trabalho, socialização e controle em um mesmo aparelho, os smartphones materializam a indistinção contemporânea entre tempo livre e tempo de trabalho. Aplicativos que conectam uma multidão de pessoas a um mesmo servidor tornaram possível que o capital incorporasse e organizasse diretamente, por meio de algoritmos que processam milhões de dados em tempo real, aquele trabalho sem forma que é constitutivo da economia brasileira. A famigerada “uberização” do trabalho significa, em terras tupiniquins, uma espécie de “subsunção real da viração” (*34).
Ao longo da pandemia, o número de brasileiros que recorrem aos apps como meio para trabalhar cresceu, chegando à marca de um em cada cinco trabalhadores (*35). E não custa lembrar que o primeiro passo para obter a renda emergencial também era baixar um aplicativo e responder a um questionário. O programa acelerou o processo de digitalização dessa multidão invisível: “quem não tinha celular teve que arrumar um, pegar emprestado ou de favor” e “quem não sabia usar teve que aprender” ou procurar ajuda (*36). Mesmo assim, a enxurrada de problemas no cadastro online durante a primeira semana desembocou nas agências físicas da Caixa, provocando filas que se estendiam por quarteirões. Além de sobrecarregar os funcionários, a aglomeração em frente aos bancos no início da pandemia dava feições concretas ao dilema tétrico entre infectar-se com o vírus ou passar fome. Por alguns dias, aquela demora desesperadora se transformou em revolta: em cidades de todo país, a população protestou, depredou agências e obstruiu avenidas (*37).
Enquanto os gestores da Caixa reorganizavam o cronograma de atendimento presencial para evitar o caos, grupos de WhatsApp e Facebook formavam-se em torno do benefício. Com centenas de milhares de membros, esses fóruns auto-organizados supriram a precariedade do atendimento bancário: os participantes relatavam seus problemas, trocavam experiências, resolviam dúvidas etc. O único ator político a tentar surfar nesse imenso engajamento invisível foi um incógnito parlamentar oriundo da mesma avalanche que Bolsonaro, eleito a partir dos vídeos em formato selfie que gravara nos bloqueios de estradas durante a greve dos caminhoneiros de 2018. No momento em que passou a acompanhar diariamente os trâmites do auxílio pelo seu perfil do Facebook, o deputado federal mineiro André Janones alçou voo do baixo clero, transmitindo as lives mais assistidas da história da internet em todo o hemisfério ocidental (*38).
Por outro lado, o início do pagamento dos 600 reais mensais durante a primeira onda da pandemia parece ter contribuído para retardar a convergência entre trabalhadores informais e empresários almejada pela crítica bolsonarista ao isolamento social. Naquele momento, as manifestações anti-lockdown limitaram-se ao núcleo militante da extrema-direita e à chantagem de pequenos e médios patrões, que tentavam coagir seus funcionários a protestar, sob a ameaça de demissão em caso de falência (*39). Ao mesmo tempo, o fluxo de dinheiro proporcionado pelo auxílio emergencial nas famílias e bairros populares forneceu alguma retaguarda àqueles que, em meio ao caos da pandemia e apesar do aumento do desemprego, se recusavam a trabalhar naquelas condições. Depois de se manifestar nos calabouços dos call centers, a insubordinação não tardaria a dar as caras do lado de fora, nas ruas, cada vez mais abarrotadas de entregadores e motoristas de app.
Esta é a primeira parte, de cinco, deste artigo anônimo e coletivo sobre as mudanças no mundo do trabalho e conflitos entre capital e trabalho no Brasil em pandemia. As próximas partes serão publicas também às segundas-feiras.
Assina o artigo “um grupo de militantes na neblina”.
Fonte: Neblina.xyz
Notas:
1. Eduardo Bolsonaro, “Fala de JB abrindo o jantar na embaixada do Brasil nos EUA (17/MAR/2019)”, YouTube, 18 mar. 2019.
2. “Para não morrer, operadores paralisam call centers em todo Brasil exigindo quarentena”, Passa Palavra, 19 mar. 2020. Os protestos não deixam de ser um epílogo inusitado às reflexões de alguns militantes que, poucos anos antes, se defrontaram com as dificuldades de organização em um setor tão rotativo (Um grupo de militantes, “Disk Revolta: questões sobre uma tentativa recente de organização em call centers”, Passa Palavra, 30 mai. 2019). No momento em que centrais de telemarketing foram atravessadas por uma onda de paralisações sem precedentes, é significativo que a perspectiva da mobilização fosse simplesmente escapar daquele inferno.
3. Trabalhadores da Livraria Cultura, “'Nosso último grito de socorro': trabalhadores voltam a denunciar a Livraria Cultura”, Passa Palavra, 19 fev. 2020.
4. “Somos refém”, dizia um cartaz erguido por operadores na janela de uma empresa de telemarketing no centro de São Paulo no dia da “greve geral” convocada pelas centrais sindicais contra as reformas trabalhista e da previdência em 2017 (Disk Revolta, “Pedido de socorro e apoio à greve na Uranet”, Facebook, 28 abr. 2017).
5. Também aqui a batalha subterrânea na livraria revelava uma tendência. “Para qualquer sindicalista, o objetivo final traçado pelos trabalhadores da Livraria Cultura soará muito estranho: querem ser demitidos sem justa causa. Apesar dessa reivindicação só fazer sentido nos marcos da CLT (afinal, o objetivo é ganhar a rescisão), olhando em perspectiva histórica este tipo de luta já indica um adeus às promessas celetistas, pois não há mais o horizonte jurídico, político, econômico e social que ela um dia apresentou (carreira, estabilidade, direitos etc). ‘Ser demitido era visto como uma vitória’, escreveu um ex-funcionário em um comentário.” (“Por que as denúncias contra a Livraria Cultura viralizaram?”, Passa Palavra, 27 abr. 2019).
6. Um caso de pressão coletiva pelo home office foi registrado em Invisíveis de Goiânia, “Atento: resistindo à chamada da morte”, Passa Palavra, 17 abr. 2020.
7. “Conhecida por ser porta de entrada de milhares de jovensno mercado de trabalho”, a profissão de operador de call center vinha enfrentando, “nos últimos anos, (...) uma reformulação do mercado [de telemarketing], com corte de vagas e um investimento em autoatendimento”, explica o diretor do sindicato patronal do setor. As medidas de isolamento social parecem ter contribuído, contudo, para que “pela primeira vez em cinco anos” mais operadores fossem contratados do que demitidos nos doze meses encerrados em fevereiro de 2021, num movimento que uma parcela dos especialistas vê como temporário. De qualquer forma, a automatização e a dispersão da força de trabalho parecem ser tendências complementares na reestruturação da área, que estuda manter parte da mão de obra em home office depois da pandemia – e já desenvolve novos mecanismos de vigilância para tal, assim como fazem diversos outros setores. (Angelo Verotti, “Ao novo normal”, IstoÉ Dinheiro, 14 jul. 2020; Douglas Gavras, “Telemarketing reabre vagas com mudança de comportamento do consumidor pós-Covid”, Folha de S. Paulo, 8 mai. 2021; “Funcionários de call center em home office serão vigiados”, Poder 360, 28 mar. 2021).
8. Algumas dessas paralisações estão registradas no vídeo do canal Treta no Trampo, “2020 - Greve dos rodoviários!” (Instagram, 1 fev. 2021), e mencionadas em Thiago Amâncio, “Crise no transporte público na pandemia provoca greves em série por todo o país" (Folha de S. Paulo, 21 mai. 2021).
9. “Conforme a política ganha ares de guerra aberta”, sugeríamos em outra ocasião, “as tecnologias de mediação social desenvolvidas nos últimos anos soam obsoletas. (...) A onda de destruição que se abateu não apenas sobre os principais operadores do arranjo político constituído desde a redemocratização e sobre sua máquina de governo, mas também sobre algumas das maiores empresas brasileiras, precisa ser compreendida nos marcos de uma ‘aniquilação forçada de toda uma massa de forças produtivas’, movimento típico das crises capitalistas, que sempre vem acompanhado de um aprofundamento da exploração. A destruição de forças produtivas, frequentemente por meio da guerra, sempre constituiu uma saída de emergência eficiente para o capital.” (Um grupo de militantes, “‘Olha como a coisa virou’”).
10. Marcos Nobre, “O caos como método”, Piauí, abr. 2019.
11. Gabriela Lotta, “O que acontece quando a falta de decisão é o método de governo”, Nexo, 27 jan. 2020.
12. “O discurso de Bolsonaro não é um negacionismo da letalidade do vírus, ou se o é em um nível superficial”, notava um espectador dos primeiros pronunciamentos oficiais durante a pandemia: “transubstanciado num complexo humano-vírus, (...) Jair Bolsonaro se aproxima de sua forma final, um anjo da morte, um emissário da morte em massa – que melhor expressão haveria para o capital suicida?” (Felipe Kouznets, “anjinhos”, helétricuzinho, 25 mar. 2020).
13. “Bolsonaro diz que, no Exército, sua ‘especialidade é matar’”, Folha de S. Paulo, 30 jun. 2017.
14. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – Mercado de Trabalho Conjuntural, ago. 2020.
15. Entre os novos usuários da plataforma, 35% relacionaram a busca por trabalho ao isolamento social (Beatriz Montesanti, “Startup israelense de trabalho freelancer chega ao Brasil”, Folha de S. Paulo, 10 nov. 2020).
16. Popularizada pelo atacante Neymar Jr., a expressão “o pai tá on” se tornou um meme na internet. Estar online significa também, neste caso, estar “ligado”, disponível, pronto para tudo, em contextos que vão da paquera até o trabalho, passando por todo o campo ambíguo das redes sociais.
17. Clara Assunção, “No país da informalidade, ambulantes na CPTM protestam pela sobrevivência: ‘Queremos trabalhar’”, Rede Brasil Atual, 6 fev. 2020.
18. Um grupo de militantes, “Entre o isolamento e a correria, trabalhadores em disputa na pandemia”, Passa Palavra, 11 abr. 2020.
19. Em seus escritos da década de 1970, Chico de Oliveira enxergou o processo de modernização do país como um “ovo de Colombo”: tal qual o velho truque de quebrar a casca do ovo para colocá-lo em pé, o que colocou e manteve o capitalismo brasileiro de pé foi essa “estranha economia de subsistência”, aparentemente atrasada, das periferias urbanas e do campo. A indústria de bens de consumo, mostrou o sociólogo, tinha sua contraparte no comércio ambulante, enquanto o crescimento da produção automobilística era acompanhado pela proliferação de lava-rápidos braçais e oficinas mecânicas de esquina. À medida que compensava a falta de uma acumulação capitalista prévia suficiente, tal simbiose conferiu um lugar absolutamente central ao “trabalho informal” no processo de industrialização e urbanização do país. Da mesma forma, a própria carteira de trabalho esteve desde sua gênese atrelada à informalidade: nos dias de folga da fábrica, o operário celetista continuava trabalhando – por conta própria e sem remuneração – para erguer sua moradia em loteamentos irregulares, numa prática que deu origem a boa parte das periferias das grandes cidades brasileiras e que terminava rebaixando os salários, cuja soma não precisava levar em conta o gasto com aluguel. Na autoprodução dos trabalhadores por meio de soluções desgastantes e improvisadas, um colossal montante de sobretrabalho sem forma definida ficava invisibilizado à sombra do mundo do trabalho oficial. Chico de Oliveira relacionava esta dimensão invisibilizada da exploração à desconfiança dos trabalhadores quanto aos governos populistas antes do golpe de 1964, derrubados de um dia para o outro sem grande resistência popular. Não por acaso, foi precisamente a partir das periferias urbanas, onde se concentrava esse trabalho informe, que novos personagens entraram em cena nos anos finais da ditadura militar. Da invasão de terras à reivindicação de estruturas coletivas para os bairros (como esgoto, luz, asfalto, ônibus, creche, posto de saúde, escola etc.), as lutas nas margens das metrópoles tiveram um lugar central no movimento de recomposição política do proletariado brasileiro do final dos anos 1970. Ao mesmo tempo em que representava um sobretrabalho funcional à acumulação capitalista, a autoconstrução da cidade revelou-se, por isso mesmo, uma zona explosiva de conflitos. Nesse processo ambivalente, em que autoatividade proletária era simultaneamente trabalho não pago e luta de classes, fica visível o que o brasilianista James Holston chamou de uma “cidadania insurgente”, na qual o enfrentamento torna-se uma via de integração à ordem. (Ver Francisco de Oliveira, Crítica à razão dualista / O ornitorrinco, São Paulo, Boitempo, 2003 e, do mesmo autor, “Acumulação monopolista, Estado e urbanização: a nova qualidade do conflito de classes”, em José Álvaro Moisés e outros, Contradições urbanas e movimentos sociais, São Paulo, CEDEC / Paz e Terra, 1977; a referência final é a James Holston, Cidadania insurgente, São Paulo, Cia. das Letras, 2013).
20. Ver Paulo Arantes, “A fratura brasileira do mundo”, Zero à esquerda, São Paulo, Conrad, 2004. Para uma retomada recente desta discussão, no contexto do fracasso do combate à pandemia no coração ocidental do capitalismo, ver Alex Hochuli, “The Brazilianization of the World”, American Affairs, v. 5, n. 2, 2021.
21. Ludmila Costhek Abílio, “O futuro do trabalho é aqui”, Revista Rosa, v. 4, n. 1, ago. 2021.
22. Essa expressão popular, emprestada por alguns sociólogos nos últimos anos, define bem o trânsito “entre uma série de atividades contingentes, marcadas pela instabilidade e pela inconstância, assim como entre expedientes legais e ilegais”, que marca a trajetória de parte significativa da força de trabalho brasileira: “percursos sempre descontínuos, sempre instáveis, no mercado de trabalho” que “tornam inoperantes as diferenças entre o formal e o informal” (Carlos Freire da Silva, “Viração: o comércio informal dos vendedores ambulantes” em V. Telles e outros, Saídas de emergência, São Paulo, Boitempo, 2011 e Vera da Silva Telles, “Mutações do trabalho e experiência urbana”, Tempo Social, v. 18, n. 1, 2006). Esse “‘viver por um fio’ das periferias brasileiras significa um constante agarrar-se às oportunidades, que em termos técnicos se traduz na alta rotatividade do mercado de trabalho brasileiro, no trânsito permanente entre trabalho formal e informal (...), na combinação de bicos, programas sociais, atividades ilícitas e empregos” (Ludmila Abilio, “Uberização do trabalho: subsunção real da viração”, Passa Palavra, 19 fev. 2017).
23. “Lei trabalhista tem que se aproximar da informalidade, diz Bolsonaro”, Folha de S. Paulo, 12 dez. 2018.
24. Pedro Fernando Nery, “Desigualdade em V”, Estado da Arte, 11 nov. 2020.
25. Isadora Andrade Guerreiro, “O vírus, a invisibilidade e a submissão dos vivos ao não-vivo”, Passa Palavra, 11 mai. 2020.
26.João Bernardo, “Programa Bolsa Família: resultados e objectivos”, Passa Palavra, 10 abr. 2010.
27. Vetores do mesmo processo, a nova Lei de Regularização Fundiária Rural e Urbana e o Programa Casa Verde e Amarela apontam para a transformação da moradia autoconstruída em ativo financeiro, numa espécie de financeirização da viração, que constitui o lastro real desses títulos – seja enquanto trabalho morto cristalizado nas casas regularizadas e utilizadas como garantia de hipotecas e outras transações, seja enquanto trabalho vivo que paga essas dívidas. (Isadora Guerreiro, “Casa Verde e Amarela, securitização e saídas da crise: no milagre da multiplicação, o direito ao endividamento”, Passa Palavra, 31 ago. 2020).
28. “Não temos notícia de nenhum país que em dez dias colocou até 30 milhões de pessoas com contas em banco de graça”, afirmava Paulo Guedes no início de abril de 2020 (Mariana Ribeiro e outros, “Auxílio emergencial colocará 30 milhões de pessoas em contas bancárias digitais”, Valor Investe, 7 abr. 2020).
29. “O objectivo é liquidar as modalidades arcaicas de crédito e de seguros, substituindo-as pelos seus equivalentes capitalistas. É curioso considerar que, se este objectivo for cumprido, estaremos numa situação oposta à do modelo keynesiano de distribuição de rendimentos, porque se conta aqui não com a capacidade de consumo dos beneficiários, mas com a sua capacidade de poupança para investimento. Desta forma, os que não encontrarem emprego como assalariados sobreviverão como microempresários, contribuindo-se assim, por um lado e pelo outro, para a modernização do capitalismo brasileiro” (João Bernardo, “Programa Bolsa Família: resultados e objectivos”, cit.). O processo de organização desta economia a um só tempo informal e absolutamente moderna é justamente o que vem se chamando de “uberização”, com a ressalva de que não se trata nem de retrocesso nem de modernização, mas certamente de um aumento na temperatura das caldeiras do inferno que é o mundo do trabalho contemporâneo.
30. Michael Grothaus, “How Universal Basic Income Could Rescue The Freelance Economy”, Fast Company, 1 dez. 2017.
31. João Pedro Pitombo e João Valadares, “Auxílio emergencial irriga negócio informal e banca puxadinho em casas no Nordeste”, Folha de S. Paulo, 7 ago. 2020.
32. Toni Pires e Heloísa Mendonça, “Mesmo com auxílio emergencial, crise empurra desempregados para viver na rua”, El País, 1 set. 2020 e Beatriz Jucá e Heloísa Mendonça, “O auxílio que revoluciona a vida no Ceará não salva da rua em São Paulo”, El País, 31 ago. 2020.
33. Talvez seja um bom exemplo de “consumo produtivo”, da forma como Ludmila Abílio retoma o termo de Marx e o ressignifica, associando-o ao embaralhamento de trabalho e consumo no capitalismo contemporâneo (ver Sem maquiagem: o trabalho de um milhão de revendedoras de cosméticos, São Paulo, Boitempo, 2014).
34. A tese é de Ludmila Abílio (“Uberização do trabalho: subsunção real da viração”, cit.). Na obra de Marx, a subsunção real do trabalho ao capital marca o momento em que, na indústria, a maquinaria forma um sistema integrado que já não é mais controlado pelos trabalhadores, mas dita o ritmo do seu trabalho e confere unidade às tarefas que eles realizam separadamente. O trabalho morto passa a organizar integralmente o processo de produção e a submeter a si o trabalho vivo, num processo de espoliação que consolida a separação entre os trabalhadores e os meios de produção e constitui a força de trabalho enquanto tal. Se, anos atrás, Chico de Oliveira apontava para algo que se poderia chamar de “subsunção formal” da viração ao capital, as tecnologias que permitem realizar o controle deste trabalho na sua própria dispersão representam um passo novo. Por meio de ganhos de escala, racionalização e centralização, o “gerenciamento algorítmico” da viração alça sua produtividade a alturas desconhecidas. Desse ponto de vista, o reconhecimento deste trabalho sem forma no centro da nossa modernização truncada impõe um limite à categorização da “uberização” como um processo estrito de flexibilização das relações trabalhistas. Em certo sentido, o que as empresas-aplicativo fizeram por aqui foi acelerar a criação de conexões cada vez mais diretas e racionalizadas entre aquela atividade disforme e os circuitos da acumulação.
35. Luciana Cavalcante, “Do WhatsApp ao Uber: 1 em cada 5 trabalhadores usa apps para ter renda”, UOL, 12 mai. 2021.
36. Victor Hugo Viegas, “O movimento do auxílio emergencial”, A Comuna, 14 out. 2020.
37. Treta no Trampo, “Tretas na pandemia: Filas do banco”, Instagram, 6 mai. 2020.
38. Victor Hugo Viegas, “O que o auxílio emergencial tem a ver com a luta de classes?”, Jacobin Brasil, 27 out. 2020.
39. Aliny Gama, “MPT investiga se funcionários ajoelhados em ato foram coagidos por patrões”, UOL, 30 abr. 2020.
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