Pinguelli e o modelo do setor elétrico
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- Roberto Pereira D´Araujo
- 20/05/2022
Peço aos leitores que entendam esse artigo como uma sincera homenagem a Luiz Pinguelli Rosa. Tive muita sorte em conviver, dialogar e aprender com ele.
Luiz Pinguelli Rosa, falecido no último 3 de março aos 80 anos no Rio de Janeiro, foi um físico brasileiro e histórico presidente da Eletrobras. Entre seus principais feitos, foi um dos que projetou a usina nuclear Angra 1. Em sua vida acadêmica, Pinguelli se concentrava em pesquisar planejamento energético, mudanças climáticas e história da ciência.
Quase a totalidade do que vou expor foi debatido e transformado em projeto de melhoria do nosso sistema elétrico no período Pinguelli da Eletrobras. Por incrível que pareça, grande parte das soluções discutidas na época ainda são válidas, apesar de não terem sido publicadas. O relatório GENESE (Grupo de Estudo para Nova Estruturação do Setor Elétrico), apesar do nome, existe, mas não chegou a “nascer” para a sociedade brasileira.
Há uma história nos números do setor elétrico. O Ilumina e a própria Eletrobras, durante o período de Pinguelli como presidente, tentaram mostrar que o modelo mercantil adotado no Brasil se adapta muito mal ao sistema físico brasileiro. Na época, algumas iniciativas chegaram a ser interpretadas como uma tentativa de recuperação de poder da empresa. Grande equívoco, pois todas as atividades de coordenação que a Eletrobras geria no passado já tinham sido transferidas para o Operador Nacional do Sistema, para a Câmara de Comercialização do Setor Elétrico e para a Empresa de Pesquisa Energética com parte da separação de responsabilidades do modelo mercantil. As razões são outras.
Somos um país recordista em latitude (distância norte sul) e de clima tropical. Fomos agraciados com um conjunto de rios que fluem por grandes distâncias numa geografia de planaltos que possibilitou algo extremamente singular; a capacidade de estocar significativa quantidade de água em grandes reservatórios. Regimes regionais de chuvas distintos possibilitaram uma não coincidência hidrológica que permitiu a transferência via transmissão de grandes quantidades de energia por milhares de quilômetros. O resultado foi um sistema de “vasos comunicantes” que cuida de um estoque estratégico para todo o país.
A gestão desse estoque é fundamental para a garantia de suprimento de energia elétrica nesse imenso território. Com o sistema de transmissão que interliga amplamente as gerações de usinas de diversas fontes de energia, esse estoque é compartilhado por todos os geradores.
Hidroelétricas sem reservatório têm direito a essa reserva, pois quando elas geram, as com reservatório guardam água. Eólicas e Solares também merecem essa vantagem, pois, assim como outras fontes, substituem a água que pode ser reservada para o futuro. Mesmo usinas térmicas, que parecem ser de outra categoria, podem exercer algum ganho para o estoque, pois, se elas não existissem, provavelmente os reservatórios não poderiam abrir espaço para guardar a água que vem do céu. Enfim, esse é um sistema cooperativo no mundo físico. Como transformá-lo num mercado realmente competitivo na energia?
À primeira vista, parece ser um sistema eficiente e promissor. Entretanto, a ideologia mercantil impôs um conjunto de grandezas muito arriscado para desagregar esse monopólio natural em frações e estabelecer competição. Como já foi mencionado, estamos numa parte do planeta onde o clima dominante é o tropical e a característica principal sobre a hidrologia é a grande variabilidade.
Por conta das grandes oportunidades de construir hidroelétricas, o Brasil dependeu quase que exclusivamente e por muito tempo, dessa forma de investimento sem atentar para o que poderia acontecer no futuro.
Como se pode ver no gráfico abaixo, mais de 90% do consumo total chegou a ser atendido apenas por geração hidráulica.
Observar que, mesmo no racionamento de 2001, 85% da carga total foi atendido por hidráulicas, o que deixa evidente que esse alto percentual ocorria mesmo em situações hidrológicas desfavoráveis. Antes do ano 2000, essa proporção também prevalecia.
A partir de 2012 começa a haver uma brusca mudança de cenário e, em poucos anos, a responsabilidade da geração hidráulica despenca para aproximadamente 65% e passa a ter uma oscilação sazonal no entorno de 25%.
O que causou essa mudança?
A capacidade de reserva no início do século 21 era equivalente a quase 8 meses de consumo total. O consumo cresceu 85% e a capacidade total de reserva apenas 25%. Tanto a vantagem do amortecimento de afluências muito variáveis se reduziu, como o “estoque”, que, na teoria, poderia ser repartido pelos geradores, não é mais o mesmo. Um grande baque para o modelo implantado e até hoje não examinado profundamente. Como se pode ver, foi preciso definir uma outra estratégia que pode alterar esses “direitos” dos geradores à reserva. Até hoje não se fez uma análise profunda, o que gerou prejuízos e muitas judicializações.
Outra característica: Antes, consumíamos uma geração hidráulica equivalente a 16% do estoque total. Hoje, já atingimos 23%. Portanto, cada kWh consumido tem menor influência da “regulação” dos reservatórios. Estamos mais sujeitos a mudanças bruscas.
O modelo, que precisava estabelecer competição num mercado de energia, encontrou um grande dilema. Como fazer usinas competirem quando a gestão real do estoque precisa ser centralizada em função das características físicas do sistema e, por consequência, usinas podem gerar uma energia muito diferente da sua participação no mercado?
A ideia foi atribuir um valor fixo para cada usina como se fosse um “certificado” que representa sua “importância” para esse sistema integrado. Esse número já teve vários nomes, desde Energia Assegurada até a atual Garantia Física (GF). Portanto, usinas não vendem a energia gerada e sim uma cota do total.
Como as usinas participam de leilões para serem construídas, esse número precisa ser definido antes da existência do empreendimento. Portanto, a GF de uma usina surge de uma simulação da operação do sistema futuro que prevê uma evolução do consumo e o seu suprimento. Como fazê-lo num sistema físico onde justamente a principal fonte de energia é muito variável?
A solução foi estender a amostra de afluências para 2.000 anos a partir de características estatísticas típicas da hidrologia desses rios. De certo modo, essa solução também resolveu um problema da teoria amostral. O nível de significância com a amostra de apenas 91 anos era muito reduzido. Todas as características hidrológicas desses 91 anos foram preservadas. O modelo simplesmente estendeu a amostra.
Entretanto, todas as outras incertezas, tais como, a composição do parque futuro, o consumo futuro e as mudanças estruturais citadas acima permaneceram. É importante mencionar que a opção de uma transição para contratos de capacidade (Potência da Usina) foi sugerida pela Eletrobras. Afinal, a potência em MW é um valor fixo. Mas essa sugestão não foi aceita.
E que critério de equilíbrio entre oferta e demanda se deveria adotar?
O que traduzisse em números a tese de que, se o custo de operar o sistema ultrapassa o custo de expandir, é preciso outras fontes de energia. Para atender essa exigência adotou-se um critério sobre o custo marginal médio de operação (CMO). Ele deveria ser aproximadamente equivalente ao custo marginal de expansão (CME). Ou seja, se o custo marginal da operação médio estiver mais caro do que o custo marginal de construir novas usinas, o sistema está em desequilíbrio e precisa de novas ofertas. Esse é o critério vigente no Brasil.
Mas, quando se analisam os resultados dessa simulação, uma característica originada justamente da nossa geografia, clima e variabilidade surge. Como se distribuem esses custos de operação nesse histórico estendido de afluências?
Ou seja, a maioria das ocorrências dos CMO´s se situam abaixo do Custo Marginal de Expansão. O gráfico só mostra até 205, mas os valores se estendem acima de R$ 2000/MWh.
Isso ocorre em típicas distribuições onde a mediana (a tendência central) é menor do que a média. Verifica-se justamente a precaução da operação com a variabilidade das afluências. Há naturalmente um viés de evitar custos acima do CME na operação do sistema.
Até esse ponto, nenhum dilema que não possa ser resolvido. O problema surge quando esse valor, Custo Marginal de Operação, passa a ser referência para preços de mercado. Como já explicado, as usinas não vendem exatamente a energia que geram. Portanto, as diferenças são liquidadas por um preço de liquidação de diferenças (PLD).
Quando um mercado funciona com essa referência, se o sistema está em equilíbrio, prevalece o viés de preços baixos. Evidentemente, essa tendência acaba por induzir a uma omissão em expandir a oferta para o próprio mercado, pois o sinal de preço aponta para um cenário de sobra sem que tenha certeza de que essa sobra seja estrutural, pois altas afluências podem enganar.
Foi exatamente o que ocorreu nessa história do setor. Como se pode ver abaixo, a menos de poucas exceções, o PLD girou no entorno de valores muito abaixo dos preços cobrados dos consumidores cativos (linha vermelha) por 10 anos.
Como era de se esperar, depois, o sistema se desequilibra e os preços reduzidos “viram de cabeça para baixo”, atingindo valores do topo de preços de geração. Exatamente nesses casos ocorre a inadimplência e a judicialização. Apesar disso, em recente evento o presidente da ABRACEE (comercialização) se declarou favorável à manutenção desse critério, pois, como se percebe, ainda há chances de se adquirir MWh a preços reduzidos.
A instabilidade atinge fortemente esse mercado, pois os valores chegam a oscilar de R$ 50 até quase R$ 600/MWh. Essa formação de preços, para ser referência em avaliações de valores de empresas no caso de privatização (valuation), se torna totalmente inconfiável. A dependência da expansão adotada nessa mudança e na forma de operar, que, no caso brasileiro nada tem a ver com contratos de venda, passam a ser um grande entrave.
Abaixo, pode-se ver a tangência da garantia física total do sistema com o consumo de 2008 a 2014. Havia um claro sinal de risco porque, nesse período, não havia sobra estrutural e sim conjuntural em função de grandes afluências de alguns anos (2009 – 2011).
O que qualquer um estranha é a grande sobra de Garantia Física após 2014. Como tentamos explicar, usinas acrescentam GF ao sistema, mas podem não gerar por questões de preço. A folga que se percebe é fruto de dois elementos. A queda de consumo por conta da crise econômica e da “termificação” do sistema. Do ano 2000 até 2022, quadruplicamos a capacidade de térmicas fósseis no sistema brasileiro.
Abaixo, salientamos os períodos onde ocorreram a maior expansão térmica. Como se pode perceber, elas ocorrem como uma reação tardia de omissões de expansão de oferta, pós privatização década de 90 e pós preços reduzidos no mercado livre.
Como a lei que pretende privatizar a Eletrobras incluiu “jabutis” de ainda pleiteiam mais térmicas, vamos nos deparar com grandes problemas, tanto em termos de preço, tanto de instabilidade de mercado, quanto problemas para as hidráulicas, como vamos mostrar a seguir.
Para concluir essa história, o gráfico abaixo nos revela um grande desafio. Trata-se das gerações hidráulicas totais como porcentagem da reserva total. Fica evidente que, tanto a instabilidade de preços, quanto o aumento de tarifas, quanto a gestão da reserva foram fortemente afetadas pela situação de preços de oferta térmica na expansão.
Traduzindo para o leitor leigo, o que se percebe é que, no período úmido (verão), a reserva passa a ser mais usada (mais gasto de água) e, no período seco, a reserva é menos usada. O que muda é a amplitude dos dois períodos. Como não há muita certeza das variações anuais das afluências, fica evidente que a operação no verão não está mais muito preocupada com o aumento da reserva para o futuro. Assim, gradativamente abandona-se a ideia de que a água reservada em um ano pode servir para o seguinte.
Em sistemas de clima temperado, onde as afluências são mais bem comportadas, a operação pareceria ser totalmente correta, mas com a variabilidade brasileira, ela se torna cara e muito arriscada. Abaixo, um gráfico resumo da história.
O sistema não tem mais como acrescentar usinas com reservatório numa escala que recupere a nossa confortável situação do passado.
Em parte essa impossibilidade foi causada pela visão centrada apenas na produção de kWh, quando se sabe que usinas hidroelétricas poderiam prestar vários serviços relacionados à região atingida. Infelizmente a visão puramente mercantil fechou essa porta de soluções.
As eólicas estão tentando ajudar, mas ainda numa escala insuficiente para o desafio de instabilidade que a expansão térmica produz.
As solares sequer são visíveis nessa escala, apesar de terem efeito complementar com as eólicas e poderem alterar o consumo via geração distribuída.
Por fim, independente de aspectos legais, constitucionais e institucionais, a história nos mostra que não houve um verdadeiro plano para resolver os problemas que nos atingem agora. Como disse no início, muitos desses desafios foram apontados pela Eletrobras com a orientação de Luiz Pinguelli Rosa. Nos anos seguintes, a Eletrobras foi usada para tentar sanar as deficiências. A forma e a dose fragilizaram a empresa e esse trabalho quase profético se perdeu.
Infelizmente ele nos deixou. Se a Eletrobras abandonar sua função de empresa pública com um potencial de organizar respostas para a sociedade, ficaremos sem uma última chance nessa escada que está nos levando ao precipício.
Tenho certeza que é impossível tratar todos os aspectos da situação que deixamos acontecer. Mas, como Pinguelli me ensinou com suas atividades em várias áreas, tudo está em tudo e reciprocamente.
Roberto D'Araujo é engenheiro, ex-assessor da Eletrobrás e diretor do Instituto Ilumina.
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