Correio da Cidadania

O passo certo

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Foto: Reprodução Conjur

Há uma historinha, de uma certa mãe, que foi assistir um desfile e depois comentou, orgulhosamente: “meu filho era o único que estava no passo certo”.

Na anedota, tratava-se de um erro claríssimo de percepção desta mãe. Mas nem sempre uma ideia apresentada isoladamente dentro um grande grupo de pessoas está errada.

Há muitos anos, um juiz de direito, de uma localidade na região metropolitana de Belo horizonte, determinou sucessivamente a soltura de muitos presos que cumpriam pena, pois havia uma grande superlotação no presídio. A capacidade de cada cela estava excedida.

Ele fundamentou na sua decisão a força da lei e da própria Constituição Federal, pois é uma garantia individual que na execução da pena o Estado deve garantir a integridade física e moral dos presos. O cumprimento da pena deve observar a dignidade humana das pessoas.

O empilhamento de muitas pessoas num espaço pequeno e mal ventilado, tanto põe em risco a saúde como principalmente viola o direito do preso à sua dignidade. Porém, essa decisão foi exclusiva daquele juiz. Não tenho conhecimento de que antes ou depois tivesse havido decisão de tal tipo por algum magistrado.

Claro que foi um grande escândalo, a repercussão péssima, porque alguns presos mais perigosos, autores de crimes graves, foram postos em liberdade. O TJ-MG imediatamente reagiu, revogou a decisão e proibiu o juiz de julgar casos daquele tipo.

Embora inédita e isolada em um só juiz, é extremamente difícil contestar o fundamento de sua decisão, que está na própria Constituição, com todas as letras.

Mais recentemente, uma decisão do TJ-SP reformou sentença de uma juíza que havia mandado pagar uma indenização ao pai da vítima de uma presa trans, após esta aparecer abraçada pelo médico Drauzio Varela em reportagem no Fantástico, o que causou um escândalo enorme, porque essa presa trans praticara um homicídio gravíssimo.

O doutor Varela depois pediu desculpas, mas o pai da vítima acionou a Globo e o próprio Varela, que foram condenados pela juíza a pagar 150 mil reais por dano moral. O Tribunal revogou tal decisão, acertadamente. Porque a reportagem tinha por objetivo mostrar como se desrespeitava à larga a Constituição Federal, em especial nos casos das presas trans. Sofrem grande discriminação aqui fora, imaginemos dentro do sistema penitenciário.

Voltando à decisão do referido juiz, tinha amparo na própria Constituição, não apenas na Lei de Execução Penal, mas mesmo assim o Tribunal de Justiça o afastou de casos similares, decisão também inédita, pois imediatamente o tribunal entrou em ação para por fim àquela situação.

Mas alguém pode dizer que a fundamentação da inusitada sentença estava errada?

E aí voltamos à anedota do menino do passo certo. Só me recordo de uma manifestação na imprensa em louvor da atitude do juiz, que foi precisamente do saudoso e intimorato Plinio Arruda Sampaio, em editorial do Correio da Cidadania. Lembrou-me da famosa frase “ainda há juízes em Berlim”, enquanto toda a mídia brasileira inteira o condenava.

Sem dúvida, aquela decisão representava um risco à ordem pública. Porém, qual a outra consequência? Os presos continuam empilhados nos presídios, as prisões processuais (aquelas que surgem antes da condenação sequer em primeiro grau) cada vez mais se multiplicam, sem maior comoção na sociedade.

Claro que até com frequência tal situação é denunciada nas mídias, e o caso da trans é um desses.

Qual seria a razão disso?

Creio que o ministro Gilmar Mendes, tão controvertido por seus altos e baixos, focalizou muito bem a questão carcerária, em entrevista que concedeu à Monica Bergamo, já há uns bons anos. Ele conta que como presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) fez uma varredura nos presídios brasileiros e foram soltos 22 mil presos.

Em seguida, o então ministro do STF, o ministro Cesar Peluso, que também presidia o CNJ, fez o mesmo.

O interessante da entrevista de Mendes é que ele deixa o foco no desrespeito aos direitos fundamentais dos presos, o que, em absoluto, não comove a grande maioria da opinião pública. Presumo que a maioria esmagadora da população não tem a menor preocupação e até aplaude esse verdadeiro massacre cotidiano sobre a população carcerária.

No entanto, Mendes mostrou que este é também um problema grave de segurança pública, à medida que o preso fica lá jogado, diante da indiferença das autoridades e da sociedade. Quem dá alguma assistência a este preso é a facção criminosa, de forma que essa multiplicação das prisões processuais é uma fonte de alimentação contínua das organizações criminosas.

Mesmo assim, grande parte da mídia de maior audiência transmite à população que este é o certo, é assim que se deve tratar bandido. E a cada dia a violência aumenta mais, com cada vez mais clamores por repressão. Embora, podemos ver através de uma conta muito simples, o número dos que saem dos presídios é sempre menor que o número dos que entram.

Assim, o Estado deveria construir não sei quantos mais presídios para dar conta da população carcerária sempre em aumento.

Concluo que aquele juiz era o menino do passo certo. E quase ninguém compreendeu a grandeza e a importância daquele gesto. Sua decisão foi revertida, para aplausos gerais, enquanto o sistema prisional apenas piora crescentemente.

As pessoas não compreendem e nem condenam os verdadeiros monstros que vão sendo criados por este Estado.

Saiba mais:

Juiz aposentado compulsoriamente reafirma desrespeito do Judiciário pelos presos

Antonio Visconti é promotor de justiça aposentado.

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