Correio da Cidadania

A rebelião dos cientistas contra a inação climática

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Foto: Extinction Rebellion se manifesta no Reino Unido em 2018. Créditos: DAVID HOLT/ Commons Wikimedia

A Brigada Antiterrorista da Polícia prende 14 pessoas. Seu crime: protestar em frente ao Congresso, no último dia 6 de abril. Os presos são ativistas e cientistas, como o pesquisador do Conselho Superior de Investigações Científicas - CSIC, Fernando Valladares, que decidiram levar sua luta contra a inação climática dos governos para o campo da desobediência civil. Após alertar sobre os efeitos da mudança climática em artigos científicos e relatórios, decidiram se fazer ouvir nas ruas.

O pavio da rebelião científica acendeu em muitos países. Os protestos, mesmo que sejam de mulheres e homens de jaleco branco, receberam a mesma resposta policial em todos os lugares: mais proibições e prisões. Na última cúpula internacional do clima, a COP26, 21 cientistas também foram presos por causa de um bloqueio pacífico em Glasgow, cidade onde foi realizado o evento. Entre eles estava Charlie Gardner, membro e porta-voz da Extinction Rebellion (XR) e Scientist for Extinction Rebellion, no Reino Unido.

Este biólogo conservacionista, professor titular associado da Universidade de Kent, no Reino Unido, também faz parte do movimento global Scientist Rebellion, que por meio da desobediência civil não violenta busca forçar os governos a tomar medidas para evitar o colapso social e ecológico derivado da crise climática e da biodiversidade, do qual também fazem parte os cientistas presos na Espanha.

A entrevista é de Juan F. Samaniego, publicada por La Marea-Climática, no último primeiro de julho. A tradução é do Cepat.

Leia a entrevista a seguir.

Professor universitário e pesquisador, e ativista ambiental. São dois papéis separados ou é sempre a mesma pessoa?

Todos são uma parte importante da minha identidade, não posso separá-los. Sou uma pessoa que faz muitas coisas ao mesmo tempo, mas sempre com a mesma missão em mente: evitar a destruição do nosso ambiente. Tornei-me cientista porque acreditava que estudar e entender os problemas era a melhor maneira de resolvê-los. Mas a ciência é apenas uma ferramenta.

Com o tempo, percebi que se a ciência não era suficiente para consertar as coisas, deveria experimentar outras ferramentas. Cada vez me distancio mais da pesquisa, porque só fazer ciência, quando os políticos e os que tomam decisões não escutam, não é o suficiente.

A ciência almeja a neutralidade e a objetividade. O ativismo é mais tocante e passional. Ser um ativista faz de você um cientista pior?

Alguns cientistas estão muito preocupados com a ideia de que a ciência deve manter sua neutralidade. Mas me parece uma ideia bastante absurda. Sou um cientista conservacionista, um campo de pesquisa com um objetivo claro: proteger a biodiversidade. Nunca foi uma ciência neutra. Muitas das conclusões que extraímos de nosso trabalho têm consequências políticas.

Por exemplo, se como cientista afirmo que temos que parar o desmatamento, não estou sendo neutro. É uma afirmação científica, mas também política. Com a medicina acontece algo semelhante. Os médicos não querem estudar as doenças apenas para conhecê-las. Fazem isso para melhorar a saúde humana. E a saúde é algo político. Poucas pessoas questionam um médico que diz que devemos comer menos açúcar.

Então, agora que sou mais ativista do que pesquisador, não noto que minha neutralidade tenha mudado. Só troquei de ferramentas. Pessoalmente, não notei mudanças em meu ambiente, ninguém questiona meu trabalho como cientista e não teve impacto em minha carreira.

E ser um cientista lhe ajuda a ser um ativista melhor?

Como cientista, aprendi a avaliar a informação disponível de forma crítica e isso é muito útil para navegar na quantidade de informação e desinformação que existe em torno da mudança climática. Além disso, penso que minha experiência como professor foi muito importante para me ajudar a comunicar melhor a complexidade da ciência para um público amplo. Graças a isso, tive a oportunidade de ser porta-voz da Extinction Rebellion.

Por último, penso que a sociedade, em grande parte, respeita os cientistas. As pessoas querem escutar a ciência, porque sabem que a ciência tem o conhecimento especializado de que precisamos. Isso significa que os cientistas têm um poder especial para comunicar a crise ambiental. Como ativista, não sou apenas um cidadão, mas também um cientista. Sinto que tenho mais autoridade, que minha voz será ouvida mais alta e mais longe.

O que o levou a se juntar a Extinction Rebellion?

Durante toda a minha vida, quis conservar a natureza. Sempre me pareceu estranho que somente uma pequena parte da sociedade compartilhasse minhas preocupações. Para mim, sempre foi óbvio que o planeta é a coisa mais importante que temos. Se não cuidarmos dele, não teremos futuro. E sempre sonhava que algum dia as pessoas fossem às ruas para lutar pelo planeta e o meio ambiente. Então, quando vi as primeiras manifestações da Extinction Rebellion, não tive dúvidas, era algo que eu estava esperando por toda a minha vida.

Estamos há décadas falando do desmatamento e perda de biodiversidade. Quase nada mudou. Penso que, em meu íntimo, sempre soube que a ciência por si só não era suficiente, que era necessário que as pessoas se envolvessem nesta luta. Extinction Rebellion me tirou da letargia, pois eu havia me acostumado a que as coisas não mudassem. O ativismo me deu esperança e energia, despertou-me, lembrou-me que temos uma luta a vencer.

Esse senso de justiça ambiental sempre esteve presente?

Cresci em Maurício e em Botswana. Os amigos de meus pais nesses países eram quase todos conservacionistas. Tudo o que quis fazer, desde que me lembro, é conservar espécies. Isso não mudou com o tempo, mas minhas motivações sim. Aos poucos, passei a me preocupar mais com as pessoas do que com as plantas e os animais em si.

Nós, seres humanos, dependemos totalmente da natureza. Nos últimos anos, minhas motivações mudaram novamente. Estou tão preocupado com o colapso da civilização que penso que agora o que mais me motiva é a autodefesa. Não quero que o mundo entre em colapso enquanto eu estiver vivo. Então, trabalho para retardar esse colapso o máximo possível.

Quando se pensa no conservacionismo, é normal pensar em parques naturais ou em proteger os grandes mamíferos. Mas é muito mais do que isso, não é?

A conservação continua sendo vista assim, parece que gira em torno disso. Mas os grandes felinos ou o urso panda, embora nos encantem, não são essenciais. Podemos sobreviver sem eles, mas não podemos viver sem florestas, sem oceanos funcionais, sem solos saudáveis...

É o funcionamento dos ecossistemas que mantém a vida no planeta. Penso que o conservacionismo deveria ser o centro do debate em tudo o que é importante para a sobrevivência da nossa espécie.

Voltando ao movimento Extinction Rebellion, como foi a primeira vez que decidiu participar de uma manifestação?

Era abril de 2019, em Londres, lembro-me perfeitamente. Foi uma das semanas mais felizes de minha vida. A cidade tinha uma atmosfera extraordinária, cheia de cor, música, alegria... Senti que algo estava se movendo de uma vez por todas. Pela primeira vez, percebi que não estava sozinho, que muitas pessoas compartilhavam minhas preocupações.

Além disso, era fantástico sentir o poder que poderíamos ter ao agir juntos. Bloqueamos cinco áreas de Londres por quase duas semanas inteiras. Todos os meios de comunicação pareciam se concentrar no que fazíamos. Todos os políticos falavam sobre a Extinction Rebellion e a mudança climática estava em todos os debates. Foi como uma grande revelação. Juntos e organizados tínhamos poder e podíamos influenciar as coisas.

Fui sozinho para aquela grande manifestação. Conversei com muitas pessoas diferentes. Mas não me encontrei com nenhum cientista. Pareceu-me muito raro. O trabalho dos cientistas era, em grande medida, a razão pela qual o povo havia se mobilizado. Mas os cientistas não estavam lá, na rua, apoiando as pessoas. Então, quando voltei para casa, escrevi um paper que foi publicado na Nature, porque essa é a melhor forma de chegar aos cientistas. E esse artigo acabou tendo sua influência na formação de Scientist for Extinction Rebellion.

Para muitos cientistas, que nunca foram ativistas, pode ser complicado dar esse passo.

Há muitas maneiras de se envolver. A primeira coisa que um cientista pode fazer é oferecer publicamente seu apoio aos movimentos sociais. Não sei como é na Espanha, mas no Reino Unido, o Governo e os meios de comunicação tentam criar uma imagem negativa dos movimentos de base. Eles os pintam como pessoas esquisitas, hippies e desocupados, pessoas que não sabem do que estão falando. Por isso, é importante que as pessoas que têm voz e autoridade, como os cientistas, os apoiem.

Por outro lado, há muitos papéis dentro do ativismo. O público fica com as grandes manifestações e as prisões. Mas isso é apenas a ponta do iceberg. Por trás, há um grande trabalho de organização, comunicação, divulgação, captação de recursos... Há muito mais trabalho por trás do que no próprio cenário. Assim, os cientistas podem se envolver de muitas formas diferentes.

Também não há razão para se envolver em ações tão radicais como as da Extinction Rebellion. Nós vamos até o limite, arriscando-nos a ser presos, porque acreditamos que essa imagem de um cientista algemado ou arrastado pela polícia é muito forte. Mas há muitos grupos focados em outros tipos de ações. Cada um pode encontrar o grupo que melhor se encaixa com sua forma de entender o ativismo.

Falando em prisões, na Espanha, mais de dez ativistas da ‘Rebelión Científica’ foram presos recentemente. Quais são os riscos de escolher a via do ativismo?

Ser preso pode ter um grande impacto em sua vida, como profissional e como indivíduo. Não é agradável e pode causar danos significativos em sua saúde mental e física, principalmente se a polícia age de forma violenta. Além disso, ter antecedentes criminais pode prejudicar a reputação e a carreira profissional de uma pessoa. Isso não aconteceu comigo ou com meus colegas, mas pode acontecer.

Você foi preso duas vezes, correto?

Sim, duas. Ambas durante uma ação com Scientist Rebellion. A primeira foi por colar artigos científicos na sede da News UK, uma empresa de Rupert Murdoch [proprietária da, entre outros meios de comunicação, Fox News, The Sun e The Times]. Seus meios de comunicação são negacionistas da mudança climática e fracassaram em seu serviço ao público, escondendo a verdade deles.

A segunda vez foi na COP 26, em Glasgow. Eu era um dos 21 cientistas da Scientist Rebellion presos por bloquear uma ponte na cidade. Esta foi a primeira prisão em massa de cientistas em protesto contra a inação climática e ecológica. Tivemos muita repercussão midiática com essas ações. Nosso objetivo, neste caso, não era causar um impacto nos delegados da COP, mas enviar uma mensagem ao mundo.

Quando as pessoas veem que a polícia está prendendo cerca de vinte cientistas, muitas pessoas se perguntam por qual motivo. Qual é a necessidade de um cientista fazer algo assim? O que está acontecendo? A mensagem é muito poderosa. Se as coisas não estivessem ruins, os cientistas não estariam protestando na rua.

Do ponto de vista das autoridades, é mais fácil prender quem protesta do que solucionar o problema.

É muito mais fácil [risos]. Somos apenas o mensageiro, somos o alarme. Para mim, essas prisões mostram como a forma de agir dos Governos em relação à mudança climática é equivocada. Se soa o alarme antiincêndio do edifício em que você está, a reação é buscar segurança e tentar apagar o fogo. Mas os governos nos dizem que é melhor tirar as baterias do alarme e continuar fazendo como se nada tivesse acontecido.

Mesmo assim, a situação em que estamos não é apenas resultado da inação ou da estratégia ruim dos governos. Eles não agem sozinhos. Estão sob uma enorme pressão dos lobbies da energia e da indústria de combustíveis fósseis. Por isso, os governos de todo o mundo estão legislando para limitar o direito de manifestação e protesto, e é muito preocupante.

Qual pode ser o impacto destes movimentos de desobediência pacífica a médio e longo prazo?

O impacto foi enorme nestes anos. Mudou o rumo do debate sobre a mudança climática e a crise ambiental. Quase não assisto mais TV, mas quando assisto fico surpreso com a quantidade de comerciais que falam de temas relacionados à sustentabilidade. É verdade que a maioria são simulacros, mas é um sinal claro de que o público se preocupa cada vez mais com esses temas. O meio ambiente já é um dos assuntos que mais preocupa a população. Penso que isto se deve ao trabalho de muitos cientistas, movimentos como Extinction Rebellion e figuras públicas como Greta Thunberg.

No momento, esse avanço é superficial. O debate é cada vez maior, mas não houve ações concretas, nem mudanças legislativas importantes. Não consigo ver o futuro, mas tenho certeza de que se existe uma forma de alcançar a mudança de rumo que o planeta precisa, a desobediência civil terá muito a dizer. Quanto mais pessoas se somarem a esses movimentos, maiores serão as chances de ganhar esta luta.

Para além desses movimentos, a mensagem da ciência é clara, há mais de uma década. Temos que agir agora em relação à mudança climática. Será que conseguiremos a tempo?

Já estamos muito atrasados. As pessoas já estão sofrendo por causa da mudança climática. Florestas em chamas, colheitas que se perdem, ondas de calor insuportáveis, inundações... A maioria leva o selo da mudança climática. As coisas estão ruins e é provável que tenhamos ultrapassado certos pontos de inflexão, sem ter como voltar atrás. Tínhamos que ter começado a lutar contra a mudança climática há 30 anos.

No entanto, isso não significa que tudo está perdido. Não temos como saber se é tarde demais ou não. A única alternativa que temos é parar o quanto antes os danos que estamos causando ao meio ambiente. Penso que nem sequer deveríamos nos perguntar se já é tarde demais. Cada décimo, cada centésimo de grau conta. Pode ser tarde para o aumento de 1,5 grau, provavelmente também para os 2 graus. Mas se conseguirmos parar em 2,007 graus será melhor, ou menos pior, do que 2,009 graus. Vale a pena lutar por isso.

Temos que parar de queimar combustíveis fósseis e temos que levar a sério a restauração do mundo natural. A natureza nos protegerá dos piores efeitos da mudança climática. Absorve carbono, alimenta-nos, reduz a erosão, age como barreira contra as inundações... Mesmo que os piores cenários de mudança climática sejam atingidos, a natureza nos ajudará a estarmos um pouco melhores.

Adaptar-se é tão importante como reduzir as emissões. E é responsabilidade dos países ricos, que causaram a maior parte do problema, apoiar os países pobres para que se adaptem ao que está por vir. É hora de falar seriamente de danos, prejuízos e compensações.

A mudança climática é urgente, mas às vezes parece que o debate está muito concentrado na descarbonização e outros grandes problemas são deixados de lado, como a crise da biodiversidade, que pode ser ainda mais grave.

Sem dúvida. A crise da biodiversidade é muito séria. E, como acontece com a mudança climática, a ciência há tempo tem as respostas: sabemos como solucioná-la. Temos que parar o desmatamento, temos que pescar e cultivar apenas de forma sustentável... Mas não agimos assim. Como sociedade, não a priorizamos.

Nosso sistema acredita que é melhor converter a biodiversidade em dinheiro do que mantê-la de forma sustentável. A raiz do problema, como na mudança climática, é o sistema econômico. Precisamos abandonar o crescimento e decrescer, sobretudo nos países ricos do Norte.

Antes, você comentava que teme o colapso da civilização. O que pode acontecer se não fizermos nada?

Experimentaremos um aumento dos fenômenos climáticos extremos e, em consequência, mais pessoas morrerão por inundações, ondas de calor, ciclones… A mudança climática trará muito sofrimento. Ao mesmo tempo, esses eventos terão um impacto muito importante em nossas infraestruturas e nosso sistema econômico. Teremos que gastar cada vez mais dinheiro para reparar os danos da mudança climática.

No entanto, entre todas as consequências, a mais preocupante é a redução da produção de alimentos. As colheitas de todo o planeta dependem de uma série de condições meteorológicas mais ou menos previsíveis. Mas o tempo é cada vez mais imprevisível e variável. Em todo o mundo, estamos experimentando reduções na produção de cultivos muito importantes como o trigo e a batata.

Isso tem duas grandes consequências: mais fome e mais migrações. As pessoas vão tentar abandonar aqueles lugares onde não conseguem viver. E já estamos vendo como a União Europeia e os Estados Unidos estão respondendo a esses movimentos: fortificação de fronteiras, aconteça o que for. Se os países agirem sozinhos, fechando suas fronteiras, as consequências da mudança climática serão ainda mais desastrosas.

Fonte: IHU Online

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