Correio da Cidadania

Um mundo sem potência hegemônica

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Pandemia e guerra põem a globalização em xeque - Trade News

Em vez de lamentarmos ou nos alegrarmos pelo rumo da guerra na Ucrânia, a favor ou contra, penso que deveríamos compreender como as mudanças na ordem mundial estão afetando os povos e os movimentos populares. A geopolítica deve ser útil para definirmos as formas de atuação dos de baixo, diante das tempestades em curso.

Um artigo recente de José Luís Fiori, pesquisador brasileiro do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis, publicado pelo IHU Unisinos, destaca que o mundo está passando de um unilateralismo quase absoluto a um multilateralismo oligárquico agressivo, em um período em que que o mundo viverá por um tempo sem uma potência hegemônica.

Esta afirmação me parece tão precisa como importante. Por algumas décadas, viveremos em um mundo onde nenhuma potência poderá definir unilateralmente as regras e, portanto, entraremos em um período de caos e decomposição do sistema-mundo. Muitas vezes, as regras serão impostas por quadrilhas ou manadas armadas de assassinos paraestatais.

Um período relativamente breve, em termos históricos, de agitações profundas e tempestades gigantescas, como o zapatismo já analisou. Algo assim aconteceu durante as guerras de independência, transição entre as hegemonias espanhola e britânica, ou na primeira metade do século 20, com duas guerras mundiais e diversas revoluções no terceiro mundo, que balizaram a ascensão dos Estados Unidos.

Embora, agora, as coisas não serão idênticas (pela soma da crise climática, das armas nucleares, da ascensão das potências não ocidentais e da crise do capitalismo, entre outras), a história pode nos servir de espelho e inspiração, pois os setores populares do mundo foram brutalmente agredidos e não conseguiram fazer prevalecer seus próprios projetos, quando tiveram.

A partir da constatação de que estamos entrando em um mundo sem potência hegemônica, gostaria de expor algumas ideias sobre o papel que nós, de baixo, podemos desempenhar nesta agitada etapa.

O primeiro ponto é que devemos rejeitar tanto a velha potência decadente como as que almejam substitui-la. São guerras entre impérios e classes dominantes nas quais nossos interesses não estão presentes. Nas guerras de independência latino-americanas, os povos originários, negros e mestiços lançaram suas vidas para que os crioulos (descendentes dos colonizadores que se transmutaram em cidadãos nacionais das novas pátrias) assumissem o poder.

Para eles, nada mudou. Pior ainda, em muitos casos, as novas repúblicas foram mais brutais que os vice-reinados, como demonstra o caso do povo mapuche que sofreu espoliação e genocídio chamada Pacificação da Araucanía.

O segundo é o fato de ser imprescindível abrir espaços próprios dos povos, colocar em marcha projetos de longo prazo que não beneficiem as velhas elites, nem as novas emergentes. Se não conseguirmos construir nossos próprios projetos, seremos absorvidos pelas classes dominantes que usarão a propaganda midiática para nos somar a um de seus projetos de dominação, como está acontecendo agora com a invasão da Ucrânia.

O terceiro é que ninguém nos defenderá e muitos estão nos assassinando ou tentando nos domesticar. A existência de múltiplas formas de violência exercidas por todos os tipos de quadrilhas armadas – de traficantes de drogas a paramilitares e forças estatais – são resultado de um sistema em decomposição, da mesma forma que os feminicídios mostram um patriarcado ferido e decadente, portanto, ainda mais brutal.

Por enquanto, devemos criar os modos de autodefesa dos povos e setores sociais que decidam se defender, usando as formas que cada um considerar adequadas. Embora possamos escolher a resistência não violenta e pacífica, quando for o caso de defender a vida, devemos ser flexíveis na hora de escolher as formas.

Por último, em um mundo caótico, atravessado por múltiplas violências, onde há fomes, guerras e catástrofes de todos os tipos (os incêndios deste verão boreal são uma pequena amostra do que está por vir), podemos sobreviver se criarmos arcas coletivas autônomas, capazes de navegar nas tempestades.

Não são poucos os povos que já estão percorrendo este caminho. Dos povos originários e bairros agrupados no Conselho Indígena de Governo, no México, a dezenas de povos amazônicos, mapuche, no Chile e Argentina, nasa e misak, na Colômbia, entre outros. Como sempre aconteceu na história, é nas periferias que nasce o novo, onde nos ensinam atitudes que podemos replicar, sem imitar.

Para transitar o caminho das autonomias de baixo, devemos parar de olhar para cima, de nos entusiasmar com os circos eleitorais, com os candidatos do sistema e mesmo com as constituintes, porque nos tiram energias para a tarefa mais importante, que pode pavimentar nossa sobrevivência coletiva: a construção de múltiplas e diversas autonomias integrais.


Raul Zibechi é jornalista e cientista político uruguaio.
Fonte: La Jornada
Tradução: IHU.

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