Correio da Cidadania

Nicarágua: pedagogia da crueldade

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Dora María Téllez, Nicaragua - People's Health Movement
As condições de reclusão que sofreu Dora María Téllez (comandante 2 dos sandinistas), a mais emblemática prisioneira de Ortega por mais de 600 dias, lembrou as que viveram os reféns da ditadura uruguaia durante seu longo cativeiro. Na cela que ocupava na prisão de El Chipote, a escuridão era quase absoluta, apenas um brilho fraco "que não permitia ver claramente a própria mão"; nem sequer podiam saber as horas, como contou na sua primeira entrevista (El País, 10-2-23).

A historiadora Téllez não podia ter livros, papéis ou lápis. “Dormíamos em um tapete liso, sem nada, no chão frio. Não nos davam toalhas, enxugávamo-nos pondo a roupa por cima. Eram torturas psicológicas constantes", disse ela do lado de fora do hotel em Virgínia, onde estava hospedada nos Estados Unidos. Acabou perdendo a voz porque mal falava um minuto por dia com os guardas, então se dedicou a "cantar baixinho" para compensar a perda.

O mais sintomático, porque retrata o caráter da ditadura de Ortega-Murillo, é o tratamento dispensado às mulheres. Durante três meses não recebeu visitas, nem sequer do seu advogado, não havia regularidade, o que considera “mais uma forma de tortura”. Enquanto os homens nunca ficaram em confinamento solitário por mais de dois meses, as mulheres ficaram o tempo todo, incluindo sua companheira, Ana Margarita Vijil, assim como Tamara Dávila e Suyén Barahona. “Esse é o ódio visceral contra as mulheres dos Ortega-Murillos”, explica Téllez.

Téllez explica que o pior momento que viveram durante o cativeiro foi a morte de Hugo Torres (comandante 1), o primeiro preso a morrer na prisão de Ortega. Apesar de ter 73 anos e ser um dos ícones da revolução – que em 1974 arriscou a vida para resgatar um grupo de sandinistas da ditadura de Anastasio Somoza, entre eles Daniel Ortega – não recebeu a atenção que merecia pelo câncer que o acometia. Todas as versões garantem que ele entrou em El Chipote com boa saúde, mas sua deterioração foi muito rápida e ele morreu em janeiro de 2022.

A antropóloga e feminista Rita Segato cunhou o conceito de pedagogia da crueldade para dar conta de tudo que coisifica a vida, as práticas que “programam os sujeitos para transmutar nossa vitalidade em coisas” (1). Não consiste apenas em matar, mas também "ensina a matar uma morte desritualizada, uma morte que deixa resíduos no lugar do morto".

Fazem parte dessa crueldade o tráfico e a exploração sexual, mas também iniciativas extrativistas de produção de commodities para o mercado global, empreendimento que costuma ser "precedido de bordéis e dos corpos-coisas das mulheres que ali se oferecem". Segato sustenta que há dois projetos conflitantes no mundo: o projeto histórico das coisas e o projeto histórico dos vínculos.

Ela garante que na Nicarágua – mas também na Palestina e em muitos outros lugares, diz a antropóloga – “o patriarcado, a colonialidade, a pedagogia da crueldade, coisificação da vida e o extrativismo da natureza e dos corpos das mulheres” estão ligados para formar “a perfeita equação do poder”.

Desta forma, tenta compreender as razões pelas quais o regime desencadeia ódio e sadismo contra as pessoas que o questionam. O mais notável, no entanto, é que nenhum dos 222 libertados foi “quebrado” na prisão. “Eu sabia que tinha de aguentar, era a minha forma de derrotar Ortega todos os dias. Cada dia que não sofria dano mental, cada dia que não defecava na cela, que não me enforcava [...] foi uma vitória sobre Ortega", disse Téllez na referida entrevista.

Problemas internos

Por muitos anos, o discurso anti-imperialista da ditadura de Ortega-Murillo alcançou seu objetivo: silenciar as críticas da esquerda que, a princípio com poucas fissuras, apoiou o regime. Até os protestos massivos de 2018, que deixaram mais de 300 manifestantes mortos, centenas feridos e presos e dezenas de milhares de exilados.

Esse foi um discurso mentiroso. Prova disso é a recente declaração do Fundo Monetário Internacional de 27 de janeiro, na qual a organização financeira felicita o regime pelas suas políticas macroeconómicas, os seus progressos em matéria de transparência fiscal e elogia "a solidez das reservas de capital e liquidez do setor bancário ", entre várias outras "comemorações" ao governo de Manágua.

Por outro lado, a Nicarágua está solidamente integrada nas cadeias de valor de commodities como o ouro (principal item de exportação), mas também o camarão, cujo principal destino são os Estados Unidos e deixa enormes prejuízos ambientais no país. Esse sistema produtivo deixa, sobretudo, uma sociedade arruinada, polarizada e empobrecida, controlada militarmente pela direção do poder, onde a vice-presidente e esposa de Ortega, Rosario Murillo, empunha sua mão de ferro (enfeitada com luxuosos anéis e pulseiras) e controla a população.

Mas mesmo esse poder ultraconcentrado parece estar vazando, a julgar pelas remoções na polícia e na liderança militar nas últimas semanas. Em meados de janeiro, foi informado que o general Adolfo Marenco Corea, ex-diretor de investigação e inteligência da Polícia e ex-integrante do círculo íntimo de Rosario Murillo, foi preso e enviado para a prisão de El Chipote (Confidencial, 16-I-23).

Marenco estava sob o sistema de "casa por prisão", que a ditadura usa para controlar os opositores, mas quando preso foi acusado de tentar fugir do país e de se recusar a trabalhar para a família Ortega-Murillo.

É evidente que o casal decidiu se aferrar ao poder e que não faz parte de seus cálculos pedir asilo. A fortuna deles está na Nicarágua, acumulada em grande parte por corrupção e espoliação, e se a abandonassem, perderiam tudo, segundo a análise de pessoas que o conhece de perto. Isso pode explicar a liberação do 222 presos para tentar reconstruir um governo desgastado e com pouco apoio interno.

Nota

1) Contrapedagogías de la crueldad, Prometeo, Buenos Aires, 2018.

Raul Zibechi é jornalista e cientista político uruguaio. Autor de Territórios em Rebeldia, Editora Elefante, 2022.
Traduzido por Gabriel Brito e publicado originalmente no Jornal Brecha.

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