Correio da Cidadania

Ainda haverá justiça neste planeta?

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Karim Ahmad Khan – Wikipédia, a enciclopédia livre
Não há como discutir a condenação de Putin pelo TPI (Tribunal Penal Internacional). Iniciar uma guerra sem razão é certamente um dos piores crimes contra a humanidade. A pena aplicada foi mais do que justa e os juízes do tribunal sempre dispuseram do respeito internacional por sua competência e integridade.

Mas, como filosofou o ator Joe E. Brown, em Quanto Mais Quente Melhor, “nada é perfeito”. E os doutos magistrados andaram vacilando ao deixarem em paz os dirigentes dos EUA, autores de guerras devastadoras contra o Iraque e o Afeganistão.

Respectivamente, bombas de destruição em massa inexistentes e a recusa em entregar terroristas foram os pretextos para conflitos armados que mataram milhões de civis inocentes, destruíram cidades, espalharam epidemias evitáveis e arrasaram totalmente colheitas de alimentos.

Como se sabe, o TPI foi criado com o fim de não deixar impunes criminosos de guerra que seus países não processavam porque não era do seu interesse ou porque não tinham força para obrigar esse pessoal a se sentar no desconfortável banco dos réus.

EUA, China, Rússia, França e Alemanha e mais alguns outros não fazem parte do TPI, possivelmente temem ver seus chefes e outros cidadãos importantes julgados como “comedores de criancinhas”, coisa que não faria bem à imagem do país.

Mas essa jogada não colou, pois os juízes do TPI decidiram que todos os responsáveis por crimes no exterior podem ser processados, seja ou não seu país membro do TPI.

Assim, em 2017, Fatou Bensoueda, a procuradora-chefe do TPI, levou ao tribunal um milhão e duzentas mil denúncias contra milicianos do Talibã e militares das forças do governo e da coalizão da OTAN liderada pelos EUA, especialmente cometidas pela CIA.

Solicitou aos juízes autorização para investigar crimes de guerra no Afeganistão e seus autores, conforme indícios apontados nas denúncias e outros fatos detectados por ela.

O orgulho norte-americano sofreu um rude golpe. Como alguém ousava ofender a terra dos bravos, ignorar a excepcionalidade estadunidense, seus nobres valores e contribuições para a harmonia universal como a Coca-Cola e a bomba atômica de Hiroshima?

John Bolton, secretário de Estado do então presidente Trump, trêmulo de emoção cívica, bradou que seu governo retaliaria qualquer processo ou investigação que o TPI movesse contra norte-americanos.

Adiantou alguma das terríveis penas em estudo: proibição de entrar nos EUA (o que impediria os juízes e suas famílias de ir passear na Disneylândia e tirar fotos ao lado do Pateta); congelamento de possíveis fundos que eles tivessem no sistema financeiro e seu processamento nos tribunais do país por crimes a serem ainda definidos.

E Bolton concluiu sua catilinária: “nós não cooperaremos com o TPI. Não ofereceremos qualquer assistência ao TPI. Nós não entraremos no TPI. Nós deixaremos que o TPI morra por si só. Afinal, por todos os seus intentos e propósitos, o TPI está morto para nós” (Washington Times, 11-9-2018).

Por sua vez, Trump afirmou com sua arrogância habitual que nunca submeteria a soberania da América a “uma burocracia global não eleita e irresponsável”.

Anos depois, Mike Pompeo, secretário de Estado, nomeado por Trump para o lugar de Bolton, ecoou o chefe, chamando o TPI de: “instituição política irresponsável, mascarada para parecer corte legal”. E anunciou: os EUA tomariam “todas as medidas necessárias” para proteger norte-americanos da investigação”.

Dá para imaginar o volume das pressões estadunidenses que desabou sobre a audaciosa procuradora do TPI, até que em junho de 2021 terminou seu período e Karim Khan foi nomeado para substituí-la.

E aí tudo mudou. Três meses depois de se aboletar nas almofadas do poder, o novo procurador-chefe informou que continuaria as investigações sobre os crimes de guerra no Afeganistão, só que haveria uma modificação: ele iria se debruçar somente sobre os casos envolvendo o Talibã e o Estado Islâmico.

Quanto aos EUA e aliados da OTAN, poderiam dormir tranquilos, Karim Khan decidira “deixar de lado” as investigações de possíveis atrocidades cometidas pelos militares do Ocidente.

Explicando sua inesperada atitude, Khar disse que as investigações estavam comprometidas pois o Talibã, tendo a essa altura tomado o Afeganistão, não deixaria o pessoal do TPI atuar. E Khan lamentou, de passagem, que a verba concedida para o TPI atuar seria insuficiente.

Pouco mais tarde, em dezembro de 2021, o procurador explicou que decidira retirar os EUA da lista dos investigados e manter os seus inimigos porque “os piores crimes foram cometidos pelo Taliban e o EI (Al Jazeera, 6/12/2021)”.

São alegações duvidosas. Parte das vítimas afegãs das torturas e outras obras norte-americanas já devem ter mudado de país. Seria fácil ouvi-las.

Quanto às demais, talvez constituindo a maioria, é de se crer que, ansiosas por justiça, provavelmente dariam seu testemunho com prazer para que seus algozes não escapassem do justo castigo.

Por sua vez, os chefões do Talibã não hesitariam em autorizar os que ficaram no país a contar ao TPI o que sofreram nas mãos dos EUA e seus súditos da OTAN.

Muitos desses crimes foram fartamente publicados pela mídia internacional. Como o massacre de Dashit V Leil; o bombardeio do hospital de Kundus, que causou 42 mortos e 50 feridos entre pacientes e funcionários (documentário do Irish Times); as torturas e assassinatos no campo de detenção de Bagram; os assassinatos em Helmand; os bombardeios com bombas de fósforo, praticados pela aviação ianque, embora condenadas internacionalmente por causarem mortes particularmente horríveis.

Crime de guerra é sempre crime de guerra, não há maiores, nem menores. Todos são grandes e igualmente condenáveis por sua própria natureza.

É certo que alguns militares dos EUA foram julgados e punidos pelo sistema jurídico de Washington. No entanto, a imparcial Anistia Internacional sustenta que a justiça foi leniente com eles. Mal daria para encher uma Kombi com os que levaram penas realmente pesadas.

Em 2014, a Anistia acusou o Pentágono de esconder as evidências de crimes de guerra, torturas e execuções ilegais praticadas pelos nossos vizinhos do Norte na guerra do Afeganistão.

Agora, não há mais nada a fazer. O tribunal internacional concordou que a justiça norte-americana olhava com imparcialidade as acusações contra our boys. E, afinal, os atos delituosos de alguns deles não passavam de pecados meramente veniais.

Ainda que livres dos incômodos causados pelo TPI, os EUA permaneciam mobilizados contra esse tribunal. E o erudito secretário de Estado Anthony Blinken, um falcão disfarçado de pomba, declarou que os EUA estavam” desapontados” com o TPI.

Novamente a procuradora Fatou Bensouda ousava desafiar o governo de Washington, ao promover uma investigação de crimes de guerra contra Israel, o filho dileto de Tio Sam (ANSA, 4/3/2021).

E Blinken (falando por Biden) garantiu: “continuaremos a defender nosso forte compromisso com Israel e sua segurança, inclusive opondo-nos a ações que miram Israel de maneira injusta”.

Esse novo conflito começara a se delinear três anos depois de Bensouda receber denúncias dos palestinos, quando a promotora-chefe concluiu uma investigação preliminar, verificando que havia fortes indícios de crimes de guerra na Cisjordânia, Gaza e Jerusalém Oriental (territórios que compõem a Palestina legal), de responsabilidade não só de Israel (a maioria absoluta), mas também do Hamas e de entidades conexas.

E ela solicitou ao tribunal licença para iniciar investigações formais sobre a questão.
Diante de uma enxurrada de argumentos contrários de aparência jurídica dos EUA e de alguns aliados, o TPI inicialmente recusou o pedido da procuradora. Inconformada, Bensouda recorreu.

Demorou, mas os juízes decidiram que o tribunal tem, sim, jurisdição sobre os territórios ocupados por Israel na Cisjordânia, Gaza e Jerusalém Oriental.

Desde logo, Telavive declarou que não colaboraria em nada com as investigações, inclusive proibindo a entrada dos investigadores do TPI em Israel e na Palestina ocupada.

O Hamas e os outros movimentos rebeldes, também alvos da investigação, nada tiveram a opor. Provavelmente consideram-se isentos de culpas.

Em dueto com os EUA, Israel não só contestou a legitimidade do TPI para julgar Netanyahu e seus áulicos como também lançou mão do velho e sovado antissemitismo aplicado a todos que criticam as ações dos sionistas, sejam justas ou nefandas.

As forças progressistas nos EUA e na Europa estão atribuindo a maior importância à investigação do TPI.

Como disse Mathew Cannock, dirigente da Anistia Internacional em Londres: “é uma oportunidade histórica para definitivamente pôr fim à impunidade generalizada (de Israel) que tem acumulado sérias violações nos territórios da Palestina ocupada por mais de meio século. E é um importante avanço pela justiça depois de décadas de não-responsabilização por crimes de guerra e crimes contra a humanidade (The Guardian, 03/03/2021)”.

Animadas com essa perspectiva, as Ongs de direitos humanos contribuíram para o sucesso das investigações, fornecendo novas provas contra Israel e indicando locais onde as violências sionistas foram mais evidentes.

Em retaliação, o governo de Telavive enviou para a maioria dos demais países falsas acusações de terrorismo contra três desses grupos. Não pegou. Ninguém aceitou as fake news israelenses.

Diante da imensa coação dos EUA, Israel e alguns países ocidentais, 10 das principais ONGs israelenses de direitos humanos, inclusive a BTselen e a Yesh Din, tentaram ganhar pontos junto ao procurador-chefe, elogiando sua promessa de visitar a Cisjordânia neste ano de 2023 (Jewish Currents 4-1-2023)”.

Aproveitaram para pedir pressa, pois o processo pouco avançara, citando, inclusive, frase de Willian Gladstone, ex-primeiro-ministro da Inglaterra: “Justiça atrasada é justiça diminuída”.

Diante do volume das pressões, capitaneadas pelo mais poderoso país do mundo, as esperanças depositadas no TPI podem se frustrar.

A ação do procurador-chefe num processo do TPI é chave. Dispõe de muitos poderes, entre os quais comandar as investigações e concluir sobre sua validade.

Compare seu desempenho nas investigações dos crimes de guerra em Gaza e na Cisjordânia, protagonizadas em geral por Israel, com a dos crimes de guerra do primeiro-ministro Putin na Ucrânia, que Biden quer ver condenado o mais breve possível.

Enquanto Khan bate recorde de rapidez (cerca de 11 meses) para investigar, concluir e decretar a prisão do chefão russo, os palestinos já estão esperando há 7 anos pela revelação de alguma ação concreta do TPI no desenvolvimento das investigações dos crimes em Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental.

Enquanto Karim Khan já esteve na Ucrânia 4 vezes (Times of Israel, 17/3/2023 ), jamais esteve nos territórios palestinos. Por enquanto, apenas prometeu ir neste ano.

Enquanto Fatua Bensouda procedeu a uma investigação preliminar dos crimes de guerra de Israel que durou três anos antes de atender ao pedido da Palestina, o atual procurador-chefe aceitou na hora o pedido de investigação na Ucrânia.

Em mais uma demonstração do seu grande interesse nas investigações na ex-república socialista soviética, Khan anunciou o envio ao país de equipes forenses e da procuradoria. Não anunciou nada de parecido em relação às investigações dos crimes israelenses na Palestina.

O procurador-chefe também defende o aumento de recursos financeiros para a ação na Ucrânia. Não pediu o mesmo para a missão do TPI na Palestina, embora conte apenas com 50 mil dólares, ridículos diante dos milhões de dólares já gastos na busca de crimes russos.

Ficou claro que Karim Khan deixou de priorizar a investigação dos crimes de guerra nos territórios palestinos, iniciadas pela sua antecessora, Fatua Bensouda. O que não surpreende, depois do atual procurador-chefe ter livrado os militares norte-americanos da investigação das muitas centenas de denúncias de barbaridades eventualmente cometidas pelas forças dos EUA no Afeganistão.

É verdade que poucos acreditam na imparcialidade de Khan. No entanto, embora as pressões dos EUA nas suas decisões sejam consideráveis, elas não são insuperáveis. Existe poder de pressão da opinião pública internacional, que parece não morrer de amores pela causa de Joe Biden.

Só não sabemos até onde poderá influenciar Khan de forma positiva. Será o procurador-chefe, visivelmente apegado aos valores discutivelmente éticos do feérico presidente Zelensky e à cruzada democrática do presidente Biden, capaz de enxergar as barbaridades israelenses que as investigações do TPI na Palestina vão revelar? Resistirá às pressões dos senhores da Terra?

Trata-se de uma responsabilidade pesada para alguém que por enquanto não justificou seu cargo de procurador-chefe da justiça entre as nações do planeta.

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Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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