Correio da Cidadania

Argentina, Estados Unidos e a geopolítica na Terra do Fogo

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A presença do presidente Javier Milei em Ushuaia para encontro com a general do Exército norte-americano, Laura Richardson, chefe do Comando Sul, traz ao debate sobre a política exterior argentina temas sensíveis da geopolítica no “fim do mundo”. Se, por um lado, o episódio reforça a natureza ocidentalista do atual governo argentino, tema abordado anteriormente no Correio da Cidadania (19/2/2024); por outro, levanta a questão da construção de uma base naval na Terra do Fogo, com sérias implicações geopolíticas, incluindo a histórica reivindicação argentina de soberania sobre as Malvinas e ilhas do Atlântico Sul, tema a ser tratado em outro momento.

A Argentina, sob os governos de Cristina Kirchner (2007-2015) e Alberto Fernández (2019-2023), havia estreitado laços com a República Popular da China, movimento do qual resultou acordo para o estabelecimento da estação aeroespacial na província de Neuquén. Agora, o governo Milei adota política em sentido inverso, sinalizando para maior presença norte-americana na região, o que provocou reações do governo provincial e manifestações em Ushuaia.

O encontro de Milei com Richardson, como destacou a jornalista Mariela Arias (La Nación, 5/4/2023), se insere no contexto das preocupações de Washington com o avanço da China na região – embora não exista indícios de participação chinesa em obras de infraestrutura – e reafirma a proximidade da Argentina com o governo norte-americano. Com efeito, Milei reforçou na ocasião “uma afinidade com o povo com os Estados Unidos”, sustentada em sua visão pelo pertencimento a uma tradição ocidental, com uma cultura, uma história política e um estilo de vida em sociedade em boa parte compartilhado. Uma tradição assentada nas ideias de liberdade e privada, ou seja, princípios que foram “bandeiras dos pais fundadores de ambas as nações, quando diagramaram suas primeiras constituições”. Nenhuma palavra, obviamente, sobre a história de rivalidade e atritos que predominaram até 1955, nas conferências interamericanas e à época de Perón.

A vista de Laura Richardson teve como antecedentes a visita do secretário de Estado Anthony Blinken, em fevereiro, e a passagem pelas Malvinas do secretário das Relações Exteriores, Commonwealth e Desenvolvimento, David Cameron, no mesmo mês. A agenda de defesa e relações exteriores anglo-americana prioriza os efeitos da política exterior da China para a América do Sul, em particular a estação aeroespacial de Neuquén, e as implicações comerciais e geopolíticas na Terra do Fogo, diante de uma potencial ascendência chinesa sobre a passagem interoceânica, região que conheceu operações militares nas duas guerras mundiais.

No plano político interno, ganha relevância o fato de Milei não ter sido recebido pelo governador da província de Terra de Fogo, Gustavo Mellela, nem pelo prefeito de Ushuaia, Walter Vuoto, ambos eleitos em coalizões kirchneristas. Em 2022, como recordou Arias, o ministro da Defesa, Jorge Taiana, visitou Ushuaia para lançar a pedra fundamental da Base Naval Integrada, como parte do Polo Logístico Antártico, uma iniciativa criada ao final de 2021, que despertou preocupações em Washington em razão da eventual participação de Rússia e China no empreendimento. Não como há como saber até o momento, em razão das características próprias da circulação de informações na área de defesa, em que medida se trata ou não de informação fidedigna ou de fake News, a reforçar pressões norte-americanas sobre a Argentina.

Há que se observar, ademais, que por ocasião da visita de Milei o sindicato de professores de Ushuaia promoveu manifestação na praça das Ilhas Malvinas, na qual alertou para as ameaças que pairam sobre as riquezas minerais da região, particularmente os recursos raros presentes na Argentina, Bolívia e Chile, como lítio, petróleo, cobre e ouro. O nacionalismo se faz presente também nas preocupações no governo de Melella, que em seu viés desenvolvimentista concebe a Base Naval Integrada como elemento de um projeto de desenvolvimento econômico e produtivo, complementar ao turismo e às indústrias eletrônicas, e não como um enclave militar, com fortes implicações para a política mundial.

Sem dúvida, a sociedade argentina, suas lideranças políticas progressistas e demais agentes têm diante de si um tema de importância decisiva para o futuro do país, que merece ser acompanhado com atenção.

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